Documentário investiga turnê que minou o prestígio (e a carreira) do Blood, Sweat & Tears
A história da parceria de um dos grupos de rock mais famosos de seu tempo com o governo Nixon – e de suas consequências – é finalmente contada
Em 1970, o Blood, Sweat & Tears – noneto nova-iorquino organizado e dirigido inicialmente por Al Kooper (ele toca o órgão que se ouve em “Like A Rolling Stone”, de Bob Dylan) – era uma das maiores estrelas do rock americano.
Movido a hits como “Spinning Wheel”, "And When I Die" e "You’ve Made Me So Very Happy” (tudo isso já bem depois da saída de Al, substituído nos vocais pelo canadense David Clayton-Thomas, cujo estilo rascante, soulful, virou a marca da banda) e a uma agenda de shows que o levou inclusive ao festival de Woodstock, onde foi uma das principais atrações, o grupo e sua mistura de rock com elementos de jazz – exemplificado pelo uso intenso de instrumentos de sopro, um tanto em voga na época e presente no trabalho de contemporâneos como Chicago e Ides of March –chegou a derrotar o icônico Abbey Road, dos Beatles, na disputa pelo Grammy de Álbum do Ano.
Foi quando a coisa começou a desandar.
Naquela época, os Estados Unidos de Richard Nixon estavam em plena Guerra Fria contra a União Soviética e os países em sua órbita, por trás da Cortina de Ferro, no leste europeu, e travavam um intenso embate com a contracultura emergente e o sentimento anti-guerra do Vietnã em meio à juventude americana, principalmente os universitários.
O Blood, Sweat & Tears, superestrela do rock, emitia opiniões contra a guerra – e até participou de um show organizado em prol das vítimas do ataque da Guarda Nacional a alunos da Kent State University que protestavam conta o Vietnã, ação que deixou um saldo de quatro mortos e motivou "Ohio”, música de protesto de Crosby, Stills, Nash & Young.
Nixon enxergou no grupo uma oportunidade política.
Assim como no Brasil a ditadura militar pressionava artistas de música para tomar emprestado um pouco de seu brilho e popularidade, e assim, obter uma espécie de endosso implícito, Nixon achou por bem buscar um importante nome da música de seu país para criar uma ação política e de relações públicas internamente e mundo afora. E, assim, o Departamento de Estado anunciou que patrocinaria uma turnê do Blood, Sweat & Tears por três países isolados pela Cortina de Ferro: Polônia, Romênia e Iugoslávia.
Ainda que os músicos tenham utilizado a oportunidade para dizer à juventude europeia o que realmente achavam dos Estados Unidos e da guerra contra o Vietnã, em casa o púbico do BS&T não perdoou a parceria com o governo americano. Segmentos mais radicais do underground chegaram a aventar a teoria de que o grupo teria topado a turnê em troca de um visto de residência para David Clayton-Thomas, cuja ficha em sua terra-natal, o Canadá, não era das mais limpas.
A verdade é que após tudo isso o BS&T iniciou uma trajetória descendente. Apesar do grupo ainda lançar singles de sucesso – “Hi-De-Ho” e "Lucretia McEvil” são exemplos –, a imprensa não deixava o público esquecer da turnê patrocinada pelo Departamento de Estado. Para azedar ainda mais o caldo, BS&T fez uma temporada em Las Vegas – templo da caretice – e, por fim, Clayton-Thomas pediu as contas.
Tudo somado, a credibilidade do grupo e seu prestígio junto ao público jovem, que o havia carregado nos ombros até ali, desintegraram.
Os bastidores da malfadada turnê que serviu de estopim desse processo são o objeto de um novo documentário, What the Hell Happened to Blood, Sweat & Tears?, descrito pela revista Variety como um thriller politico “mais estranho que a ficção”.
Escrito, produzido e dirigido pelo mesmo John Scheinfeld de Os Estados Unidos Contra John Lennon – sobre a queda de braço entre o ex-Beatle e Nixon, na medida em que John exercitava a veia ativista em seu país adotivo e o presidente americano o queria deportado –, o novo doc pinçou trechos de mais de 65 horas de filmagens inéditas para contar o que realmente aconteceu em 1970, acaba de ganhar distribuição e tem previsão de lançamento para o final do primeiro semestre.
“Scheinfeld fez um trabalho primoroso”, disse à revista Variety o produtor executivo do filme, James Sears Bryant, “ao elucidar o mistério de como um dos grupos mais famosos de seu tempo tornou-se uma das primeiras vítimas da cultura do cancelamento”.
O documentário traz cenas que parecem demonstrar a sinceridade do grupo em opinar com veemência para pessoas na rua da Iugoslávia contra o governo americano e contra a Guerra do Vietnã. Mas são sons e imagens que estão sendo apresentadas meio século depois do fato. Muito depois do mal ter sido feito ao BS&T e a seu legado.
