Quase um século e meio de Nintendo sob um mesmo teto
O fabricante de video games icônicos – como 'Super Mario Bros' e 'The Legend of Zelda' – abriu em Kyoto um espaço de memória e celebração da tecnologia e do entretenimento que vem criando desde 1889
“Eu, você, nós dois, já temos um passado, meu amor”, cantava Caetano Veloso em 1968, na letra de uma de suas composições, “Saudosismo”. No auge do Tropicalismo, o baiano fazia ali “um acerto de contas” com a Bossa Nova – aliás, nem tão distante assim, àquela altura.
O mesmo sentimento de se compartilhar uma história em comum pode ter sido uma das forças-motrizes – ainda que de forma inconsciente – por trás da criação do Museu Nintendo, aberto esta semana nos arredores de Kyoto, no Japão.
O fabricante de jogos eletrônicos icônicos – como Super Mario Bros, The Legend of Zelda e Donkey Kong – ocupa agora sua antiga fábrica (e, a partir de determinado ponto, sua central de assistência técnica) para exibir a trajetória da companhia, que começou em 1889 confeccionando cartas de baralho, celebrar suas conquistas tecnológicas e alimentar a nostalgia de jovens e adultos pelos jogos antigos, vintage, com os quais cresceram.
Estão distribuídos por dois andares os softwares e consoles originais de jogos que marcaram a história da Nintendo e a evolução do gênero, desde os pioneiros TV-7 e TV-15 (de 1977) e o Family Computer/Famicom (ou Nintendo Entertainment System/NES, o nome internacional, de 1983) até o portátil Switch (2017), bem como as diversas versões de cada um, conforme a região do mundo onde eram comercializados. Há monitores de vídeo exibindo diferentes gameplays, e painéis detalhando o design e a evolução dos jogos da marca – embora não com profundidade demais, pelo temor (compreensível) de se revelar segredos industriais. Também podem ser vistos, claro, os produtos fabricados pela Nintendo que pouca gente fora do Japão conhece, de fotocopiadoras e jogos de tabuleiro a carrinhos de bebê e até armas, mais recriações de produtos antigos, utilizando tecnologia atual: um jogo de cartas que utiliza um dispositivo móvel e projeções no chão, ou um tiro ao alvo popular que substituiu muitos boliches.
Não é a primeira nem a única atração do gênero naquele país. A Universal Studios montou em Osaka um parque temático dedicado ao universo Super Nintendo, modalidade surgida nos anos 1990. E será aberto em Tóquio outro parque, este centrado no Pokémon. Mas o Museu Nintendo é um apanhado do conjunto da obra de um gigante do setor e integra uma estratégia do próprio governo japonês para sublinhar o peso dos jogos eletrônicos no seu pacote de produtos culturais de exportação, postura enfatizada com o lançamento da campanha “Cool Japan”, em junho passado, cujo objetivo é quadruplicar o mercado externo de artigos como anime e, claro, video games.
“Companhias como a Nintendo são imensamente importantes para a exportação cultural do Japão”, disse ao diário britânico The Guardian Gearoid Reidy, colunista que cobre o país asiático para a plataforma Bloomberg. "A exportação desses produtos forma uma relação simbiótica com o turismo”, que cresceu sete vezes mais nos últimos 20 anos. “Os turistas viajam para o Japão em parte porque se interessam, digamos, (pelos jogos da) Nintendo. Com o tempo, essas pessoas vão absorvendo novas tendências e as levam de volta para casa. Veja a popularização do ramen que ocorreu nas últimas décadas”.
“Para muita gente, Nintendo é um fabricante de jogos eletrônicos”, explicou Shigeru Miyamoto, “pai” de alguns dos jogos que fizeram a fama da marca, ao diário espanhol La Vanguardia, “quando na realidade é uma empresa de entretenimento”, realçando, assim, o alcance cultural e econômico maior, mais amplo, de uma linha de produtos iniciada no século 19 com cartas de jogar no estilo hanafuda, ornamentadas com plantas, para uso de toda a família.
