Um 'desfile de depravação', filme de 1979 tenta ser levado a sério como obra cinematográfica
Tão repugnante quanto fascinante, recheado de cenas de sexo sem freios, 'Caligula' quase enterrou a carreira de seu astro, Malcolm McDowell. Agora, uma nova montagem pede que o filme seja reavaliado
"Um holocausto moral", decretou a revista Variety, quando o filme foi exibido pela primeira vez para a imprensa. “Lixo repugnante, desprezível”, rugiu o crítico Roger Ebert, “não é arte boa, não é cinema bom, nem é pornografia boa”. "Um desfile de depravação”, sentenciou a Newsweek. ”Uma mistura interessante de arte e órgãos genitais”, descreveu Helen Mirren, a principal estrela feminina do longa, para quem trabalhar nele foi o equivalente a "ir todos os dias para o Inferno de Dante".
Renegado por seu roteirista (o celebrado escritor americano Gore Vidal), seu diretor (o italiano Tinto Brass, especializado em filmes eróticos) e mesmo pelo editor e pelo compositor da trilha musical, ainda assim Caligula, o luxuoso e caro longa histórico/fantasioso/pornô lançado pela Penthouse Films em 1979, anunciado como "um novo tipo de cinema, misturando arte e sexo" e estrelado por Malcolm McDowell, a hoje Dame Mirren, Peter O’Toole e John Gielgud – mais uma legião de peladões e peladonas em variadas formas de furiosa e explícita atividade sexual – ganhou fama e mitologia no decorrer de quatro décadas de escândalo e intrigas. Talvez, justamente por isso.
Agora, Caligula está pronto para ser redescoberto e reavaliado, graças a uma nova montagem do filme, feita a partir de 96 horas de filmagem jamais usadas, garimpadas pelo historiador (e também músico de rock indie) Thomas Negovian num galpão malocado em um subúrbio de Los Angeles, para um trabalho de restauração que demorou três anos.
Negovian afirma ter reconstruído Caligula sem utilizar um único frame visto no lançamento original. Dessa forma, teria trazido à tona a riqueza dramática do longa de três horas de duração, jamais vista antes. E pretende que agora o filme seja levado a sério como obra cinematográfica.
O historiador teve o cuidado de restaurar as imagens contidas nos negativos originais, de criar efeitos visuais adicionais e de recuperar as falas gravadas pelos atores, utilizando novas tecnologias para retirar o ruído ambiente em cenas onde mal se ouve a voz do artista, e mesmo devolvendo a voz à atriz Teresa Ann Savoy, dublada na montagem lançada em 1980. Além disso, utilizou nova trilha musical. E, sim, ainda há sexo no filme.
O primeiro passo na busca de uma segunda chance para o filme foi dado no último Festival de Cannes, em maio deste ano, onde o público e a imprensa puderam conhecer a nova montagem realizada por Thomas, que seguiria o roteiro escrito por Vidal. Criou-se, ainda, um site para ancorar o relançamento, onde qualquer um pode se cadastrar para receber notícias relativas a novas exibições da reedição do longa (já se fala de sessões na França e na Inglaterra), e onde pode-se comprar um livro fotográfico com mais de 200 páginas documentando a feitura de Caligula.
Espera-se, assim, que o que ficou conhecido como uma orgia desenfreada luxuosamente produzida para o cinema se metamorfoseie no filme que Vidal tinha em mente, e para o qual convenceu Malcolm McDowell a se disponibilizar. O desejo é que Caligula seja reabilitado e, possivelmente, até considerado uma obra de arte.
"As histórias sobre 'o que Caligula poderia ter sido' são legendárias nos círculos cinematográficos”, argumenta Negovan. “Nesta nova montagem, Malcolm começa como um jovem assustado que acaba assumindo o poder (como imperador), mas depois se vê atraído de forma inescapável por um tipo de comportamento depravado e torna-se progressivamente desvinculado da realidade, até que faz as pazes consigo mesmo, de uma maneira existencial”.
Existencialismo é algo distante anos-luz do que se vê nas partes mais grotescas do filme original, mas Negovan acredita ter conseguido desencavar o grande tesouro de Caligula: a qualidade de interpretação de Malcolm McDowell no papel-título.
