Redenção por restauração?
Quando saiu, em 1970, 'Let It Be' foi recebido como um réquiem amargo para a dissolução dos Beatles, sombrio e soturno. Reeditado em versão restaurada, o documentário pede para ser reavaliado
“Imaginem vocês tocando num anfiteatro ao ar livre, em Tripoli. À luz de tochas! Cercados por dois mil árabes!”.
Essa era a visão proposta a John, Paul, George e Ringo pelo diretor Michael Lindsay-Hogg, quando os quatro começaram a se preparar para compor e gravar o que seria seu 12º álbum. As câmeras de Michael registrariam a gênese do novo disco, as providências para o concerto na capital da Líbia, culminando com a apresentação, em si, do novo repertório.
Era para ter sido a filmagem de um show de música apoteótico, extravagante, protagonizado pelo grupo mais famoso da história do pop, uma celebração de carreira.
Mas Let It Be, o filme, acabou sendo recebido como um réquiem para os Beatles.
As circunstâncias decerto não ajudaram. Let It Be chegou aos cinemas semanas depois dos Beatles terem dissolvido sua parceria de forma litigiosa, amarga e pública, anunciado como sendo “uma experiência bioscópica íntima” (!?!?), e o choque provocado pelo fim inesperado do grupo tingiu negativamente as reações do público e da crítica. Tampouco ajudava a própria qualidade técnica do filme, rodado originalmente em 16 mm e ampliado paras 35 mm, padrão das salas de exibição, o que resultou numa imagem granulada, escurecida, de aspecto triste.
“Eles nunca tinham sido tão coesos”, rememora Lindsay-Hogg, que já trabalhara antes com os Beatles nos clipes de “Paperback Writer”, “Rain”, “Hey Jude” e “Revolution”. Mas quando eles chegaram ao estúdio para fazer Let It Be, “tudo veio abaixo. E o filme exemplifica isso, é um combinação de tristeza com alegria”.
O aspecto agridoce do filme, uma despedida baixo-astral dos Beatles – ainda mais por servir quase como uma espécie de posfácio ao majestoso Abbey Road – sangrou para os textos publicados na imprensa sobre ele.
“Como um filme de cinema verité feito em 16mm com quatro músicos de rock em um estúdio tocando um pouco, tentando compor suas músicas, fazendo palhaçadas e batendo papo e, finalmente, apresentando um breve show, Let It Be é um filme relativamente inócuo e sem imaginação. Só que os músicos são os Beatles”, publicou a revista americana Variety.
“O filme é uma chatura”, concluiu o diário britânico The Guardian. “É para mostrar os Beatles trabalhando, mas não mostra. Rodado sem planejamento, editado de qualquer maneira, não-informativo e ingênuo, destruiria um grupo de menor estatura. No entanto, aqui estão eles, cantando e encantando até o mais cínico odiador de música pop”.
Fora de circulação há 40 anos, desde que sumiram do mercado as versões em home video, agora Let It Be saiu em nova versão, já disponível para streaming na Disney +, com som e imagem restaurados pela mesma equipe de Peter Jackson responsável pelas quase oito horas cintilantes do documentário Get Back. Nas palavras do diretor Lindsay-Hogg, numa entrevista feita recentemente, o filme ganhou “uma nova vida sob o sol”.
“Sempre houve uma aura negativa em torno do filme”, explicou ao site The Daily Beast Giles Martin, engenheiro de som que há anos vem trabalhando nas reedições ampliadas dos álbuns dos Beatles e supervisionou o áudio da nova versão de Let It Be. “Quando o álbum saiu eles estavam processando uns aos outros”.
Get Back – em vários aspectos, um extenso documentário sobre a feitura de um documentário antigo – ajudou a reabilitar, de certa forma, Let It Be, apresentando imagens e sons cristalinos e desencavando sequências inéditas para recontextualizar a gravação do disco. Peter Jackson mostrou momentos de confronto e de tensão no estúdio, mas temperou o negativo com altos extremamente positivos, de leveza, camaradagem e criatividade. E, ao demonstrar as possibilidades atuais de restauração, abriu a porta para que o filme de Lindsay-Hogg tivesse uma nova chance.
Assim, hoje é possível ver Let It Be sem o impacto e as circunstâncias da época de seu lançamento, em 1970. E sua conclusão jubilante agora pode ser celebrada, em vez de lamentada.
O terraço do edifício onde funcionava a Apple – empresa/gravadora dos Beatles – acabou substituindo Tripoli e, como por mágica, aquela que viria a ser a última apresentação dos quatro juntos restaurou a química original dos Beatles.
Ali, debruçados sobre Londres, debaixo de um céu carregado e no frio de final de janeiro, John, Paul, George e Ringo “tocaram (…) num nível de alegria que não tinham desde a adolescência”, relembra Lindsay-Hogg. Como se estivessem de volta ao começo.
"Estou emocionado (com o relançamento de Let It Be)”, admitiu Michael numa entrevista recente para o site Spin. “Tive altos e baixos emocionais (por causa desse filme) por muito, muito tempo”.
