A briga pelo documentário sobre a genialidade de Prince (e seus demônios, também)
Novos representantes do artista frearam um trabalho de mais de cinco anos, alegando ver "sensacionalismo" na produção. Mas o lado sombrio do artista não faz parte dele também?
A matéria publicada no domingo passado (08/09) pela revista do The New York Times caiu como uma bomba.
Segundo a longa e bem apurada reportagem de Sasha Weiss, o documentarista Ezra Edelman, oscarizado pela série documental O. J.: Made in America, estava impedido de exibir o documentário de nove horas de duração que produziu para a Netflix sobre Prince, o genial e prolífico músico que morreu em abril de 2016, vitimado por uma dose acidentalmente fatal de fentanil, opioide normalmente usado para aliviar dores.
O motivo do impedimento? Uma mudança na representação legal do artista anulou a permissão dada cinco anos atrás pelos então detentores dos direitos de Prince ao realizador para a feitura do filme – que cedia a Ezra o “corte final”, ou seja, a decisão incontestável quanto ao que entrava ou não no documentário –, e os novos gestores do espólio do artista agora pedem uma série de mudanças no projeto, já pronto. Em especial, pleiteiam a eliminação de partes que consideram “sensacionalistas”, referindo-se a sequências onde são levantados os casos de abuso físico e emocional cometidos por Prince, com base em diversas entrevistas feitas com colaboradores, amigos e namoradas.
Enquanto essas questões não forem resolvidas, o documentário permanecerá na gaveta, por tempo indeterminado.
No dia seguinte à publicação da matéria, duas das companhias hoje responsáveis pelos direitos legais de Prince – Primary Wave Music e Prince Legacy – defenderam-se publicamente, emitindo um comunicado no qual declaravam estar trabalhando “para resolver as questões relativas ao documentário para que a história (do artista) possa ser contada de maneira factualmente correta, sem sensacionalizar sua vida”.
A Netflix também se pronunciou, através de uma nota enviada ao jornal: “Esse projeto de documentário mostrou-se tão complexo quanto o próprio Prince. Viemos catalogando a vida de Prince e trabalhamos duro para apoiar a série de Ezra. Mas ainda existem questões contratuais significativas com o espólio (do artista) que estão atrasando o lançamento do documentário”.
O que configuraria um documentário sensacionalista? É aquele que expõe escândalos – quanto mais privados e picantes, melhor – e comportamento impróprio apenas para chocar, sem contexto. O documentário de Edelman mergulha fundo no trabalho, na genialidade, mas também no lado sombrio e nos demônios de Prince. Ele traça um retrato do artista e do homem onde convivem sua qualidade sobre-humana para a música – um dos trechos mostra o caminho até se chegar à versão definitiva do hit “When Doves Cry”, sem contrabaixo, um anátema para o pop! – com suas inseguranças, suas fraquezas e seus defeitos.
Nisso, entram, por exemplo, agressões físicas a uma ex-namorada, o controle obsessivo exercido sobre a vida de outra, e o descaso com que tratou a (hoje ex) esposa quando o filho único do casal morreu logo após o parto.
São esses alguns dos muitos elementos que os representantes atuais de Prince listaram num documento de 17 páginas com tudo que deveria ser modificado no documentário.
Há, por outro lado, quem enxergue nessa combinação de elementos – o êxtase da criatividade e o horror do pior do ser humano – justamente a qualidade do documentário de Ezra.
“É um dos únicos trabalhos que vi que chegam perto da experiência de se sofrer junto, através e ao lado de um gênio”, reagiu Wesley Morris, crítico do The New York Times.
Sasha Weiss gastou um ano e meio preparando a matéria para o jornal nova-iorquino, com base em entrevistas feitas com mais de 20 pessoas. Ela acompanhou de perto o trabalho de Edelman e é uma das poucas pessoas a ter visto o documentário pronto, do começo ao fim. Como poucos, é capaz de descrever com autoridade o produto final.
“Pensei se ver essas imagens configurava uma profanação”, escreveu Sarah, referindo-se às sequências mais sombrias do documentário, que incluem a dependência dos analgésicos que acabariam matando Prince. “O mundo inteiro precisa saber todos os tormentos privados, feios, desse gênio? Mas então percebi que a principal sensação provocada (pelo documentário) era de reverência”.
