“Espero ficar velho antes de morrer”. Peraí, não era para ser ao contrário?
Por que astros de rock veteranos preferem envelhecer na ativa em vez de se aposentar? Como o rock virou octogenário? As perguntas são feitas pelo jornalista inglês David Hepworth em seu novo livro
“Espero morrer antes de ficar velho”, rugia Roger Daltrey, do alto de seus 21 anos anos, quando cantava “My Generation”, o hit que em 1965 definiu o The Who para todo o sempre e levantou a bandeira do rock como música da juventude – e somente dela.
Corta para 2024 e cá está o mesmo Daltrey, agora aos 80 anos, vivinho da silva, saracoteando de palco em palco, cantando os antigos sucessos que fizeram a carreira de seu grupo.
Assim como ele, astros de rock contemporâneos de Roger também se recusam a pendurar as chuteiras e a abrir mão do repertório e do ofício que os definiram no auge do seu vigor.
Os Rolling Stones encerraram em julho passado uma triunfante turnê de 20 shows por Estados Unidos e Canadá (ironicamente patrocinada pela AARP, a associação dos aposentados americanos), promovendo em estádios lotados seu primeiro álbum de música inéditas desde 2005, Hackney Diamonds, e já se fala em nova excursão do grupo para 2025, muito embora Mick Jagger já esteja com 81 anos, Keith Richards, 80 e Ron Wood, 77.
Por sua vez, daqui a bem pouco Paul McCartney – de 82 anos – estará de volta ao Brasil para cumprir mais uma série de shows-maratona, com três horas de duração, cada. Seu ex-colega de banda, Ringo Starr – 84 anos – não deixa por menos e percorre a costa leste americana, atualmente, em mais uma tour à frente de sua All-Starr Band.
E Bob Dylan, também de 84 anos? Está agora na Europa, dando continuidade a sua Never Ending Tour (Turnê Sem Fim), iniciada em 1988.
Será que essa turma algum dia se aposentará? E quanto à noção original de que o rock é música feita por jovens e para jovens? Como o rock virou o som de octogenários?
São exatamente essas as questões levantadas pelo jornalista inglês David Hepworth em seu novo livro, Hope I Get Old Before I Die (Espero Ficar Velho Antes de Morrer), cujo título inverte a máxima de “My Generation” para descrever o momento atual.
“Essencialmente, a música pop era coisa para jovens”, disse David à edição britânica da revista masculina GQ, falando sobre seu livro. “E se você ainda estivesse (fazendo pop) depois dos 30 anos, era meio que um milagre. O punk piorou ainda mais as coisas, (porque) todo mundo que surgiu depois de 1976, 1977, precisava fingir ter 19 anos e desconhecer tudo que havia acontecido antes”. Nessa época, artistas como os Stones ou o Pink Floyd, com mais de 10 anos de carreira, eram considerados velhos, obsoletos, quando não irrelevantes para aquele período de efervescência no rock, principalmente na Inglaterra.
No entanto, o jogo começou a mudar na década seguinte, na opinião de David, em parte graças ao evento beneficente Live Aid, realizado em 1985. “A partir dali, os artistas mais velhos – como Paul McCartney, que estava com 43 anos – ‘voltaram’ gradativamente”. Começava ali o que o autor chama de o Terceiro Ato do Rock, o ponto de inflexão onde o público em muitos casos mostrou-se mais disposto a ouvir os antigos sucessos de um grande artista veterano do que as novidades dos mais contemporâneos.
Ajudou também, na visão de Hepworth, o carinho dos astros do Britpop – como Oasis e Blur – com os decanos que os inspiraram, de Beatles a Kinks, ajudando a apresentá-los (e a toda sua rica discografia) a novas gerações, abrindo o caminho, assim, para uma contínua enxurrada de reedições de discos clássicos e para o lançamento de coletâneas especiais, caixotes recheados com versões alternativas de hits conhecidos, ensaios e gravações inéditas, tudo registrado quando aqueles artistas de ontem – agora “descobertos” – eram garotos e estavam inventando o vernáculo musical que tanto influenciaria os que vieram depois deles.
