UMA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL CONSEGUE FAZER MÚSICA COM EMOÇÃO? MAIS: OS LIVROS, FILMES E SÉRIES NO HORIZONTE. E ZÉ CARIOCA REIMAGINADO AOS 80 ANOS
Tocar um instrumento musical envolve técnica, preparo, inspiração e emoção – cérebro e coração.
Ainda mais em conjunto, quando um músico interage com outro, através de notas e batidas, conduzindo aquela conversa conforme a experiência e a vivência de cada um, criando-se, a partir dali, um diálogo artístico.
Mas o que acontece quando essa comunicação musical é travada entre um ser humano – de novo, cérebro e coração – e uma máquina comandada por uma Inteligência Artificial – programada por um humano, mas um ser digital?
É algo bem diferente da forma como IA é empregada, como assistente virtual (atire a primeira pedra quem não usa Alexa ou Siri), ou, por empresas jornalísticas, como o Los Angeles Times, que treinou um programa para “escrever" matérias simples, exemplificadas por relatos instantâneos de um terremoto recém-ocorrido.
Atender a um comando de voz e responder com uma simulação de humanidade – falando ou escrevendo – é uma coisa. Mas fazer música?
Um ser humano pode sentir a música que toca e ouve, mas o que uma IA faz? “Digere" dados e os devolve matematicamente? Reproduz sentimento? Evoca e provoca emoção?
Quem foi ao concerto do grupo de música de câmara moderna Ensemble Signal no DiMenna Center for Classical Music, em Nova York, na semana passada, presenciou uma resposta à pergunta, durante o encontro de dois solistas: a flautista e compositora Nicole Mitchell, veterana do jazz, e o Voyager, programa de IA capaz de ouvir uma interpretação musical e responder com improvisos, plugado num teclado Yamaha Disklavier, via computador.
Nicole e a IA interpretaram “Tales of the Traveller”, peça de 20 minutos composta por George Lewis, compositor e pioneiro da música feita por computador, responsável pela programação inicial do Voyager, 35 anos atrás.
"Está vivo!”, reagiu o crítico Seth Colter Walls, do The New York Times, quando o Disklavier começou a tocar junto com Mitchell. Embora tenha notado que Mitchell começou puxando a conversa musical – enquanto o Voyager “limitava suas contribuições a filigranas nos altos registros … ou às vezes preferia ficar em silêncio … uma vez que parte de um improviso é saber quando silenciar” –, Walls fez questão de enfatizar que “no momento em que o Voyager decidiu se manifestar com um fortissimo, durante um trecho relativamente silencioso da peça, "a provocação foi feita na hora certa”.
Uma demonstração adicional das possibilidades do Voyager pode ser apreciada num video de 2020, postado no YouTube, onde o próprio George Lewis sola seu trombone junto com o Voyager.
Outro exemplo da interação de uma IA com humanos é o projeto Sound of the Earth: Chapter 3, desenvolvido por Yuri Susiki – artista sonoro londrino – em parceria com Google Arts & Culture para a Triennale de Milano, onde pode ser visitado até dezembro.
Uma sinfonia de sons do mundo inteiro é construída com milhares de trechos coletados de diferentes lugares do planeta e montados por uma IA encarregada de orquestrar tudo aquilo, e reproduzida por 300 altos falantes montados numa enorme estrutura esférica representando a Terra.
A composição resulta das escolhas da IA e muda a todo instante, na medida em que sons novos vão sendo adicionais, e cada novo trecho é reproduzido por um alto-falante posicionado na região geográfica do planeta que ele representa.
Qualquer um pode participar do projeto. Basta acessar o site para acrescentar seu som: uma vocalização, um assobio, um fraseado de guitarra, uma percussão ou um acorde de piano, o que você quiser. Em segundos sua contribuição aparece no todo, combinada e harmonizada com os sons existentes e que estão sendo ativados naquele momento.
Yuri trabalha com isso desde 2005, quando começou a compilar sons colhidos durante suas viagens. A primeira etapa do projeto resultou em uma coleção de 30 minutos de sons e músicas do mundo inteiro. Na segunda etapa, exibida no Dallas Museum of Art, em 2019, Suzuki já havia optado por reproduzir os sons numa estrutura em forma de domo.
“Estou interessado em viabilizar uma forma democrática de se criar a trilha sonora do mundo”, disse Suzuki à revista Fast Company.
