Rita Lee: o principal sinônimo do rock brasileiro
Soberana suprema do rock e estrela de primeira grandeza do pop do país, a ex-Mutante moldou a música popular brasileira à sua própria imagem e abriu caminho para muitas artistas que vieram depois dela
Rita Lee – morta hoje, aos 75 anos, após uma longa batalha contra um câncer – foi quem melhor soube traduzir o rock – um idioma anglo-americano – para o "brasileiro”, mais ainda do que para o português. A ponto de agora ser o principal sinônimo do dialeto que ajudou a lapidar: o rock brasileiro.
Num país que sempre cultivou grandes divas musicais cujo trabalho concentrava-se na interpretação da composição de outros artistas, por ser também compositora e instrumentista Rita ajudou a moldar a música popular brasileira à sua imagem, adicionando alegria, pimenta e senso de humor a uma versão de pop e rock ’n’ roll – ou, na tradução dela, “roque enrow” – que teve contornos diferentes no decorrer de uma carreira de quase 60 anos.
Ainda que em sua primeira investida na música optasse por cantar em inglês – como integrante do trio Teenage Singers, que no início da década de 1960 fazia covers de clássicos de girl groups, como as Shirelles – , assim que integrou-se aos Mutantes – que percorriam um caminho parecido, de abrasileiramento, e deixavam de ser The Wooden Faces –, em 1964, mergulhou de cabeça no português e abraçou de vez a MPB quando o grupo foi convidado para acompanhar Gilberto Gil no 3º Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, onde ele cantou “Domingo no Parque”, meros três anos depois.
Como parte dos Mutantes, inteligentemente “co-optado” pela Tropicália, Rita deu voz, personalidade e corpo – vestida de noiva, disfarçada de musa hippie ou mesmo alienígena – a músicas icônicas do grupo (“Panis Et Circenses”, “Ando Meio Desligado”), numa sequência vertiginosa de discos e shows que os transformou em referência mundial e se estendeu até sua saída – ou melhor, expulsão – do grupo, em 1972, ao ser considerada imprópria para uma desejada trajetória progressiva calcada em acrobacias instrumentais.
Melhor, impossível. Ao tornar-se artista solo, acompanhada por nova bandas – primeiro, as Cilibrinas do Éden, com Lucinha Turnbull; depois, o, Tutti Frutti –, Rita libertou-se e abriu as asas, trocando a pele de componente de um grupo para o qual contribuía para ser uma cronista de seu tempo – identificando o zeitgeist vigente e criando um repertório tão a ver com o momento quanto eterno – e dona de seu destino.
Rita era capaz de ser simplesmente glam – “Mamãe Natureza” – ou de criar hinos perenes – “Agora Só Falta Você”, “Ovelha Negra”. Carnavalizava a caretice – “Miss Brasil 2000” – e brincava com a língua portuguesa como poucos – “O Futuro Me Absolve” e “Agora é Moda”, ambos de Babilônia, seu primeiro álbum ao lado de Roberto de Carvalho, parceiro de vida e de música que ficou a seu lado até o fim.
Até que, em 1979, Rita deu uma guinada em sua carreira que a catapultou a um nível de popularidade, influência e prestígio jamais alcançado por um artista brasileiro de rock. Produzida por Guto Graça Mello, lançou um álbum afinado com o pop state-of-the-art daquele tempo, inclusive a disco music tão em voga, repleto de hits matadores – “Chega Mais”, "Doce Vampiro”, “Mania de Você” – , e ali inaugurou uma fase fértil e criativa de onde nasceram clássicos como “Lança Perfume” (regravado em diversos idiomas, inclusive o hebraico), “Baila Comigo” e “Orra Meu”, uma de suas tantas barretadas ao amor original e imorredouro, o rock, puro e simples.
Nascia, assim, a Rita mais pop de todas, a mais famosa, mega star, sempre antenada e sempre de olho no futuro, mas com o nome definitivamente tatuado na boca e no coração do povo, a Rita Lee com música em trilhas de telenovelas ou mesmo participando delas, protagonizando especiais de televisão e equiparada aos grandes artistas brasileiros de música, não apenas as mulheres.
Embora a década de 1980 tenha sido a mais prolífica de sua carreira, só mais tarde Rita receberia cinco indicações para o Grammy Latino, com o qual foi premiada duas vezes: em 2001, seu 3001 foi escolhido o de Melhor Álbum de Rock em Língua Portuguesa. Ela ainda receberia, em 2022, o prêmio de Excelência Musical, pelo conjunto da obra.
Rita imprimiu sua personalidade também no rádio – esteve à frente do programa Radioamador, na 89 FM – e na TV – como estrela do Madame Lee, na MTV, e integrando o primeiro time de apresentadoras do Saia Justa, no GNT.
Longe dos palcos desde 2012, Rita lançou seu último disco naquele mesmo ano – Reza –, escreveu livros para crianças e se preparava para lançar o segundo volume de sua autobiografia, que sai em 22 de maio.
"Quando decidi escrever Rita Lee: Uma autobiografia (2016), o livro marcava, de certo modo, uma despedida da persona ritalee, aquela dos palcos, uma vez que tinha me aposentado dos shows”, Rita explicou, no texto de anúncio do novo livro. "Achei que nada mais tão digno de nota pudesse acontecer em minha vidinha besta. Mas é aquela velha história: enquanto a gente faz planos e acha que sabe de alguma coisa, Deus dá uma risadinha sarcástica."
Soberana suprema do rock brasileiro e estrela de primeira grandeza do pop do país, Rita foi também semente, inspiração e leme para uma legião de artistas que vieram depois dela e que encontraram muitas clareiras já abertas para desenvolver suas carreiras. Sem Rita talvez não tivéssemos Pitty, Cássia Eller, Paula Toller, Marina Lima, Fernanda Abreu, Marisa Monte, Zélia Duncan, Bianca Jhordão.
E sua abrangência é tão gigantesca que hoje é difícil – impossível? – achar alguém no Brasil que não saiba quem é Rita Lee, que não conheça – de cor e salteado – um punhado de suas músicas, ou que não tenha tido pelo menos boa parte do repertório da artista como trilha sonora de sua própria vida.
Um monte de gente que ela, com sua música, seu sorriso e seu jeito de eterna menina, fez muito feliz.
Rita X 100
De Mutante à mais completa tradução do pop-rock brasileiro