“O filme mostra, de um modo mais emocionante e convincente do que qualquer outra coisa que já vi, a maneira como a vida pode iluminar a arte – e como, ainda assim, uma coisa é tão separada da outra”, Weiss conclui. “Os hematomas e a confusão de toda a experiência (da vida) são transfigurados pelo artista até virar algo coerente e coeso: um presente perfeito”.
Sergio Mendes
O niteroiense que internacionalizou a música brasileira
Se a música brasileira é conhecida mundo afora, boa parte do crédito deve-se ao niteroiense Sergio Mendes.
Apesar do estrondo provocado pela bossa nova, lançada para o mundo em 1962 com um show-invasão no Carnegie Hall, em Nova York, e popularizada em seguida por artistas como João e Astrud Gilberto e Tom Jobim, Sergio deu um passo adiante fundamental: pianista e bandleader, ele soube internacionalizar o samba-jazz que já praticava no Rio de Janeiro quando mudou-se para Los Angeles, preocupado com os desdobramentos do golpe militar de 1964.
Acrescentou a dosagem certa de pop, soul, R&B ou jazz, posicionou a antena para eleger as melhores oportunidades de burilar com suíngue carioca versões de sucessos correntes, criou uma aliança importantíssima com Herb Alpert – superastro de música instrumental pop nos Estados Unidos e um dos donos da gravadora A&M Records, da qual foi contratado – e, à frente de sua banda, Brasil '66, oferecendo nela espaços a conterrâneos e colegas como Marcos Valle e Rosinha de Valença e trazendo para o grupo o charmoso português cantado com sotaque americano por Lani Hall (mais tarde substituída pro Gracinha Leporace), “traduziu” à sua maneira petardos como “Mas Que Nada”, de Jorge Benjor, “The Look of Love” (do então campeoníssimo duo de compositores Burt Bacharach e Hal David) e “Fool On The Hill”, dos Beatles, criando hits mundiais de inegável e irresistível molho brasileiro.
O somatório de seus 60 anos de carreira inclui 14 aparições entre os Top 100 da parada americana, incontáveis aparições em programas de TV dos Estados Unidos, em horário nobre, turnês com Frank Sinatra, gravações com Stevie Wonder, um prêmio Grammy (em 1992, pelo álbum Brasileiro) e uma indicação para o Oscar (pela canção “Real in Rio”, feita com Carlinhos Brown para o longa de animação Rio, de 2011).
Sergio morreu na semana passada, aos 83 anos, em Los Angeles.
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A enquete do FAROL
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Hoje, o assunto é livro.
A 22ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP, rola daqui a pouco, entre 9 e 13 de outubro, dando sequência a um período de eventos ligados a livros iniciado semana passada, com a abertura da 27ª Bienal do Livro, realizada em São Paulo.
São encontros que movimentam o mercado e trazem fôlego renovado a um setor que registrou queda nas vendas pelo segundo ano consecutivo, de acordo com dados divulgados em maio pela Pesquisa Produção e Venda do Setor Editorial Brasileiro 2024. Um cenário afetado, em boa parte, pelo fechamento de um número enorme de livrarias.
E você? Continua comprando e lendo livros? Com frequência? Vale ser em papel ou em versões digitais baixadas para seu dispositivo móvel.
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Resultado da enquete anterior
Na semana passada, perguntamos: você tem assinatura de jornal impresso? 47% responderam que não, pois preferem ler online. 44% disseram que sim. 5% compram jornais impressos apenas eventualmente, nas bancas. Enquanto 4% simplesmente não leem jornal.
Álbum ilustrado une o presente e os horrores da ditadura franquista na Espanha. Talk shows nos Estados Unidos: nunca mais às sextas. Uma crônica inédita de João do Rio. Cinema, teatro e TV perdem o majestoso James Earl Jones. E que tal levar para casa um pedaço de Game of Thrones?