“É difícil definir se existe um estilo japonês na hora de se criar jogos”, argumenta Shigeru, “mas diria que uma das características mais comuns é a atenção ao detalhe, especialmente na hora de se propor como o personagem é controlado e como ele se parece”.
“Por outro lado”, ele assinala, já desviando o assunto para o lado técnico, “outro aspecto que conecta o jogo eletrônico japonês com a cultura deste país é que sempre tratamos de fazer caber muito conteúdo em muito pouca memória”.
De olho no movimento que será gerado pelo novo museu , a área de seu entorno, castigada, está recebendo uma injeção de recursos para seu revigoramento, diante da expectativa de receber até dois mil visitantes por dia. A começar da estação local de trem.
Faz sentido. Os ingressos – distribuídos numa espécie de loteria, ao custo de cerca de 100 reais, cada – já estão esgotados para os próximos três meses.
Voltando ao tema do início: a motivação por trás da criação do Museu Nintendo. Estilo, tecnologia e conteúdo não faltarão. Mas o porquê de se expor tudo isso num mesmo espaço, agora? No entender de Miyamoto, é a preservação de um legado. “A Nintendo tem uma longa história e muita documentação acumulada”, justifica. “Vimos que estava se deteriorando. E resolvemos conservá-la”.
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A enquete do FAROL
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Hoje, o assunto é video games.
Você leu lá em cima sobre a abertura do Museu Nintendo, um dos desdobramentos da imensa e crescente indústria de jogos eletrônicos, cuja receita mundial superou os 360 bilhões de dólares em 2023.
Esses cifrões saíram do bolso de diferentes gerações de jogadores, daqueles "raiz", que ainda hoje babam de saudade dos fliperamas, até os mais jovens, acostumados a jogos de realidade virtual acoplados a óculos de imersão total.
E você, joga vídeo games? Com frequência? Ou nem está aí para o assunto?
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Na semana passada, perguntamos: você compraria um dispositivo móvel dedicado exclusivamente à Inteligência Artificial? 57% responderam não, prefiro esperar que chegue ao celular. Já 29 % disseram que sim. Enquanto 14% não estão nem aí para a Inteligência Artificial.
Machado de Assis ganha mural na ABL. A causa (e a cura?) para a "minhoca de cérebro", aquela música que se aloja na sua cabeça sem pedir licença. Novos documentários enfocam Nicky Hopkins – o pianista ouvido em clássicos do rock – e o professor e crítico literário Antonio Candido. A Sony adquire o catálogo, a marca e a imagem do Pink Floyd. E o adeus a Maggie Smith.
– Como parte de uma série de ações em homenagem a Machado de Assis, programadas para a comemoração dos 185 anos de nascimento do escritor, a Academia Brasileira de Letras inaugurou em sua sede, no Centro do Rio de Janeiro, um mural de 150 metros quadrados na área exterior do Petit Trianon, feito por César Mendes e Cazé, resgatando as origens de Machado no Morro da Providência, onde vendia bala na juventude, e aludindo às discussões sobre raça em torno do escritor.
– Sabe aquela música que, sem mais nem menos, se aloja na sua cabeça e não sai de lá por um longo período? O fenômeno acontece com todo mundo, embora não se tenha ainda uma resposta científica que determine o porquê. No entanto, há estudos tentando entender os meandros percorridos por aquilo que chamam de “minhoca do cérebro”. No entender de Callula Killingly, pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de Tecnologia de Queensland, na Austrália, o início do processo é misterioso. Ele pode ser acionado por uma música recém-ouvida mas também por alguma associação com um som, uma palavra, ou mesmo um gosto. Também pode influenciar a quantidade de vezes que se ouviu aquela música, de forma voluntária ou não. “As pessoas andam por aí com música na cabeça o tempo todo”, diz Ira Hyman, psicólogo que estuda a questão na Western University, em Washington. Mas como se faz para retirar essa música invasora da cabeça? Pense em outra!