E MAIS:
– Dicas de livros pipocando aos quatro ventos, todos saindo do forno. Por aqui, O Globo destaca o novo de Marcelo Rubens Paiva, autor do celebrado Feliz Ano Velho: o também autobiográfico Do Começo Ao Fim, onde o autor "faz um acerto de contas com relações vividas com mulheres que cruzaram sua vida”. A revista francesa Les Inrockuptibles amplia o leque, propondo nada menos que 40 novos romances, 17 ensaios e 20 HQs em sua edição de outubro. São “westerns modernos, contos ecológicos, poesia melancólica, velhice e morte”. E The Stolen Year, de Anya Kamenetz, examina como a pandemia afetou a juventude americana.
– Exatamente um ano atrás morria Charlie Watts, baterista dos Rolling Stones, aos 80 anos. Seus companheiros de banda de vida inteira homenagearam o músico, coletivamente e individualmente, com postagens feitas nas redes sociais da banda, de Mick Jagger , Keith Richards e Ronnie Wood. A tempo: sai em outubro Charlie’s Good Tonight: The Life, the Times, and the Rolling Stones, biografia oficial do baterista, escrita pelo jornalista britânico Charlie Sexton, também autor de livro sobre a vida e a obra de Prince. Com prefácio de Mick e Keith, a biografia promete ir fundo para relatar a história “da rocha no âmago dos Rolling Stones por quase 60 anos – o contraponto intelectual, contemplativo, embora não menos atraente, à estridência de seus colegas de banda”.
– Dois novos trailers dão um gosto do que está para chegar ao streaming no próximo mês: misturando animação state-of-the-art e atores humanos, Pinóquio – dirigido pelo mestre da ficção fantástica, Robert Zemeckis, e estrelado por Tom Hanks, com quem já trabalhou em clássicos como Forrest Gump: O Contador de Histórias e Náufrago – estreia em 8 de setembro na Disney +. E a quinta temporada de O Conto da Aia – disponível a partir de 18 de setembro na Paramount + – é precedida por trechos eletrizantes, onde June (Elisabeth Moss) caça Serena (Yvonne Strahovski) para deixar claro que é responsável pela morte de Fred (Joseph Fiennes).
- Essa semana Zé Carioca, o personagem criado por Walt Disney após uma visita feita ao Brasil, em 1941, completa 80 anos. O chargista Mig Mendes reimaginou o famoso papagaio para o Rio de Janeiro do século 21.
P&R (Pergunte a José Emilio Rondeau. Ele responde!)
"Você teria entrevistado o Clash, em 1981, mas, pelo que consta, essa entrevista nunca foi publicada. Existiu mesmo esse encontro ou é uma lenda?” – Cris, Niterói-RJ
JER: No gelado outono de de 1981, o Clash ocupava o estúdio Electric Lady (construído por Jimi Hendrix no final da década de 1960) para gravar o álbum Combat Rock, quando passei pela cidade para um périplo de shows: King Crimson, no Savoy; U2, no Ritz; e os Rolling Stones, no Madison Square Garden.
Tinha marcada, previamente, uma entrevista com Bono e The Edge, mas, após idas e vindas rocambolescas (telefonemas inconclusivos, planos feitos e descombinados e negociações em mesas de bar com Kosmo Vinyl, facilitador/complicador/empresário do Clash), no dia seguinte ao show do U2 confirmou-se uma ida ao número 52 da rua W 8th, no Greenwich Village, onde até hoje fica o estúdio. Por causa disso, o papo com o U2 foi cancelado.
Joe Strummer, Mick Jones, Paul Simonon e Topper Headon passaram algum tempo (minutos, talvez, não chegou a horas) tocando algo ainda amorfo, impossível de ser identificado depois do disco pronto, enquanto, na sala de controle, eu ajudava a diminuir o estoque de cerveja da geladeira.
No intervalo, os músicos se reuniram em círculo, já cansados, mas aparentemente dispostos a conversar. Joe começou a fazer piadas sobre o disco que estavam gravado, descrito por ele como sendo um “spaghetti western”. E dava a impressão de que responderia tudo daquele jeito, não muito a sério.