“Quando estávamos trabalhando (na restauração)”, ele continua, “Peter na Nova Zelândia e o diretor de fotografia, Tony Richmond, e eu em Los Angeles, vi tudo se encaixando aos poucos. Passei por momentos sombrios em relação (ao filme), porque sabia que era bom. Eu sabia que, se tivesse vida novamente, as pessoas estariam interessadas. Acho que (os Beatles) ficariam satisfeitos com isso. Acho que eles ficariam comovidos. E eu acho que no final, quando você coloca os quatro no telhado tocando juntos como se fossem adolescentes, eles ficam realmente felizes por estarem juntos novamente, tocando para um público que está 30 metros abaixo deles. Então, eles se despedem com um estrondo incrível. Além disso, mesmo se fosse roteirista, você teria escrito no final do filme John Lennon dizendo: ‘Espero que tenhamos passado no teste’ ? Porque isso veio de Deus, sabe? Se Deus existe, essa fala veio dele”.
Roberto de Carvalho dá música a letras inéditas de Rita Lee. A onda de roubos de livros russos raros que assola a Europa. Morte de 'Mama’ Elliot Cass passada a limpo. Greve ameaça a realização do Festival de Cannes. E o novo filme de Francis Ford Coppola ganha trailer misterioso.
– Roberto de Carvalho começou a musicar letras inéditas de Rita Lee, morta quase um ano atrás. A primeira deve ser “Ego”, que já havia sido publicada em Rita Lee: uma autobiografia, lançado em 2016. Além disso, Roberto – viúvo de Rita e seu parceiro musical desde a década de 1970 – vem inspecionando demos e ensaios que possam ser aproveitados. Rita já teria deixado prontas, ainda, as vozes para duas ou três faixas de um projeto chamado Bossa ’n’ Movies, que acabou sendo engavetado.
– O processo é sempre o mesmo e está acontecendo em diversas cidades da Europa: um livro russo raro é emprestado de uma biblioteca e, na hora da devolução, é substituído por uma falsificação quase perfeita. Desde 2022, mais de 170 livros desapareceram de bibliotecas em Letônia, Lituânia, Alemanha, Finlândia, França, Suíça e República Tcheca. A biblioteca da Universidade de Varsóvia, na Polônia, foi a mais atingida, perdeu 78 livros. O prejuízo total é superior a US$ 2,6 milhões (R$ 13,2 milhões). A Europol suspeita da existência de uma rede de associados, alguns até parentes de sangue, espalhados pelo continente europeu com cartões de biblioteca, às vezes sob nomes falsos, para procurar livros russos raros, fazer cópias de alta qualidade e depois trocá-las pelos originais. Qual seria o destino dos livros roubados? Segundo o The New York Times, os volumes afanados são algumas das publicações mais famosas da Rússia, atraentes não apenas para colecionadores experientes, mas também para ricos que os veem como troféus.
– O mito (ou maledicência?) de décadas dava conta de que Cass Elliot – um quarto do famosíssimo grupo vocal The Mamas and The Papas, de super hits como “California Dreamin’” e “Monday, Monday”, nos anos 1960 – havia morrido engasgada com um naco enorme de um sanduíche. Conforme quem contasse a história, de atum, ou de peru. “Mama” Cass era, de fato, obesa, e aceitou-se seu falecimento precoce, em 1974, aos 32 anos, como resultado de uma pretensa gulodice – e como punição por isso, também. Só que não foi bem assim, como corrige agora sua filha, Owen Elliot-Kugell, em livro recém-lançado, My Mama: Cass: A Memoir. A cantora teria morrido de infarto. Mas de onde veio a versão falsa – e maldosa – da morte da artista? O próprio empresário de Cass, Allan Carr, acabou plantado a notícia falsa para evitar que a morte dela fosse atribuída a uma overdose. Ele mesmo disse a uma repórter do The Hollywood Reporter: “escreva que ela morreu engasgada com o sanduíche”.
– A próxima edição do Festival de Cannes está marcada para começar na próxima terça-feira, 14/5, sob a ameaça de uma greve convocada por uma organização de trabalhadores autônomos: a Sous Les Écrans La Dèche. O grupo se opõe a uma reforma trabalhista que irá reduzir o seguro-desemprego da categoria, argumentando que o governo já cortou metade do valor das indenizações e estaria pronto para editar um novo decreto, já em julho, determinando que os autônomos trabalhem mais horas para poderem manter seus benefícios.
– Por falar em Cannes, será lá a premiere do aguardadíssimo novo longa de Francis Ford Coppola, Megalopolis, orçado em mais de 120 milhões de dólares (bancados pelo próprio diretor) e com Adam Driver, Aubrey Plaza, Forest Whitaker, Jon Voight e Shia LaBeouf no elenco. No novo filme Coppola pretende mostrar uma “história moderna dos Estados Unidos” com toques clássicos. “A América de hoje está sofrendo as mesmas dificuldades por que Roma passou, 2.500 anos atrás. Então, pensei em fazer uma epopeia romana”. O primeiro trailer do filme, um tanto críptico e misterioso, chegou agora às redes. Veja abaixo.