Além disso, não se pode ignorar a importância, na situação atual, do poder aquisitivo dos fãs mais velhos, e sua própria relação com a idade e a passagem do tempo. Afinal, são eles, principalmente, que movimentam as turnês multi-milionárias dos artistas chamados de “heritage”, como se diz no jargão, tradicionais. Ao preservarem seu interesse por artistas responsáveis pela trilha-sonora de sua adolescência, e ao vê-los determinados a desbravar territórios desconhecidos num experimento artístico/existencial sem precedentes – até onde são capazes de se manter em atividade, e com qual nível de vigor? – , os fãs grisalhos mantêm acesa, de certa forma, a chama da própria juventude, e se inspiram no desafio ao tempo que está ali no palco, ao vivo, ou nas faixas de um disco.
Pode ser atribuído aos Stones o nascimento da megaturnê promovida por astros históricos e veteranos nos moldes que conhecemos hoje. A partir de 1989, com a tour Steel Wheels, eles criaram o modelo artístico e econômico que viria a ser utilizado por eles dali por diante, e por seus contemporâneos (e muitos de seus descendentes): shows em estádios, patrocinados (algo que iniciaram até antes, em 1981, aliando-se ao perfume da marca Jovan), palcos de design impactante e com recursos de última geração (de bonecos infláveis e fogos de artifício a, mais tarde, telões de alta definição), tie-ins (promoções com fabricantes de bebidas ou a um-dia-toda-poderosa MTV, por exemplo), shows “surpresa”, em lugares pequenos, para badalar a excursão, venda agressiva de merchandising variado (nos locais dos shows e, a partir da chegada da internet, também online), especiais de TV a cabo (pagos), ou, depois, DVD’s.
Seria tudo uma questão de dinheiro, então? Não, exatamente. Em 2012, numa pausa durante o show de abertura da turnê de 50 anos dos Stones, no ginásio O2, em Londres, Mick Jagger brincou com a fidelidade do seu público. “A gente continua fazendo shows porque vocês continuam vindo nos ver!”, disse à plateia. Ou seja, há uma demanda enorme, e já que ainda são capazes de apresentar concertos de rock espetaculares, que serão lembrados para sempre, por que não seguir adiante? Sem esquecer que estamos falando de lendas vivas do rock, ali, em carne e osso, na sua frente, em ação, e sem deixar a peteca cair.
“ As pessoas pagam caro de bom grado para ver o show (desses artistas veteranos) e ouvir aquelas músicas antigas”, argumenta Hepworth, “e uma coisa que aprendemos nos últimos anos é que não importa quanto dinheiro (esses músicos) já têm. Ninguém parece estar prestes a dizer ‘certo, isso já basta, vou me aposentar’”.
Existe, ainda, o efeito cumulativo. No decorrer das décadas esses artistas foram incorporando diferentes camadas de público. Se no início da carreira eram seguidos por um determinado segmento ou por uma única geração, com o passar do tempo passaram a atingir muito mais gente. São pessoas que podem não ter estado lá, no início de tudo, quando as primeiras notas anunciaram a chegada de uma nova era, de um novo movimento musical. Agora, esses artistas e suas músicas fazem parte da cultura da maneira mais profunda. Estão tatuados para sempre em nossas vidas, quer a gente queira ou não. Pertencem ao mundo inteiro e à história. E quem vai conseguir ou se atrever a frear esse trem?
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A enquete do FAROL
Cada semana o FAROL quer ouvir você sobre temas candentes, assuntos que estão pipocando aqui e ali, incontornáveis – e quer saber como eles estão afetando nossos leitores.
Hoje, o assunto é festival de música.
A segunda etapa da edição de 40 anos do Rock in Rio está em curso, lotando a capital fluminense com visitantes dos quatro cantos – e fãs de diferentes gerações e plumagens.
E você, estará lá? Costuma ir a festivais de música? Vai a todos os dias ou só a alguns? Ou prefere assistir de casa, pela televisão?
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Resultado da enquete anterior
Na semana passada, perguntamos: quantos livros você compra por mês? 45% responderam de um a dois. 36% disseram que compravam livros uma vez ou outra. 14% compram de três a quatro livros por mês. Enquanto 5% simplesmente não compram livros.
Evangélicos entrevistam Caetano Veloso. Judi Dench se despede dos palcos e das telas. Vem aí Coreiawood. Yuval Noah Harari alerta contra os falsos humanos. O Spotify vai competir com o YouTube. E Taylor Swift é o pivô no banimento de shows no estádio do Real Madrid.