Coda
O Blood, Sweat & Tears ainda existe – após ter tido mais de 170 membros diferentes – e hoje usa seu site para recrutar um novo vocalista. Sua participação no festival de Woodstock, engavetada por décadas, finalmente saiu em disco, em 2019. David Clayton-Thomas, aos 81 anos, mantém uma saudável carreira solo. Em 2016, lançou o álbum Canadiana, repleto de versões para clássicos escritos por seus conterrâneos: de Joni Mitchell e Leonard Cohen a The Band e Neil Young.
Burt Bacharach: arquiteto de clássicos pop melodiosos, contagiantes – e de assimilação imediata
Da mesma forma que Lennon e McCartney, o pianista e compositor Burt Bacharach –morto nesta quinta-feira, 9/2, aos 94 anos, de causas naturais – semeou o DNA da música pop do último século.
Junto com o letrista Hal David (e, mais tarde, Carol Bayer Sager, com quem foi casado por um tempo), Burt compôs alguns dos maiores clássicos do cancioneiro americano dos anos 1950 em diante, músicas melodiosas, contagiantes, de assimilação imediata, emocionantes, elegantes – e de enorme sucesso.
As canções de Bacharach – com toques que iam do jazz à bossa nova – ganharam o mundo através de gravações feitas por uma variedade de artistas, mais de mil, por algum cálculos: de sua cantora marca-registrada, Dionne Warwick, a Barbra Streisand, Aretha Franklin, Sérgio Mendes, os Carpenters, Herb Alpert, Dusty Springfield, os próprios Beatles (quando ainda faziam covers) e Elvis Costello, com quem travou uma parceria frutífera, na década de 1990, que rendeu aos dois um Grammy pela música "I Still Have That Other Girl” – um dos seis conquistados por Burt, no decorrer dos anos, inclusive um para “That's What Friends Are For”.
É difícil encontrar alguém que tenha ficado imune ao encanto de "I’ll Never Fall In Love Again”, "I Say A Little Prayer”, “The Look of Love”, “This Girl’s In Love With You" e "Anyone Who Had A Heart”.
Burt também brilhou no cinema e foi premiado por trilhas e temas que compôs para Butch Cassidy and the Sundance Kid e Arthur, o Sedutor Milionário.
Ironicamente, para alguém que construiu toda uma carreira compondo no piano a trilha-sonora de gerações, Burt odiava o teclado. "Acham que eu era uma criança-prodígio do piano, que não conseguia conter a vontade de sentar na frente do teclado e praticar”, disse Bacharach, numa entrevista. “Mas quer saber a verdade? Eu odiava. Só tocava para agradar minha mãe. Foi ela quem me encorajou”.
IA mexe com imagens de Carnaval. Salman Rushdie rompe o silêncio. O Agente Elvis entra em ação. Buena Vista Social Funk? Macca ganha doc pós-Beatles. E boygenius incorpora o Nirvana
E mais …
– Olha a Inteligência Artificial caindo na folia, minha gente! O fotógrafo carioca Pedro Garcia – que assina seus trabalhos como Cartiê Bressão, numa homenagem a Henri Cartier-Bresson, gênio francês da fotografia – criou uma série de imagens fantásticas de uma folia imaginária, usando, para isso, uma ferramenta de IA. O resultado pode ser visto no perfil @carnavais_artificiais, no Instagram. Ali você acha um trisal momesco, inspirado no traço de Moebius, e um Yoda animadíssimo, caindo na gandaia. Ou, então, um bloco de carnaval, retratado em preto e branco, que parece clicado no início do século passado, seguindo a estética Bauhaus; e outro (acima), no melhor estilo anime.
– O escritor Salman Rushdie deu sua primeira entrevista desde que foi esfaqueado num evento literário, em agosto do ano passado. Ele falou, com exclusividade, à revista The New Yorker, sobre a vida após o atentado, que tirou-lhe a visão de um dos olhos e o movimento de uma das mãos. Para Rushdie, cujo livro Versos Satânicos foi condenado como blasfêmia pelo aiatolá Khomeini, o que motivou o atentado, escrever tornou-se “um ato de desafio à morte”. “Já estive melhor”, disse ele ao entrevistador, David Remnick, também autor de livros. “Mas, levando-se em conta o ocorrido, não estou tão mal assim”. Seu novo romance, Victory City, acaba de ser lançado nos Estados Unidos e na Europa.