Com a distância de tanto tempo desde então, é muito possível que a conversa poderia ter prosseguido, de uma forma ou de outra, e até renderia um texto interessante. Bolas, era o Clash, falando – a mais importante banda de rock do mundo naquele momento. Mas a insegurança do momento, a dificuldade em ler o ambiente e avaliar melhor o estado de espírito deles – estão com a cabeça em outro lugar e querem se livrar da entrevista ou são assim mesmo? – levou à decisão de se jogar a toalha e deixar a conversa terminar por ali mesmo.
E nenhuma matéria sairia daquele encontro intenso, mas desconcertado e curto.
O Clash, naquela formação, deixaria de existir em 1983, e qualquer possibilidade de uma nova tentativa de entrevista se desintegrou junto. E jamais tive outra oportunidade de falar com os meninos irlandeses. Acontece.
"Como foi encher a cara com Lemmy, do Motorhead?” – Duda, Salvador-BA.
JER: “São três horas da tarde e Lemmy já começou a servir porções generosas de bourbon (misturado com) Coca-Cola – ‘rock and roll, certo? Fucking A!’”.
Assim começava a matéria que escrevi para a revista Bizz, publicada em julho de 1991, sobre a tarde quente, de inicio de verão, que passei com o Sr. Kilmister em seu apartamento-padrão (decorado com bandeiras, como as do Brasil e da Alemanha nazista, pentes de bala para metralhadoras e garrafas vazias de bourbon), a poucos passos dos pontos favoritos do baixista, vocalista e frontman do Motorhead – os legendários nightclubs Roxy e Rainbow, no coração de West Hollywood, em Los Angeles.
Foram quase hora e meia de causos, sinceridade em estado puro, gargalhadas – sobretudo, de muita, mas muita bebida.
Para ele – um dedicado atleta do copo, ali no vigor de seus 46 anos – , o birinaite à tardinha não parecia ser nada de mais. Na verdade, receber a imprensa acompanhado de Jack Daniel’s ou algum outro aditivo (líquido ou não) era, à época, de rigueur entre músicos de rock.
Foi assim, por exemplo, quando conversei com Slash não muito longe dali, no (hoje extinto) restaurante Hamburger Hamlet, quando o Guns N’ Roses ainda estava lapidando o álbum Use Your Illusion. Mas, ao contrário do guitarrista americano – e de Keith Richards, Flea ou David Bowie, que jamais ofereceram compartilhar o que estavam consumindo (vodka com Fanta, para o Stone; maconha, no caso de Flea; café espresso, para o ex-Ziggy) quando os entrevistei – , Lemmy não apenas era generoso com sua bebida, como insistia que seu convidado o acompanhasse … no seu ritmo, que não era o de meros mortais.
Felizmente, tudo do divertido papo com Lemmy foi gravado – e a matéria está disponível na internet. Caso contrário, dificilmente me lembraria de tanto do encontro.
Bronzeado, sem camisa e descalço, vestindo apenas um shorte de jeans, Lemmy fumou um Marlboro depois do outro enquanto falava sobre o álbum que estava lançando, 1916, elogiou as “garotas daqui – inacreditáveis”, demonstrou seu alivio por não ter um carro (“Para quê? Meus clubes favoritos ficam a dois quarteirões. Além disso, bebo demais para dirigir. Ia dizimar a cidade inteira”) e relembrou a miniturnê que o Motorhead havia feito no Brasil, em 1989, motivação para uma das faixas do novo disco, “Going to Brazil”.
Por causa de um instabilidade na energia, o show em São Paulo foi cancelado, tornando a excursão “curta demais. E a moeda, então … puff”, ele exclamou, com um gesto dramático, para enfatizar sua confusão com o câmbio da época. “Que loucura, eu não entedia nada. Entregava meu dinheiro nas lojas, nos táxis, e dizia: ‘pode me sacanear, sou um turista, porra!’”.
Já zonzo e agarrado ao bocadinho de sensatez que me havia sobrado, percebi que para sair dali e chegar em casa inteiro precisaria de muita água para tentar desanuviar a cabeça e afogar o porre em doses cavalares de hidratação.
Mas não seria o bastante. Já na rua, depois de me despedir de Lemmy – que parecia tão inteiro e coerente quanto quando cheguei – parei no primeiro 7-Eleven que encontrei para comprar o café mais forte possível num mundo pré-Starbucks-em-cada-esquina.
