Um mesmo filme, mas sempre diferente
Documentário sobre o artista e produtor Brian Eno tem forma diversa a cada exibição, graças a algoritmos e a uma produção engenhosa. A versão que eu vejo não será a a mesma que você verá.
A história do cinema é repleta de exemplos de um mesmo filme com versões diferentes – onde trechos ou detalhes são trocados para atender a especificidades geográficas, políticas ou comerciais, ou mesmo quando surgem “montagens do diretor” que representam a visão original do realizador, quando ela difere da versão originalmente exibida nas telas.
Blade Runner-O Caçador de Andróides teve sete versões, desde que saiu, em 1982, da montagem exibida para uma pesquisa de público até a “definitiva”, de 2021. O motivo: a diferença de opiniões entre o diretor, Ridley Scott, e o estúdio, Warner Bros, quanto à forma mais propícia ao sucesso comercial ou representativa da integridade artística do filme.
O fundo de um discurso de Buzz Lightyear em Toy Story 2: Em Busca de Woody foi mudado para as platéias internacionais. No lugar da bandeira americana vista pelo público dos Estados Unidos entrou um globo terrestre.
As páginas que Jack Nicholson datilografava em O Iluminado – o clássico de terror de Stanley Kubrick – apareceram refeitas em Espanhol, Francês, Alemão e Italiano quando o filme passou nos cinemas europeus.
Mas a proposta do novo Eno é bem outra, mais radical: cada vez que o filme é exibido ele assume uma forma única, nunca vista antes e jamais reproduzida depois. Quando termina, podem ter transcorrido 82 minutos. Ou 95.
Projeto do cineasta Gary Hustwit feito em parceria com o o artista britânico Brendan Dawes, Eno é um documentário generativo, na medida em que suas sequências são “embaralhadas” e “distribuídas” de maneira diferente a cada exibição. A partir de 500 horas de material de arquivo e entrevistas, os algoritmos do software desenvolvido por Dawes montam um filme diferente cada vez que são acionados.
Consistente com a carreira de Gary, premiado em 2007 com o Oscar pelo documentário Helvetica – longa sobre design gráfico e tipografia – mas conhecido também por mirar suas lentes em artistas como Wilco, Mavis Staples e Animal Collective –, Eno é um filme musical, mesmo porque enfoca o instrumentista, compositor e produtor Brian Eno, um dos pilares da seminal banda Roxy Music, colaborador de David Bowie, Robert Fripp e David Byrne. Brian é, ainda, responsável por guiar o U2 na sua transformação sonora do final dos anos 1980, é um mestre da música ambiental – e também um ávido explorador das possibilidades oferecidas por novas tecnologias. São dele um pioneiro aplicativo de criação de música generativa, o Bloom, e o 77 Million Paintings, programa de computador que cria séries de pinturas que nunca se repetem.
Hustwit pretendia reproduzir num documentário o efeito de um show de música, onde as versões das músicas apresentadas no palco costumam variar de uma noite para outra. E a escolha de Eno para estrelar o experimento audiovisual deu-se de maneira natural: Brian trabalhara com Gary e Dawes em outro documentário, fazendo a música para Rams, de 2018.
Não que Eno, o artista, quisesse ser assunto de Eno, o filme. “Odeio, odeio, odeio documentários biográficos e odeio documentários musicais”, Brian teria dito a Gary, quando soube da ideia. “São sempre uma versão muito subjetiva de alguém sobre a história de uma outra pessoa”.
Somente quando viu alguns testes, feitos a partir de cenas de Rams, é que Brian cedeu.
Tampouco foi fácil selecionar as cenas de Eno. Os montadores Marley Mcdonald e Maya Tippett tiveram o desafio de preparar sequências que combinariam, fosse lá a ordem em que aparecessem. E existe outra questão: fãs de Brian Eno poderão se ressentir, conforme for a versão do filme, da ausência de marcos na carreira dele. Nem tudo relativo ao protagonista aparecerá sempre, em todas as variações do filme.
Por sua própria natureza, Eno acaba sendo um projeto de circulação restrita. E esse aspecto vem sendo valorizado: o filme tornou-se um singular “item de colecionador” que vem sendo exibido em ocasiões raras, em premieres organizadas em cidades ao redor do mundo, ou em sessões privê, com o comparecimento do diretor, eventos caros, que costumam custar 7.500 dólares por pessoa.
E fica a dúvida: já que jamais haverá uma versão definitiva, estanque, do filme, será possível levar Eno para as plataformas de streaming?
Novas gerações de mulheres conquistam espaço na cultura popular de Pernambuco. A música pop está ficando menos melódica? Uma série documental que sairá somente depois da morte de seus entrevistados. Mafalda, agora em forma de animação. E a gênese e os primórdios do estúdio de gravação erguido por Jimi Hendrix.
