Qual é o impacto das séries de ‘true crime’ ?
O gênero produz receitas milionárias e cativa multidões. Mas o efeito sobre as famílias das vítimas pode ser negativo
“Chama-se true crime o modismo televisivo que me tem consumido horas e horas acompanhando cada uma das barbaridades de Dahmer: Um Canibal Americano, a série que, segundo a Netflix, já teve um bilhão de horas assistidas”.
Assim Joaquim Ferreira dos Santos abria sua crônica de segunda-feira, 17/10, em O Globo, usando como trampolim o sucesso fenomenal da série – a segunda mais assistida em toda a historia do serviço de streaming, perdendo apenas para a quarta temporada do juvenil Stranger Things – para pontuar o possível “sadismo coletivo” que enxerga no apetite de uma parte considerável do público por filmes e séries baseados em histórias verdadeiras de crimes macabros – e seus escabrosos protagonistas – que não param de proliferar.
Assim se explicaria tamanho interesse pelas atrocidades cometidas por um dos maiores assassinos em série dos Estados Unidos, que agiu por toda uma década, antes de ser capturado.
Sim, há quem goste de assistir. E muito.
Por outro lado, a popularidade das séries de true crime – e há muitas à disposição, antigas e recentes – pode ofuscar o impacto negativo que esse tipo de programação tem. A revista americana Wired publicou uma matéria debatendo justamente esse aspecto.
O texto traz as descobertas de uma pesquisa finlandesa, que concluiu que o consumo de noticiário de crime pode levar as pessoas a sentirem um medo exagerado de tornarem-se, elas mesmas, vítimas. Ao mesmo tempo, aqueles que sobreviveram a um crime ou a uma violência podem não suportar tal tipo de noticiário.
Da mesma forma, filmes e séries como Dahmer: Um Canibal Americano vêm recebendo críticas das famílias de vítimas do próprio criminoso, pois estão revivendo casos que as estilhaçaram através do que passa na TV e do que o público debate a respeito, especialmente no vasto mundo da internet.
Mesmo antes do sucesso estrondoso de Dahmer já vinha sendo discutido o desconforto que programas de true crime – fossem eles documentários ou dramatizações – podem causar a sobreviventes de violência e a parentes de vítimas. Em 2020, a revista Time relatou a tentativa da família e de amigos de Robert Mast, estrangulado até a morte por uma mulher, Lindsay Haugen, para impedir a inclusão do crime na série documental I Am a Killer, veiculada pela Netflix. A produção procurou os familiares de Robert para entrevistá-los, mas eles imploraram que deixassem o rapaz de fora. Caso contrário, “pessoas de verdade, vivendo vidas de verdade, vão ser traumatizadas mais uma vez”, argumentaram. Não foram atendidos e a série foi ao ar, mesmo sem sua participação.
Em contrapartida, há casos em que a família e os amigos da vítima de um crime são plenamente favoráveis à realização de um documentário ou uma série sobre o ocorrido. Gloria Perez aprovou a feitura e a veiculação pela HBO Max de Pacto Brutal: O Assassinato de Daniela Perez por confiar que a partir dali não haveria “mais espaço nenhum para as versões fantasiosas que os assassinos tentaram emplacar”. Para ela, mãe da vítima, “dói demais reviver tudo, mas é necessário que se conte a historia como ela aconteceu”.
Seja como for, a tendência é de se produzir cada vez mais conteúdo de true crime, sob a forma de podcasts (como Dirty John, produzido pelo diário The Los Angeles Times, que virou a série O Golpe do Amor), de seriados ou filmes. Os 10 episódios sobre Dahmer chegaram a 56 milhões de assinantes – o equivalente a quase toda a população da Itália – e isso representa cifrões significativos para quem os produziu e veiculou.
Tanto que já está disponível na mesma Netflix Conversando com um serial killer: O Canibal de Milwaukee, composto das conversas “arrepiantes” entre Dahmer e sua advogada de defesa.
Outubro é dos documentários musicais. OSGEMEOS ocupam o CCBB do Rio de Janeiro. O TikTok investe no streaming de música. Sai livro de memórias de Paul Newman. E a série baseada no jogo eletrônico ‘A Lenda de Zelda’ não passou de … uma lenda
E mais …
– Outubro é um mês pródigo em documentários musicais. E tem para todos os gostos. Já está disponível no Amazon Prime Video The Sound of 007, que enfoca a gênese e a produção das músicas usado nas trilhas dos filmes de James Bond ao longo de 60 anos, a começar pelo tema clássico, eterno, composto por Monty Norman e arranjado por John Barry. Para os fãs de rock progressivo, a pedida é In The Court of the Crimson King-King Crimson at 50, com a trajetória da banda criada e liderada pelo guitarrista Robert Fripp, que será transmitido ao vivo no sábado, 22/10. Estreia na sexta-feira, 28/10, na Apple TV +, Louis Armstrong’s Black & Blues, sobre o icônico trompetista e vocalista de jazz. Tem também In The Blood, o documentário sobre o baixista Daryl Jones, que está celebrando 30 anos tocando com os Rolling Stones, desde a saída de Bill Wyman, mas cuja carreira inclui trabalhos com Miles Davis, Sting e Michael Jackson. Está disponível on demand na Amazon Prime Video e na Apple TV + e sai em DVD (nos Estados Unidos) dia 25. Nas mesmas plataformas você pode encontrar, ainda, Let There Be Drums!, ode à bateria e aos bateristas, com participações e depoimentos de músicos como Ringo Starr, Mickey Hart e Bill Kreutzmann (do Grateful Dead), Chad Smith (do Red Hot Chili Peppers), Stewart Copeland (do Police) e Chad Taylor, recém-falecido integrante do Foo Fighters.