– Acaba de ser editado no Brasil O Abismo do Esquecimento, álbum de quadrinhos que faz o elo entre o presente da Espanha e os horrores praticados no passado pelo General Francisco Franco. Junto com o quadrinista Paco Roca, o jornalista Rodrigo Terrasa elaborou uma trama baseada em fatos, a partir da luta de uma mulher para recuperar os restos mortais do pai, vítima da ditadura franquista. Na história, surge Leoncio Badia, o coveiro que se apieda dos mortos trazidos às centenas pelos soldados para enterrar em valas comuns e resolve identificar sigilosamente cada um, pensando nos familiares. Um deles é José Celda, fuzilado pelo regime aos 45 anos. Sua filha, Pepica, levou décadas até conseguir exumar os restos do pai, amparada pela Lei de Memória Histórica, aprovada em 2007 pelo governo de José Luiz Rodrigues Zapatero. Desde seu lançamento, no final do ano passado, já foram vendidas na Espanha 60 mil exemplares do álbum. “Sem dúvida, o esquecimento foi o preço alto que teve de ser pago para reconciliar o país após a ditadura”, diz Roca. “Mas isso não curou as feridas de uma Espanha que sofreu repressão e nunca foi capaz de lamentar seus mortos”.
– Agora é oficial: talk show de fim de noite nos Estados Unidos só de segunda a quinta. Sexta passa a ser dia de reprises. A mudança é resultado da mudança dos hábitos do público americano e afeta todos os programas do gênero. O último a sucumbir ao corte foi o Tonight Show, apresentado por Jimmy Fallon. Se antes os talks shows eram poucos – com os decanos Johnny Carson e David Letterman na dianteira – e assistidos por milhões de pessoas, com o passar do tempo o terreno ficou superlotado de novas atrações, os talk shows perderam o encanto de antigamente e a audiência mudou-se para o YouTube, onde pode encontrar trechos selecionados do programa da noite anterior, e na hora que quiser.
– Corria o início do século 20, e João do Rio, um dos mais afiados cronistas da capital federal, publicava suas observações sobre a modernização por que vinha passando a cidade e as mudanças em curso no país. Algumas delas agora estão reunidas no livro O Fim do Maxixe, recém-lançado. O jornal Nexo publicou uma crônica inédita, dentre as várias incluídas no novo volume, intitulada “Santa roleta”, onde João tece a ligação entre estações de águas e a jogatina.
– O cinema, o teatro e a TV perderam esta semana o ator americano James Earl Jones. Conhecido tanto por sua voz majestosa – usada para dar vida a Darth Vader e a Mufasa, de O Rei Leão –, Jones tinha também uma presença imponente na tela e no palco, como visto na comédia Um Rei em Nova York e em Fences, peça de August Wilson encenada na Broadway. Ao longo de mais de seis décadas de carreira, durante a qual trabalhou em mais de 80 filmes e participou de mais de 70 produções para a TV, coletou um Oscar honorário, dois prêmios Emmy, um Grammy e três prêmios Tony, entrando para o time seletíssimo dos artistas chamados de EGOT, por terem sido agraciados com as quatro premiações. Ironicamente, apesar de ser dono de uma das vozes mais famosas do cinema, James sofria de uma severa gagueira, quando criança. Ao ser convocado por George Lucas para fazer um teste para Guerra nas Estrelas-Uma Nova Esperança, competiu pelo papel/voz do Lord Darth Vader com Orson Welles. “Mas James venceu disparado”, lembra Lucas, “ele criou, com muito poucas falas, um dos maiores vilões de todos os tempos”. O ator recebeu não mais que sete mil dólares por aquele primeiro trabalho na série. James Earl Jones morreu aos 93 anos.
– Que tal levar para casa a espada de Jon Snow, feita de aço Valiriano? Ou a mão de ouro de Jamie Lannister? Pois chegou sua oportunidade de ser dono de um pedaço da série Game of Thrones, fenômeno de audiência baseado nos livros de George R. R. Martin que recebeu 59 prêmios Emmy no decorrer de oito temporadas. Mais de duas mil peças usadas na série – de objetos de cena a máscaras e roupas – serão leiloadas pela casa Heritage Auctions, em Beverly Hills, de 10 a 12 de outubro, numa parceria com a HBO.