– Novas gerações de mulheres na cultura popular pernambucana vêm ganhando força, fazendo questão de celebrar as artistas que vieram antes delas – e sublinhando que, mesmo que possa não ter sido óbvio, as mulheres sempre estiveram presentes. “O protagonismo, no entanto, sempre lhes foi apagado. (Agora) elas têm a oportunidade de ser protagonistas não só dos brinquedos, como de suas vidas”, explica Eliane Rodrigues, fundadora da Associação de Mulheres de Nazaré da Mata, a Amunam. São novas mestras do maracatu, fundadoras do seu próprio Cavalo-Marinho ou criadoras de bonecos do mamulengo. “Eu costumo dizer que as mulheres que fazem parte do maracatu ou de qualquer outra cultura são símbolos da resistência”, resume Eliane, “e não é resistência dos homens, ou do maracatu masculino, mas somos nós que nos inserimos em um espaço que por direito era nosso, mas (onde) não éramos aceitas”.
– A música pop está ficando cada vez menos melódica. Essa é a conclusão de um estudo recente, feito pela Queen Mary University, de Londres, segundo o qual as canções estariam perdendo a complexidade, com o passar dos anos. A pesquisa se baseou na análise de décadas das paradas de sucesso da revista americana Billboard. Mas pelo menos uma pessoa veio a público discordar dos achados, tanto que publicou um artigo no jornal inglês The Guardian dando sua réplica: Tom Breihan, editor do Stereogum, site americano de música, e cuja coluna se dedica semanalmente a resenhar a música que ocupa o topo da parada naquele momento. “Sem levar em conta letras, contexto social e técnicas de produção, o estudo concluiu que, matematicamente, os sucessos pop estão ficando menos complexos, com pontos de inflexão notados em 1975 – o momento em que a música disco tomou as paradas de assalto – e em 1996 e 2000, anos cruciais para o crescimento da dominância do hip-hop”, escreveu Tom. “Mas, mesmo não sendo cientista, não vejo provas concretas de que a música pop esteja sendo simplificada (e) perdendo a complexidade melódica. Ao escrever minhas colunas, notei certos momentos históricos em que as estruturas melódicas e rítmicas de repente tornaram-se mais imprevisíveis. No final dos anos 1960, por exemplo, quando os Beatles e os Beach Boys experimentavam com estruturas e orquestrações não convencionais. Ou, então, no final dos anos 1990, quando produtores de rap e R&B, como Timbaland e Darkchild, construíram formas de síncope eletrônica irregulares e de outro mundo. Talvez não seja possível enxergar isso olhando apenas uma partitura, mas a cena pop é (hoje) tão plena e fascinante quanto sempre foi”.
– A Netflix deu a partida na produção de uma nova série documental – Famous Last Words –, onde personalidades e ícones culturais farão longos depoimentos francos e sem restrições sobre suas vidas e suas carreiras, com a condição de que tudo aquilo só será exibido depois que os entrevistados morrerem. Na verdade, é uma nova versão de um programa dinamarquês, Det Sidste Orsd, e será comandado pelo co-criador da série American Horror Story, Brad Falchuck.
– Enquanto isso, Mafalda – a adorada personagem das tiras argentinas criadas por Quino – vai ganhar série animada, também na Netflix. Juan José Campanella, oscarizado pela direção de O Segredo de Seus Olhos, está à frente do novo projeto, que será produzido junto com o estúdio de animação Mundoloco CGI.
– E vem aí um documentário sobre Electric Lady Studios, o estúdio de gravação criado por Jimi Hendrix em 1970, de onde saíram discos icônicos do guitarrista (ironicamente, apenas um, o póstumo The Cry of Love) e de uma verdadeira plêiade de estrelas do rock, de John Lennon, Patti Smith e U2 a The Clash, Stevie Wonder, David Bowie, Led Zeppelin, Lou Reed e AC/DC. O prédio, no coração do Greenwich Village, era originalmente ocupado por uma casa noturna, The Generation, onde Hendrix gostava de tocar. Quando o lugar anunciou que iria fechar, Jimi pensou em adquiri-lo e mantê-lo funcionando, mas foi convencido a erguer ali um estúdio seu, o que representaria uma senhora economia no que gastava alugando estúdios para ensaiar e gravar. Electric Lady Studios: A Jimi Hendrix Vision foi dirigido por John McDermott, historiador do guitarrista, e estreará em setembro – primeiro, num único cinema, em Nova York, antes de ser incluído, em versão Blu-ray, num caixote recheado com 38 faixas inéditas, gravadas por Jimi, o baixista Billy Cox e o baterista Mitch Mitchell no estúdio, entre junho e agosto de 1970.
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A enquete do FAROL
A partir desta semana, o FAROL quer ouvir você sobre temas candentes, assuntos que estão pipocando aqui e ali, incontornáveis – e quer saber como eles estão afetando nossos leitores.
A Inteligência Artificial, por exemplo. Ela é a bola da vez, quase onipresente nas nossas vidas, de uma forma ou de outra.