"O arco narrativo do personagem (de Malcolm) está completamente ausente da versão do filme que o mundo conhece há décadas”, continua Thomas, “Malcolm McDowell é uma potência de ator que estava no topo da forma quando fez o filme, e me deixa muito animado saber que o desempenho dele naquelas filmagens finalmente deixaria o terreno do mito para chegar às telas”.
Apesar do elenco de grandes estrelas do teatro e do cinema ingleses que participam do filme, Malcolm McDowell era o nome de maior atração em meados dos anos 1970, quando Gore Vidal escreveu o roteiro do que esperava ser uma visão realista das ruas e da falência moral da Roma antiga. “Nada de fantasia”, o autor enfatizou numa carta para o diretor Tinto Brass, antes do início das filmagens. "Acima de tudo, nada de fantasia, nada de Fellini”. Ironicamente, Fellini havia sido uma das escolhas iniciais para dirigir o filme – assim como John Huston.
Malcolm tinha virado sensação graças ao violento A Laranja Mecânica, longa de ficção-científica distópico de Stanley Kubrick, lançado em 1971, e vinha de uma série de comédias-cabeça-absurdistas (Um Homem de Sorte) e de filmes baseados em fatos históricos, como a Segunda Guerra Mundial (A Viagem dos Condenados). Vidal queria McDowell para o papel-título de seu filme. Mas o ator percebeu que havia alguma coisa estranha quando seu primeiro encontro com Gore, em Londres, foi marcado no clube da Penthouse, um dos desdobramentos da revista masculina (leia-se “de sacanagem”) americana capitaneada desde 1965 pelo fotógrafo nova-iorquino Bob Guccione. E mais: o publisher da revista financiaria sozinho o filme, apesar de sua experiência no mundo do cinema se resumir, àquela altura, a ter investido em filmes como Chinatown e O Dia do Gafanhoto. Bob enterrou mais de 17 milhões de dólares em Caligula, seis a mais do que George Lucas gastou para fazer o primeiro filme da série Guerra nas Estrelas – e o equivalente a 85 milhões de dólares, hoje em dia.
Entretanto, McDowell sentia-se plenamente à vontade para aceitar o papel – por causa de Vidal. O título do filme, naquele momento, seria O Caligula de Gore Vidal, o que dava peso intelectual e prestígio à empreitada.
Mal sabiam os dois que a intenção de Guccione era injetar no filme o máximo de conteúdo pornográfico, marca-registrada de seu império editorial. E, apesar de protestos, sempre agindo pelas sombras, Bob atingiu seu objetivo.
Vidal e Brass acabaram brigando durante a filmagem, por diferenças criativas (de pirraça, o italiano havia contratado o mesmo designer de produção de Fellini e ouviu do roteirista célebre o comentário de que o set de filmagem mais parecia um lobby de hotel em Miami Beach) , e a desavença ganhou proporções épicas, com o escritor esculachando o diretor publicamente – “num mundo propriamente ordenado, ele seria um limpador de janelas em Veneza” – e Tinto acusando o roteiro de Gore de ser “burguês" e feito por "um velho esclerosado”.
Uma vez encerradas as filmagens, Guccione demitiu Brass e convocou atores e atrizes de filmes pornô para protagonizar cenas explícitas de sexo que ele filmou durante uma semana nos mesmos cenários usados para as cenas dramáticas de Caligula. Na hora de montar o filme, foi inserindo essas novas cenas onde bem entendia, criando “interações” entre o elenco principal e trechos de orgias variadas.
Não é de surpreender a reação do Tinto e de Gore, quando o filme saiu, dois anos depois de pronto, embolado num emaranhado de processos, a ponto de se distanciarem o máximo possível dele. Acreditava-se, ainda, que a péssima reputação de Caligula destruiria a carreira de McDowell. O que não aconteceu, na verdade. Ele trocou a Inglaterra por Hollywood e engrenou uma série variadas de filmes, muitas vezes no papel de vilão, alguns desenhos animados e séries de TV de prestígio. Helen Mirren, por sua vez, escapou ilesa, e hoje é uma estrela talvez ainda maior do que na época do fiasco de Caligula.
Mas agora, como reagiram à nova montagem os artistas do elenco que ainda estão vivos? E o diretor do filme original?
Brass, hoje com 90 anos, rechaçou a montagem de Guccione e também renega o filme como está agora. “Não corresponde ao meu projeto original”, ele ralhou, “e a plateia vai ser enganada pelo uso arbitrário do meu nome (nos créditos)”.