– Você pode não reconhecer de imediato o nome Nicky Hopkins, mas certamente ouviu o trabalho do pianista britânico. De formação clássica, mas versado na música gospel e no boogie-woogie, ele gravou com os Beatles, os Rolling Stones, The Who e Joe Cocker, para citar apenas alguns de tantos. Seus fraseados elegantes e inspirados marcaram faixas que tornaram-se clássicos do rock, no decorrer de uma carreira que, por motivos de saúde, precisou ser restrita aos estúdios, sem que ele saísse em turnê, resultando em mais de 250 álbuns gravados num período de 30 anos. Daí o título do documentário sobre Nick – The Session Man (O Músico de Estúdio) –, que começa a ser exibido nas plataformas de streaming a partir de 5 de novembro, com depoimentos de gente como Peter Frampton, Mick Jagger, Pete Townshend, Dave Davies, Jim Keltner e Keith Richards.
– Outro documentário novo enfoca o crítico literário Antonio Candido. Dirigido por seu genro, o craque Eduardo Escorel, Antonio Candido, Anotações Finais parte de uma variedade de escritos do professor, crítico e sociólogo carioca, autor de obras como Formação da Literatura Brasileira, feitos em cadernos ao longo das décadas, dos quais restaram apenas 74. São observações sobre sua vida pessoal, quando jovem e adolescente, mas também sobre literatura e os acontecimentos na política e na sociedade. Escorel dedicou os 87 minutos do documentário – em cartaz nos cinemas – , narrado por Matheus Nachtergaele, a reflexões, memórias e lamentos contidos nos dois últimos cadernos, que cobrem um espaço de tempo que vai de 2015 a 2017, ano em que Antonio morreu.
– Seguindo o exemplo de Bob Dylan, Paul Simon e Bruce Springsteen, o Pink Floyd vendeu por 400 milhões de dólares toda sua discografia, que agora fica com a Sony Music. A operação inclui, ainda, os direitos de nome e de imagem do grupo, o que incorpora mercadoria como camisetas e filmes ou documentários baseados na história da banda. Numa entrevista à Rolling Stone, David Gilmour, guitarrista do Floyd, expressou sua frustração e seu cansaço com o sistema de veto compartilhado entre ele, Roger Waters e Nick Mason e as briguinhas internas que atrasavam reedições e dificultavam um consenso em relação aos menores detalhes. Detalhe: a operação envolve apenas o trabalho gravado do Floyd. Ainda pertencem ao grupo os publishing rights, os direitos de autoria. Que podem vir a ser negociados mais tarde – por mais uma bolada polpuda.
– O cinema, a TV e o teatro perderam Maggie Smith, a grande atriz inglesa que em mais de 60 anos de carreira variou da comédia ao drama, sempre com brilhantismo (invariavelmente roubando a cena, mesmo fazendo papéis pequenos) e adicionando um fino senso de humor e leve (e delicioso) sarcasmo que pontuavam suas falas. Considerada um “tesouro nacional” pelo Rei Charles, Smith ia de Shakespeare a Harry Potter, de esquetes com Carol Burnett a filmes de Hollywood ao lado de Robin Williams, Jane Fonda ou Whoopi Goldberg. Sua carreira a manteve no topo até o fim, culminando com as seis temporadas do mega-sucesso Downton Abbey, sensação no mundo inteiro, onde Maggie viveu Lady Violet Crawley, a Condessa Viúva de Grantham, de língua afiada, humor ferino, mas dona de um coração generoso. Smith tinha 89 anos.
PLAYLIST FAROL 98
Samantha Crain canta a libélula. A voz de Jon Anderson em forma fabulosa. WILLOW + Kamasi Washington. O caleidoscópio de estilos e linguagens de Kaê Guajajara. Andrew Bird + Madison Cunningham cantam Buckingham + Nicks. Stevie (a mesma) Nicks entra na luta pelos direitos reprodutivos. A Los Angeles clássica de Dawes. O rock alternativo com tinturas folk de Lestics. O pop-prog de MEER. E a despedida de Kris Kristofferson.