Uma das inúmeras aplicações propostas para a IA é a criação de “amigos” virtuais, algo semelhante ao que o diretor Spike Jonze mostrou no filme Ela, onde Joaquin Phoenix se relaciona com a voz de um aplicativo até se apaixonar por ela. Vá lá que a voz era a de Scarlett Johansson, mas representava uma criação de Inteligência Artificial.
E você? Toparia ter um “amigo” feito por IA?
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O resultado da enquete sairá na próxima edição do FAROL.
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PLAYLIST FAROL 90
O X chega ao fim da linha. The Police é dissecado. Robyn Hitchcock revisita 1967. Laura Marling se inspira na maternidade. Alaíde Costa alimenta sua trilogia. Jack White provoca. The Araras fervem. Jake Blount e Mali Obomsawin entrelaçam ancestralidade e afrofuturismo. A turnê legendária de Bob Dylan. E o adeus a John Mayall.
X – “Big Black X”– Pouco menos de meio século depois de ter ajudado a semear a cena punk de Los Angeles, o veterano grupo liderado por Exene Cervenka e John Doe se despede de vez (mas indomado) com seu novo álbum, Some & Fiction.
The Police – “Every Breath You Take” – Não é segredo nosso apreço aqui por dissecações de gravações que deram origem a clássicos do pop e do rock. É o que nos traz, com fartura e detalhe, o recém-saído caixote dedicado à feitura do álbum Synchronicity, de 1983, com a evolução das músicas e de seus arranjos, bem como registros dos shows que repercutiram o disco, quando saiu. Um dos melhores exemplos é a demo da música que, mais tarde, seria transformada em clássico pela sacada de Andy Summers para a guitarra. Aqui, levada no teclado, a canção sugere seu potencial, mas ainda está anos-luz distante do super hit que viria a ser.
Robyn Hitchcock – “Itchycoo Park” – O cantor e compositor britânico gravou um álbum (quase todo apoiado apenas em voz e violão) de covers, mas somente de músicas lançadas originalmente em 1967, ano pródigo para a música pop, divertidamente intitulado de Vacations in The Past (Férias no Passado). Uma das pérolas é esta releitura de um dos maiores sucessos do Small Faces.
Laura Marling – “Patterns” – A recente maternidade dá o mote do oitavo álbum da artista britânica, Patterns in Repeat, que explora os altos e baixos na vida de quem recebe o presente e o ônus da entrada de um bebê na vida.
Alaíde Costa – “Foi Só Porque Você Não Quis”– No segundo álbum da trilogia iniciada em 2022, a gigante do samba-canção, prestes a completar 89 anos, mostra uma parceria sua com Caetano Veloso, que criou a melodia a partir de título e tema dela, mais letra de Emicida, produtor do disco junto com Pupillo Oliveira e Marcus Preto.
Jack White – “That’s How I’m Living” – De surpresa, o sempre empreendedor Jack deu ao mundo seu novo disco, o provocadoramente misterioso No Name (Sem Nome), literalmente de graça, incluindo o presente “escondido” nas sacolas de quem comprava alguma coisa em sua loja, Third Man Records. Algumas semanas depois, o álbum – vigoroso, focado e sanguíneo – chega às plataformas de streaming.
The Araras – “Fervo”– O projeto da dupla carioca – formada por Zé McGill (vocais e letras) e Gustavo Villela (baixo, guitarra, violão, teclados, ukulele e programações) – estreia solar, encharcado de reggae e dub. Aqui, utiliza os bordões dos vendedores de praia para sublinhar o estonteante calor do Rio de Janeiro.
Jake Blount/ Mali Obomsawin – “My Way’s Cloudy”– Primeira amostra de symbiont, a colaboração do artista folk americano e a baixista e compositora indígena da nação Odanak. Ancestralidade e afrofuturismo se entrelaçam num tema hipnótico.
Bob Dylan – “Forever Young” – Em 1974, Bob Dylan atravessou os Estados Unidos numa turnê triunfante, acompanhado pela The Band em ponto de bala. A excursão foi registrada no álbum Before The Flood, lançado naquele mesmo ano. Agora, um caixotão parrudo traz 27 CDs com 417 gravações inéditas daqueles shows. Este gostinho do novo The 1974 Live Recordings, que sai em setembro, foi gravado no Seattle Center Coliseum, em fevereiro daquele ano.
John Mayall’s Bluesbreakers – “Hideaway”– Mais que um multiinstrumentista, bandleader e dedicado pioneiro do blues no Reino Unido, John Mayall operou uma espécie de incubadora de talentos emergentes, sempre com um ouvido afinadíssimo para artistas que logo depois explodiriam em fama e prestígio. Por sua Bluesbreakers passaram futuros gigantes do rock, como Mick Taylor, Peter Green, Jack Bruce e Eric Clapton, destacado aqui numa faixa de 1966. Mayall morreu no final de julho, aos 90 anos, após ter lançado quase 100 álbuns no decorrer de cerca de sete décadas de carreira.