PLAYLIST FAROL 95
Eddie Vedder regrava Tom Petty. The Heavy Heavy sai do Túnel do Tempo. O jazz progressivo de Aaron Parks. Mais uma Flor cantora de linhagem musical. O som sem fronteiras – e com muitas curvas – do armênio Tigran Hamasyan. A versão "de câmara” do King Crimson, ao vivo. O pop psicodélico de MEMORIALS. O softt-rock feminino de Clairo. Os vocais vintage de Jana Mila. E a despedida ao baixista Herbie Flowers
Eddie Vedder – “Room at the Top”– A trilha da série Bad Monkey, da Apple TV+, está recheada de regravações de músicas de Tom Petty. The War On Drugs se encarregou de “You Wreck Me”, os Meridien Brothers, de Bogotá, remodelaram “Yer So Bad”. Outras são feitas por Weezer, Jason Isbell, Sharon Van Etten e Kurt Vile. Mas será difícil superar essa versão explosiva, emocionante, que Vedder criou, produzida pelo mesmo Andrew Watt que trabalhou recentemente com o Pearl Jam e os Rolling Stones, e trazendo nos teclados uma participação estelar de Benmont Tench, que era da banda de Petty.
The Heavy Heavy – “Happiness”– O quinteto britânico encabeçado pelos vocalistas Georgie Fuller e William Turner parece ter emergido de um Túnel do Tempo trazendo uma gravação feita em algum chalé de Laurel Canyon nos anos 1960, com uma sonoridade folk pop não muito distante de The Mamas & Papas.
Aaron Parks – “Sports”– Jazz progressivo, com um certo parentesco com a Mahavishnu Orchestra de John McLaughlin, impressão provocada possivelmente pelo diálogo do piano do nova-iorquino Parks com a guitarra envenenada de Greg Tuohey, nessa faixa de seu terceiro álbum, Little Big III.
Flor – “FOMO” – Mais uma Flor cantora que herdou genes artísticos. Dessa vez, a filha de Seu Jorge. Ela está lançando seu primeiro álbum, Prima, uma mescla bem urdida de pop, hip hop, R&B e samba rock gravada entre Rio de Janeiro e Los Angeles (onde mora há 10 anos). Misturando inglês e português, Flor também compõe – tem parcerias anteriores com Arthur Verocai e Marisa Monte – e aqui traz uma colaboração com Alé Araya, produtora e multi-instrumentista chilena também baseada em L.A..
Tigran Hamasyan – “The Kingdom” – Pianista e compositor armênio, Tigram produziu uma jornada sonora de jazz rock progressivo que derruba fronteiras, transmuta e faz curvas inesperadas a todo momento. De tirar o fôlego.
King Crimson – “Heartbeat”– Enquanto isso, vem à tona o registro da turnê europeia empreendida por uma das formações mais enxutas de um dos gigantes do rock progressivo instrumental: a escalação “de câmara” do grupo, digamos assim, com Tony Levin (baixo), Bill Brufford (bateria) e Andrew Belew (guitarra e vocais) juntando-se ao fundador e maestro Robert Fripp.
MEMORIALS – ”Lamplighter”– Um teclado anos 1960 impulsiona o pop esotérico, psicodélico, da dupla inglesa formada por Verity Susman e Matthew Simms, respectivamente egressos do Electrane e do Wire, numa amostra de seu primeiro álbum, Memorial Waterslides.
Clairo – “Juna”– Soft-rock feminino para o século 21, feito pela cantora-compositora americana com a ajuda do co-produtor Leon Michaels, o mesmo da saudosa Sharon Jones, e usando instrumentação vintage e arranjos que por vezes trazem à memória os Isley Brothers.
Jana Mila – “Like Only Lovers Could” – Mais uma artista cujo trabalho parece ter emergido da Laurel Canyon de tempos atrás, em seu álbum de estreia, Chameleon, a holandesa Jana soa como Crosby, Stills & Nash ao misturar sua voz à do produtor Todd Lombardo.
Lou Reed – “Walk On the Wild Side”– O contrabaixo de Herbie Flowers está em momentos seminais do pop e do rock. Integrou bandas como Blue Mink e T. Rex, gravou com David Bowie (ele está no hit “Space Oddity” e no álbum Diamond Dogs), Elton John, Bryan Ferry, Cat Stevens e três quartos dos Beatles (todos, menos John Lennon). Mas o trabalho mais conhecido de Herbie talvez seja o fraseado de baixo acústico com o qual costurou “Walk On the Wild Side”, clássico de Lou Reed. Herbie morreu na semana passada, aos 86 anos.