PLAYLIST FAROL 82
Erasmo + Rubel + Emicida. Grace Bowers, um prodígio da guitarra. De Nova Orleans, o funk com pedigree do Dumpsthafunk. O art-punk prog do Glote. Kaia Kater mistura banjo, folclore e música eletrônica. As harmonias eletrizantes de Landless. O folk-blues do veterano Chris Smither. A violoncelista guatemalteca Mabe Gratti. Martinho da Vila + Preta Gil. E o adeus a Duane Eddy.
Erasmo Carlos – “Tijuca Maluca” – O “baú” de Erasmo Carlos foi aberto por Léo Esteves, filho do Tremendão, morto em novembro de 2022, e lá de dentro saiu um verdadeiro tesouro artístico e pessoal que começa a vir à tona– um acervo que inclui desenhos, bilhete, HQ’s, ideias para filmes, cartas (uma delas, para o icônico radialista Big Boy). Antes que tudo isso seja tornado público, saiu um disco póstumo, o recém-lançado Erasmo Esteves, todo de inéditas criadas a partir de demos, ideias e gravações para o que seria um álbum de parcerias com novas gerações de músicos que Erasmo vinha preparando com os produtores Marcus Preto e Pupillo. Não é um disco-tributo. É, nas palavras de Léo, o co-produtor, um disco de estúdio, feito como se Erasmo estivesse aqui. Dentre as parceiras, uma se destaca: a faixa composta por Rubel, a partir de uma letra autobiográfica de Erasmo, com participação de Emicida, revisitando a adolescência do Gigante Gentil na Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro onde tudo começou para ele.
Grace Bowers & The Hodge Poge – “Tell Me Why U Do That” – Guitarrista de Nashville com apenas 18 anos de idade, Grace tem marra de jovem e talento de alguém já com alguma estrada. Em seu disco de estreia, mistura rock, blues e funk à Sly & The Family Stone.
Dumpsthafunk– “The Piper’s Call”– E aqui mergulhamos num funk ainda mais raiz, feito pelo grupo de Nova Orleans que abriu para os Rolling Stones quando os ingleses tocaram no Festival de Jazz daquela cidade, na semana passada. É música negra com pedigree de responsa – há um elo forte com a dinastia Neville. Aqui, ainda com a participação do baixista Nick Daniels III, morto literalmente dias antes deles se apresentarem no festival de jazz, o grupo aparece acompanhado do rapper Chali Tuna e do instrumentista Trombone Shorty.
Glote – “Shinkeitsu” – Em português, o título da música deste trio carioca de indie rock quer dizer nervoso, ou nevralgia, que o Dr. Google define como sendo “uma dor excruciante, aguda, intensa e incessante que ocorre pelo acometimento de um ou mais nervos do nosso corpo”. Na prática, a sonoridade mistura o lado mais agressivo e barulhento do Sonic Youth com elementos de art-punk, rock progressivo e até, discreto, mas está lá, pode procurar, Beatles.
Kaia Kater – “Fédon”– Canadense, Kaia usa seu banjo para liderar uma jornada musical profunda, combinando elementos tradicionais do folclore com música eletrônica ou orquestral, soul e jazz, como neste dueto com o veteranérrimo Taj Mahal numa faixa de seu novo álbum, Strange Medicine.
Landless – “The Fisherman’s Wife”– Quatro vozes femininas criando harmonias eletrizantes para canções folk irlandesas de imensa ressonância.
Chris Smither – “All About The Bones” – Também vem de Nova Orleans (de novo aqui na playlist!) este contador de histórias de longuíssima carreira – ele está com 80 anos –, fazendo canções folk-blues de sonoridade pantanosa, ambientadas num mundo tão humano e filosófico quanto sombrio.
Mabe Gratti – “Nadie Sabe”– A música da violoncelista guatemalteca Mabe é costurada com sua voz e sons variados e desconcertantes, alguns inidentificáveis, até, que por vezes parecem ser ruídos vindo de algum outro lugar, não da canção.
Martinho da Vila – “Disritmia / Ex-Amor” – O mestre do samba convidou Preta Gil para inverter os papéis nessa regravação de dois de seus sucessos mais conhecidos, evidenciando agora o protagonismo feminino. A faixa faz parte do álbum Violões e cavaquinhos, que acabou de sair.
Duane Eddy – “Raunchy”– Quando quis convencer John Lennon a admitir para os Beatles aquele garoto topetudo super jovem e cheio de atitude, Paul McCartney convidou o amigo a conhecê-lo no andar de cima de um dos ônibus de dois andares de Liverpool. De noite, com o veículo em movimento, Paul incentivou o garoto: “Mostra pra ele!”. George Harrison ajeitou o cabelo, abraçou o violão e disparou o inconfundível riff do tema instrumental “Raunchy”, sucesso então recente de um ás da guitarra que era uma sensação dos primórdios do rock ’n’ roll entre a garotada, especialmente os músicos: o americano Duane Eddy. Aquela demonstração de destreza garantiu a entrada de George para os Beatles. E Duane – o rei da guitarra “twangy”, cheio de chinfra e estilo – nos deixou semana passada, aos 86 anos.