Helen Mirren estava em Cannes quando a “montagem definitiva” foi exibida, mas não compareceu à sessão, nem se manifestou publicamente a respeito dela. Enquanto isso, Malcolm, hoje com 80 anos, lembra que sentiu-se “traído”, quando saiu o filme original. “Nem conseguia assistir”.
No entanto, McDowell acredita que Thomas Negovan conseguiu fazer "um trabalho fantástico. Virou uma obra-prima? Não. Mas é interessante. É todo um outro filme. É bastante assistível”.
Nova Zelândia mostra a arte dos povos originários da Austrália. Festival FotoRio celebra 20 anos no Rio de Janeiro. De quem é essa música? Autoria coletiva de sucessos pop vem se alastrando. Os bouquinistes contra os Jogos Olímpicos de Paris. E novos documentários enfocam a cena musical de São Francisco, nos anos 1960/1970, e a trajetória de Wayne Shorter, craque do jazz.
– A maior mostra de arte feita pelos povos originários da Austrália está em cartaz na Auckland Art Gallery, na Nova Zelândia. A exposição Ever Present reúne mais de 150 obras – em diferentes suportes, inclusive audiovisual –, criadas por alguns dos nomes mais influentes das artes australianas – como Vernon Ah Kee, Emily Kame Kngwarreye e Albert Namatjira – e oferece também palestras e oficinas. “Um dos temas desta exposição é a autodeterminação através da ação”, disse ao jornal The Guardian Nathan Pohio, curador senior da galeria. “Existe essa ação decolonial ocorrendo internacionalmente com povos indígenas em todo o mundo. Há algo no ar no momento, esse acerto de contas. As pessoas estão sendo honestas sobre isso e falando sobre isso, e essa é uma ideia particularmente poderosa”.
– Enquanto isso, no Rio de Janeiro, o Festival FotoRio celebra seus 20 anos com uma exposição no Centro Cultural da Justiça Federal que reúne trabalhos de artistas de países como Irã, Áustria, Colômbia, França e, claro, Brasil, destacando a diversidade de propostas da fotografia do século 21. São imagens que retratam desde o feminicídio e a violência doméstica (pelos olhos da francesa Camille Gharbi) a colonialidade (feito pela austríaca Belinda Kazeem-Kaminski) e o convívio no interior colombiano entre o conflito armado e questões de meio-ambiente e relações de gênero (através dos cliques de Federico Rios Escobar).
– De quem é essa música? Uma dúzia de autores assinando um mesmo samba de enredo não é novidade para o brasileiro. Mas cada vez mais artistas do pop internacional lançam canções de autoria atribuída a até 20 pessoas diferentes. O fenômeno, apontado por Antonio Carlos Miguel em matéria para O Globo, vem se espalhando e esbarra nas regras do Grammy, cuja organização cogita dar troféus a apenas um ou dois dos autores de uma música premiada, com os demais precisando se contentar com um diploma.
– Pelo menos um grupo não está satisfeito com os Jogos Olímpicos de Paris, que acontecem ano que vem: os bouquinistes, os vendedores de livros que ocupam as margens do rio Sena com barraquinhas de madeira repletas de tesouros literários – de raridades a novidades. A prefeitura quer remover parte dessas barracas – cerca de 600 – temporariamente, por questões de segurança, para a realização da cerimônia de abertura do evento, que envolverá justamente a região onde estão posicionadas. Será o auge do verão – e dos Jogos Olímpicos – e muitos comerciantes argumentam que perderão oportunidades de vendas e arriscarão danos a suas barracas, algumas delas com um século de idade.
– A cena musical de São Francisco, na Califórnia, dos anos 1960 e 1970, é objeto de documentário que estreou essa semana nos Estados Unidos. Feito pelos mesmos realizadores de outro rockdoc – o premiado Laurel Canyon: A Place In Time –, o novo San Francisco Sounds: A Place in Time mostra a efervescência artística da cidade entre 1965 e 1975, onde nasceram e prosperaram artistas como Jefferson Airplane, Grateful Dead, Santana, Creedence Clearwater Revival e Sly and the Family Stone. Um trecho de especial significado mostra o primeiro ensaio de Janis Joplin com a banda Big Brother & The Holding Company. Assista aqui ao trailer.