Funcionou. Los Angeles sobreviveu a minha absoluta irresponsabilidade no volante. Lemmy, enquanto isso, manteve seu ritmo rock and roll até morrer, no final de 2015, aos 70 anos.
E você, tem alguma pergunta a fazer, alguma dúvida a tirar? Escreva para jer.farol@gmail.com.
PLAYLIST FAROL 1- A seleção comentada da semana
Inédita de Joe Strummer. PJ Harvey grava Leonard Cohen. Diferentes gerações de baianidades unidas em torno do candomblé e do samba. Etnologia + gospel. As paisagens sonoras de Beth Orton. E um acalanto mexicano para celebrar a vida.
Joe Strummer, The Mescaleros – “Fantastic”– Para marcar os 70 anos de nascimento de Joe Strummer, parte da alma do The Clash, morto em 2002, sai mês que vem a compilação Joe Strummer: The Mescalero Years, com faixas inéditas ou raras, como esta gravação, feita no dezembro do último ano de vida de Joe.
PJ Harvey, Tim Phillips – “Who By Fire”– A trilha da nova série de TV da Apple TV +, Mal de Família, traz esta versão de uma canção de Leonard Cohen, feita por nossa eterna musa Polly Jean com a ajuda do compositor Tim Phillips (que já havia assinado a trilha de outra série dos mesmos produtores, Shining Vale).
Todd Rundgren, Adrian Belew – “Puzzle“ – Um dos principais guitarristas da ala mais inventiva do rock – integrante do King Crimson na década de 1980 e colaborador de David Bowie, Talking Heads e Frank Zappa no palco e no estúdio – Belew integra o time de convidados do novo álbum de um mestre do pop dos anos 1960 e 1970, Space Force, que sai em outubro.
Russo Passapusso – “Mirê Mirê” – Diferentes gerações de baianidades se encontram quando o vocalista do BaianaSystem une forças com Antonio Carlos e Jocafi, dupla icônica da MPB-pop da década de 1970, num misto de ponto de candomblé e samba, com participação especial de Gilberto Gil e do grande percussionista Djalma Moreira.
Montaigne, David Byrne – “gravity” – E por falar em Talking Heads, David Byrne participa da nova da cantora-compositora australiana Jessica Cerro, parte do álbum Making It!, o terceiro da artista de art-pop, que sai mês que vem.
Jake Blount – “Didn’t It Rain”– Criatura singular, Jake é pesquisador da etnologia da música e artista musical. Ele toca e ensina banjo num grupo de bluegrass e palestra em Yale. Seu novo álbum, o denso The New Faith, é um achado especial: as faixas representam o único alento de um grupo de refugiado negros, depois que os ecosistemas do mundo foram destruídos por guerras. São canções originais e versões de clássicos do cancioneiro negro americano, como esta faixa gospel, originalmente gravada por Sister Rosetta Tharpe e Mahalia Jackson, mas apresentada aqui de forma mais crua e contundente.
Tommy McLain – “I Ran Down Every Dream”– Quarenta anos separam o último lançamento de Tommy, "a lenda do pop pantanoso” dos anos 1960 – apelido adquirido por conta de sua mistura de R&B e country no estilo de Nova Orleans –, do recém-lançado I Ran Down Every Dream. A voz curtida pelas décadas difere do timbre de sua juventude, mas, auxiliado por artistas como Elvis Costello e Nick Lowe, Tommy triunfa com emoção genuína, rock de raiz autêntico e arranjos delicados, que criam um clima quase de sonho.
Beth Orton – “Friday Night”– Produzindo a si mesma pela primeira vez em 30 anos de carreira, a inglesa Beth cercou-se de craques como o saxofonista Alabaster dePlume e o baterista Tom Skinner (The Smile e Sons of Kemet) para realizar talvez seu álbum mais arrojado, povoado por paisagens sonoras tão complexas quanto emocionantes, como exemplificado pelos sintetizadores e mellotrons desta faixa.
Nick Hakim – “Happen” – Indie folk sussurrado, romântico e em ritmo lento, vindo do Brooklyn, parte de um novo álbum, Cometa, que fala do doce e do fel do amor.
Silvana Estrada – “Brindo” – Serve como bálsamo e antídoto ao baixo astral reinante a canção-acalanto da cantora-compositora mexicana, parte de seu novo EP, Abrazo. Uma prece de esperança por dias melhores e um agradecimento pelo que de bom a vida traz.