Samantha Crain – “Dragonfly”– Com raízes indígenas, a cantora-compositora do Oklahoma homenageia as libélulas em seu novo single, uma ode à liberdade criada a partir de um inseto capaz de voar em qualquer direção.
Jon Anderson – “True Messenger”– É nada menos que fabulosa a forma da voz que varou décadas dando vida às canções do Yes, agora dedicada ao repertório solo do cantor-compositor de quase 80 anos, acompanhado nas peripécias prog de seu décimo-sexto álbum individual, True, pelos (relativamente) jovens músicos do grupo The Band Geeks, estes concentrados em não desviar do modelo construído mais de meio século atrás por Chris Squire, Steve Howe, Bill Brufford e Rick Wakeman.
WILLOW – “wanted”– Menos de seis meses depois de ter lançado seu sexto álbum, Empathogen, a cantora-compositora americana (filha de Will Smith) chega com uma versão super deluxe do disco, com novidades como essa colaboração incendiária com o saxofonista Kamasi Washington, o que cacifa as credenciais jazz de WILLOW, inicialmente vista como uma artista R&B/rock.
Kaê Guajajara – “Encantados"– Originária do Maranhão, mas criada na Maré, no Rio de Janeiro, a cantora-compositora incorpora em seu terceiro álbum, Forest Club, um caleidoscópio de estilos e linguagens, do funk à música indígena de suas raízes, de sons eletrônicos à tecnomelody nortista. Aqui, recebe uma participação do cabo-verdiano Dino d’Santiago.
Andrew Bird, Madison Cunningham – “Crying In The Night” – Uma dose generosa de sonoridade Beatle enfeita a nova colaboração de Bird e Cunningham, uma refeitura, faixa a faixa, do álbum Buckingham Nicks, de 1973, preciosidade pop gravada antes de Lindsey e Stevie entrarem para o Fleetwood Mac e mudarem o rumo da história do grupo, ali já um veterano.
Stevie Nicks – “The Lighthouse” – Por falar em Nicks, Stevie usa seu primeiro novo single solo em quatro anos para ajudar na luta pelos direitos reprodutivos das mulheres nos Estados Unidos, objeto de disputas acaloradas durante a atual temporada eleitoral.
Dawes – “Strangers Sometimes”– O grupo angeleno foi reduzido a uma dupla – os irmãos Taylor e Griffin Goldsmith – para seu nono álbum, apropriadamente intitulado Oh Brother, reluzindo à Los Angeles clássica da década de 1970, mas atualizando o som para o século 21.
Lestics – “Enquanto Houver Tempo” – O tom é de celebração no nono disco do grupo paulistano de rock alternativo com tinturas folk, Bolero #9, que recebe de volta um de seus fundadores, o multi-instrumentista Umberto Serpieri.
MEER – “Golden Circle”– O octeto (!!!) norueguês dá uma amostra do empolgadíssimo pop-prog de seu terceiro álbum, Wheels Within Wheels.
Kris Kristofferson – “Me and Bobby McGee” – Kris foi muitos em um só. Sua experiência de vida como acadêmico, boxeador, piloto de helicóptero, cantor-compositor e ator o tornaram suficientemente único. Entretanto, sua obra na música country – sozinho ou ao lado de gigantes da estatura de Johnny Cash, Waylon Jennings e Willie Nelson – merece destaque, por suas canções de aparente simplicidade que continham universos de histórias. É o caso de “Me and Bobby McGee”, sucesso póstumo de Janis Joplin numa versão que se equilibrava entre o blues e o jazz, aqui em sua forma original, profundamente country, puro Kristofferson. Kris morreu na semana passada, aos 88 anos.