– Tendo como ponto de partida a inclusão da música gospel “Deus Cuida de Mim”, do pastor Kleber Lucas, no repertório da turnê que vem fazendo junto com a irmã, Maria Bethânia, Caetano Veloso respondeu a perguntas formuladas por um grupo de evangélicos, que incluiu desde a ministra Marina Silva, a historiadora Romilda Motta, o antropólogo Raphael Khalil e o pastor batista Valdir Steuernagel. A pauta da entrevista “polifônica” girou em torno da decisão de Caetano passar a cantar o louvor, de sua relação com religião e de sua visão do crescimento da fé evangélica no Brasil. “Essa é a única canção que não recebe aplausos entusiasmados”, explica, referindo-se a seus shows recentes, diante da teoria de que estaria sendo oportunista ao usar uma canção gospel para ganhar audiência. “E isso não me surpreende. Para a maioria do público que vai ver Bethânia comigo, o interesse pelo assunto ‘igrejas evangélicas’ não é algo esperado, nem desejado. Mas eu sei que pode criar conversas que não costumam se dar”.
– A veterana atriz inglesa Judi Dench está se despedindo dos palcos e dos sets de filmagem, depois de reconhecer que, aos 89 anos, sua cegueira progressiva a impede de ler roteiros. Parte desse fim de ciclo, ela acaba de lançar um livro de memórias no qual analisa o trabalho que fez a partir de obras de William Shakespeare – ou O Homem que Paga o Aluguel, o título do livro (ainda sem data de lançamento no Brasil) e apelido dado ao dramaturgo quando ela e o marido, Michael Williams, passaram a integrar a companhia de teatro Royal Shakespeare Company, nos anos 1970. Nas páginas do livro, Judi distribui sua sabedoria sobre a obra do icônico Bardo (“não há personagens pequenos em Shakespeare”), o ofício de ator (“você sai do personagem quando tira o vestido”) e a vida, em geral (“Seja gentil, seja curioso, seja travesso. E mantenha seu senso de humor”).
– Você vai lembrar de ter lido aqui sobre o sumiço de oportunidades de trabalho em Hollywood. Pois agora está na hora de falarmos da ascensão de outro centro produtor de entretenimento audiovisual, que podemos chamar de Coreiawood. O próprio governo da Coreia do Sul tomou a iniciativa de construir um novo complexo de prédios para implementar nele uma central de produção cultural e também ajudar a turbinar o turismo. Ali poderão ser produzidos filmes, séries e programas de TV, assim como video games. E haverá uma incubadora para artistas de K-pop. Não será um empreendimento criado de um dia para o outro: a previsão de inauguração do que está sendo chamada de “cidade do entretenimento” é de não antes de 2035. O anúncio foi feito por Yu In-Chon, Ministro da Cultura, em entrevista à Bloomberg Television. A Arábia Saudita também está construindo uma cidade em moldes semelhantes ao modelo coreano, só que focada em jogos eletrônicos, chamada Qiddiya. O plano é investir 38 bilhões de dólares no setor até 2030.
– Com a proliferação e a sofisticação das ferramentas de Inteligência Artificial, há um risco de, sem controles, em breve o mundo ser inundado por falsos humanos. O alerta, que pode soar como ficção-científica, vem de Yuval Noah Harari, historiador, filósofo e escritor de best-sellers como Sapiens, Homo Deus. Num artigo de Opinião publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, Harari descreve casos de robôs de IA que foram capazes de ludibriar humanos facilmente, graças a uma “teoria da mente”, que permite “analisar como as coisas são vistas da perspectiva de um interlocutor humano e como manipular as emoções, opiniões e expectativas humanas para atingir seus objetivos”. Isso inclui criar laços afetivos com os humanos. “(A IA) poderá formar relacionamentos íntimos com as pessoas e usar o poder da intimidade para nos influenciar”, escreveu Yuval.
– Criadores de conteúdo audiovisual, atenção: o Spotify está de olho em seus vídeos. A plataforma de streaming de música quer competir diretamente com o YouTube, a ponto de já estar oferecendo contratos milionários a criadores de grande audiência que hoje fazem do gigante do AV sua morada. Esse movimento começou com a popularização no Spotify de podcasts de vídeo, com cerca de 170 milhões de usuários acessando esse tipo de conteúdo. No entanto, o YouTube não é o único dono do pedaço audiovisual com quem o Spotify baterá de frente: ainda existem o TikTok e o Instagram.