– E se Elvis Presley fosse um agente secreto? Essa é a premissa de Agent Elvis, nova série de animação criada pelo mesmo time do revolucionário longa Homem-Aranha no Aranhaverso. Co-criado por Priscila Presley e com estreia prevista para março, a série traz Matthew McConaughey no papel título. O trailer já foi disponibilizado.
– Você já deve ter ouvido falar do Buena Vista Social Club. Mas e do Buena Vista Social Funk? Pois esta foi a expressão usada para descrever o projeto Os Crias do Funk, pensado por Buchecha – MC cuja parceria com Claudinho teve enorme sucesso nos anos 1990 – para reunir pioneiros do gênero gravar e lançar faixas inéditas. Participam do projeto nomes como Mano Kakau, Mascote, Danda e Wiliam do Borel. Duas novas faixas já resultaram do encontro: "O funk é o poder” e “Batata de Marechal”. A previsão é que um álbum completo saia logo depois do carnaval.
– A vida e a obra pós-Beatles de Paul McCartney são o tema do documentário Man On The Run, que o diretor Morgan Neville está preparando. Premiado com o Oscar por seu trabalho no excelente 20 Feet From Stardom, Morgan utilizará videos e fotos jamais vistos antes e entrevistas novas para contar o que aconteceu com Paul depois de se separar de John, George e Ringo e formar o Wings com a esposa, Linda.
– A nova edição da Rolling Stone americana reproduziu com o supergrupo de indie rock boygenius uma capa icônica do Nirvana, de 1994. Para a nova sessão de fotos, Ryan Pfluger não deixou de ter à mão o clique original, de Mark Seliger, para fazer com perfeição seu trabalho.
PLAYLIST FAROL 23
Jazz-rock eletrônico da Alemanha. Elton ao vivo, em 1972. O indie folk de Bonny Light Horseman. A nova do Depeche Mode. O jazz punk de James Brandon Lewis. O pop arrojado de RAYE. O prog carioca da Caravela Escarlate. O samba progressivo da Divina Supernova. Uma “Layla” indie e com matizes havaianos. E o jazz viajandão para baixo e sax.
Lambert – “Bummel”– Abrimos os trabalhos com o jazz-rock eletrônico alemão feito pelo compositor, pianista e produtor Lambert, um tanto aparentado com o Return to Forever. A faixa é parte do álbum All This Time, com lançamento previsto para março.
Elton John – “Rocket Man (I Think It’s Going To Be A Long, Long Time)”– A reedição comemorativa de Honky Château, o álbum que solidificou o superestrelato de Elton – e o primeiro onde toda sua banda tocou – ganhou essa versão ao vivo do primeiro single, registrada em 1972, no Royal Festival Hall, em Londres.
Bonny Light Horseman – “Once on Another Day” – O trio de indie folk formado por Anaïs Mitchell, Josh Kaufman e Eric D. Johnson disponibilizou em formato digital uma faixa pastoral, costurada por harmonias cristalinas, antes existente apenas em vinil, em seu segundo álbum, Rolling Golden Holy.
Depeche Mode – “Ghosts Again” – As lendas do synth-pop dão a primeira amostra de Memento Mori, seu 15º álbum – e o primeiro sem Andy Fletcher, morto ano passado.
James Brandon Lewis – “Fear Not" – Acompanhado aqui pelo trio The Messthetics, integrado por ex-integrantes do Fugazi, ícone do punk americano, o jovem saxofonista James faz um jazz arrojado, de vanguarda, que navega de um tema meditativo a um clímax feroz.
RAYE – “The Thrill Is Gone” – A cantora-compositora britânica faz um pop cheio de soul, funk, hip hop e marra em seu excelente álbum de estreia, My 21st Century Blues, emoldurado como um show numa boate.
Caravela Escarlate – “Bússola do Tempo” – O trio carioca bebeu na fonte do rock progressivo britânico e italiano dos anos 1970 para criar um som que a revista Prog definiu como “de sabor único, internacional”. São sintetizadores, órgão Hammond, contrabaixo Rickenbacker e letras em português num álbum de prog brasileiro contemporâneo mas com um pé nas tradições de meio século atrás.
Divina Supernova – “Bossatômica”– A dupla alagoana faz samba progressivo, com elementos de jazz, em seu terceiro álbum, como demonstrado na faixa-título.
Unknown Mortal Orchestra – “Layla”– Nada a ver com aquele clássico de Eric Clapton, esse quase-reggae lo-fi do projeto capitaneado pelo neozelandês Ruban Nielson, segundo o qual a canção incorpora até características de música havaiana.
Sam Gendel, Sam Wilkes – “Caroline, No” – A dupla de sax e contrabaixo faz um jazz viajandão, esotérico, que por vezes adiciona inflexões eletrônicas para entortar ainda mais a mistura, como nessa leitura incomum de uma faixa perene dos Beach Boys.