– E a Amazon Prime exibe documentário musical em três episódios sobre Wayne Shorter, o saxofonista e compositor de jazz conhecido por seu trabalho ao lado de Miles Davis, como fundador do grupo Weather Report, que fundiu jazz e rock, e por diversas colaborações com uma variedade de artistas, de Joni Mitchell a Milton Nascimento. Mas o documentário, dirigido por Dorsay Alavi, mostra facetas pouco conhecidas do músico, morto em março passado, aos 89 anos. Ele também desenvolvia sua criatividade visual, que podia gerar de desenhos de super heróis a graphic novels. E era capaz de compor ao mesmo tempo em que assistia ao noticiário na TV.
PLAYLIST FAROL 49
O Talking Heads no momento em que definia sua sonoridade clássica. Carrtoons combina R&B anos 1970 com jazz e hip-hop século 21. The National agridoce. Os megatons de riffs detonados por CLT DRP. O pop avant-garde bilíngue de Miso Extra. Dolly Parton + dois ex-Beatles. Al Green regrava Lou Reed. O peso e a concisão de HotWax. A nova do Guns N’ Roses. E k.d. lang homenageia Tony Bennett.
Talking Heads – “Once In A Lifetime“ – O sensacional documentário Stop Making Sense, de 1984, no qual o diretor Jonathan Demme registrou o grupo nova-iorquino no momento da carreira em que definia sua sonoridade clássica, em plena escalada rumo ao super estrelato, está sendo relançado, restaurado, em versão 4K. E, junto, sai de novo a trilha-sonora do filme, agora em edição ampliada.
CARRTOONS – “Grace”– O projeto do multi-instrumentista nova-iorquino Ben Carr faz uma mescla de sonoridades que mistura R&B anos 1970 com jazz e hip-hop século 21, aqui auxiliado pela voz da angelena Rae Kallil.
The National – “Alphabet City” – Mesmo tendo lançado em abril passado um álbum com 11 faixas estalando de novas, o quinteto de Ohio resolveu disponibilizar mais duas novas gravações. Entre elas, esta canção agridoce, cheia de clima e cordas e mais falada que cantada, em alguns trechos.
CLT DRP – “I See My Body Through You”– O trio de Brighton, na Inglaterra, traz ecos claros de Siouxsie and the Banshees, mas logo se distingue ao detonar megatons de riffs de guitarra e vagidos lancinantes no refrão.
Miso Extra – “50/50”– Pop avant-garde bilíngue – inglês e japonês – da artista londrina de muitas atribuições (rapper, produtora e cantora), que descreve sua música como sendo "umami para os ouvidos”.
Dolly Parton – “Let It Be” – Para seu novo álbum , Rockstar, que sai em novembro, a veterana diva da música country se cercou de um verdadeiro butantã. Aqui, neste clássico dos Beatles, ela dueta com o autor da música, Paul McCartney (que também toca piano na faixa), é acompanhada por Ringo Starr na bateria, e conta com um solo coruscante de Peter Frampton.
Al Green – "Perfect Day”– O reverendo Al ressurge, após cinco anos sem gravar, com uma versão sublime – e super gospel – de uma das faixas do clássico Transformer, álbum produzido por David Bowie e Mick Ronson que Lou Reed lançou em 1972. A cantora britânica RAYE participa, nos vocais de apoio.
HotWax – “Drop” – E tome riffs pesados de guitarra, cortesia do trio feminino britânico de indie rock, que prefere concentrar seu ataque em compactos dois minutos e um punhado de segundos.
Guns N’ Roses– “Perhaps” – A primeira nova faixa lançada pelo grupo em nada menos que 30 anos reúne o núcleo formado por Axl, Slash e Duff McKagan. Apesar de já vir circulando sob a forma de uma demo, esta seria uma gravação novíssima – o que abre a possibilidade para mais inéditas virem à tona.
k.d. lang – “Because of You”– Ao longo dos últimos 30 anos, lang e Tony Bennett colaboraram inúmeras vezes, em disco e no palco. Agora, ela homenageia o cantor – morto em julho passado, aos 96 anos – com uma regravação da música que rendeu a Tony seu primeiro sucesso, em 1951, e que os dois já haviam cantado juntos no álbum Duets: An American Classic, pelo qual ele ganhou o Grammy, em 2006.