– O Real Madrid baniu os shows de música de seu estádio. E a culpa é de Taylor Swift! O show da megaestrela pop no recém-reformado Estádio Santiago Bernabéu, em maio passado, mostrou que a ideia de arrendar o espaço para shows de música – uma possibilidade de se recuperar os quase 2 bilhões de dólares investidos na reforma – era um tiro n’água, na medida em que os moradores da região reclamaram da música sendo tocada alto demais. Seria, na verdade, uma questão de erro de design, que impede que os sons sejam contidos no estádio e não incomodem a vizinhança. Diante da grita, e pressionada pelo governo, a administração adiou sine die todas as atrações musicais programadas para os próximos meses e cancelou um festival de K-pop agendado para outubro.
PLAYLIST FAROL 96
O pop psicodélico do White Denim. A euforia sexual de FKA twigs. O soul progressivo de Michael Kiwanuka. George Harrison, reeditado. O rock experimental do Displicina. O power pop do Nada Surf. Public Service Broadcasting homenageia a aviadora Amelia Earhart. Tucker Zimmerman + Big Thief. E o Barão Vermelho deu música a uma poesia nova de Cazuza.
White Denim – “Light On”– O pop psicodélico do grupo texano encabeçado pelo vocalista e guitarrista James Petralli chega cintilante ao décimo-segundo álbum de sua discografia, apropriadamente batizado de 12.
FKA twigs – “Eusexua”– A faixa-título do novo álbum de Tahliah Debrett Barnett – seu primeiro desde 2019 – vai crescendo de um quase sussurro até adquirir velocidade de cruzeiro bastante para incendiar uma pista de dança, enquanto a cantora-compositora saúda a euforia sexual sugerida pelo título como sendo “o auge da existência”.
Michael Kiwanuka – “Lowdown (part i + part ii)”– O cantor-compositor britânico dá uma amostra dupla de seu quarto álbum, Small Changes, também produzido por Danger Mouse e Inflo, do coletivo Sault, explicitando seu pendor (de longa data) por Pink Floyd, especialmente pela guitarra de David Gilmour, o que dá a seu som um quê de soul progressivo.
George Harrison – “Give Me Love (Give Me Peace on Earth)” (Take 18) – Sai em novembro a reedição de 50 anos de Living in the Material World, o segundo álbum solo pós-Beatles que George lançou em 1973. Virá remixado por Paul Hicks – o mesmo envolvido no recente pacote Ultimate Mixes, de John Lennon – e com 12 faixas inéditas. Entre elas, esse take alternativo da música que abre o disco original.
Displicina – “Friedkin: Pasolini (You Can Hear The Bones Humming) ” – Em seu primeiro álbum, As Núpcias Ósseas, o quinteto paulistano de rock experimental acrescenta colagens sonoras a um fundo rítmico nervoso, urgente, dançante, algo aparentado com “Face The Face”, de Pete Townshend, para falar de morte. Neste exemplo, fantasia como seria se a morte do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini fosse filmada pelo colega americano William Friedkin, de O Exorcista.
Nada Surf – “In Front of Me Now”– Veterano do power pop, o grupo do Brooklyn chega em ponto de bala e cativante a seu novo álbum, Moon Mirror.
Public Service Broadcasting – ”The Fun of It”– Curiosamente, o quarteto britânico fez o segundo disco a ser lançado nas últimas semanas inspirado num mesmo tema: a jornada final da aviadora pioneira Amelia Earhart (o outro foi Amelia, de Laurie Anderson), a americana cujo avião desapareceu em 1937, quando sua aeronave caiu enquanto ela e seu navegador, Fred Noonan, tentavam fazer uma viagem transcontinental. Aqui, numa faixa de seu The Last Flight, o PSB (nenhuma relação com o partido brasileiro) ganha a adesão da voz de Kate Stables, do This is The Kit, e locução em português reproduzindo a transmissão pelo rádio de parte do percurso do voo histórico – e trágico.
Tucker Zimmerman – “Burial At Sea”– Um decano americano do folk, octogenário, é trazido de volta de Londres a sua terra pelo Big Thief para uma majestosa celebração da vida e da música.
Barão Vermelho – “Do Tamanho da Vida” – O grupo carioca musicou um poema de seu ex-companheiro de banda, Cazuza, sobre a rotina das prostitutas na cidade do Rio de Janeiro, antes chamado de ”As moças do Centro".