– Quase mil itens compõem Nossos Segredos, a retrospectiva dos irmãos paulistanos Gustavo e Otávio Pandolfo – que assinam seus trabalhos como OSGEMEOS – no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. São pinturas, obras urbanas e projeções. A mostra foi encomendada para marcar os 33 anos de atividade do CCBB na cidade, pode ser vista até 23 de janeiro e a entrada é franca.
– A Netflix está trilhando o mesmo caminho da Amazon (que hoje não existe mais somente online) e, animada com o resultado de suas ações promocionais ligadas à série Stranger Things (que movimentaram multidões nos Estados Unidos e na Europa), abriu esta semana uma loja física pop-up (ou seja, temporária) no shopping ao ar livre The Grove, em Los Angeles. Prometendo uma experiência de compras “imersiva”, a loja oferece vestuário, livros e objetos para colecionador ligados a séries como Round 6, Bridgerton, e, claro, Stranger Things.
– Por falar em Netflix, cartazes anunciando uma nova série live action baseada no famosíssimo jogo eletrônico The Legenda of Zelda – que seria exibida por aquele serviço de streaming – circularam online e deixaram os fãs animadíssimos, mas não passaram de um trote. Não, Emma Watson não fará o papel de Zelda. Nem Tom Holland será Link. Tudo foi uma brincadeira feita pelo diretor de marketing de produto da agência californiana DeviantArt, Dan Leveille, que usou uma Inteligência Artificial para produzir as imagens.
– O TikTok pretende investir forte no streaming de música, expandindo o alcance de seu braço no setor, a Resso, para ser o mais forte concorrente do Spotify. Segundo o The Wall Street Journal, a Resso já existe em países como Indonésia e Brasil e agora negocia com as gravadoras para entrar em mercados maiores. A ideia é permitir que os usuários do TikTok descubram as músicas gratuitamente e depois sejam direcionados para fazer assinaturas da Resso.
– Lembra das entrevistas para um livro de memórias de Paul Newman que deram origem ao brilhante documentário As Últimas Estrelas do Cinema, disponível na HBO Max? Pois o livro saiu essa semana nos Estados Unidos. The Extraordinary Life on an Ordinary Man é resultado de cinco mil páginas de transcrições de entrevistas feitas entre 1986 e 1991 pelo autor do livro – Stewart Stern, roteirista de Rebelde Sem Causa e amigo íntimo de Paul – com Newman mais familiares, amigos e colegas.
– Enquanto isso, Pattie Boyd – ex-esposa de George Harrison e Eric Clapton – lança em dezembro seu novo livro, Pattie Boyd: My Life in Pictures. São fotografias, trechos de diários e cartas que cobrem seu trabalho como modelo e seu casamento com dois dos artistas mais famosos do rock. O prefácio do livro é assinado por um velho amigo de Pattie: ninguém menos que Ronnie Wood, dos Rolling Stones.
Lado Z – Nas trincheiras do jornalismo musical, mundo afora, com José Emilio Rondeau
Dias no Rio e em Nova York com Bea Feitler, a craque carioca do design
Quando soube que Bea Feitler estava no Rio de Janeiro, imediatamente propus a meu chefe – Renato Machado, então editor da Revista de Domingo do Jornal do Brasil – fazer um perfil dela. E ele topou. Imediatamente.
Era minha chance de conhecer a carioca, craque máxima do design que novinha partiu para estudar na Parson’s School of Design e desde os anos 1960 vinha revolucionando revistas no Brasil – foi editora gráfica da legendária Senhor – e, sobretudo, em Nova York, da Harper’s Bazaar e Ms. a SELF e Rolling Stone, minha paixão absoluta na época. Ela também havia assinado capaz de discos (Black and Blue, dos Rolling Stones) e a diagramação de livros (Cole, The Gershwins e viria a fazer The Beatles, por exemplo). E dava aulas disputadíssimas na School of Visual Arts.
Vamos deixar Madeleine Morley, do site Riposte, saudar os predicados de Bea: “Feitler acreditava totalmente no design gráfico, em como o fluxo de imagens e energia visual dão corpo e forma vital à informação”.
O que mais me interessava, claro, era conversar sobre todas as mudanças que ela vinha operando na Rolling Stone. Sem crédito ostensivo, por problemas contratuais – no expediente, figurava apenas como consultora. Sob sua batuta, a revista havia ficado mais elegante, visualmente surpreendente, apontando para o futuro, com uma valorização do lettering e da tipologia. Suas capas para as edições especiais de fim de ano eram estonteantes.
Passamos algumas horas daquele novembro de 1979 conversando em seu apartamento em Copacabana – onde ela bebericava gim gelado – , no restaurante Lucas (em seu lugar, na Avenida Atlântica, existe hoje uma hambúrgueria), e nas areias do Arpoador, onde Maurício Valladares foi fotografá-la.
Feitler se encarregou de produzir suas fotos, chegando à praia munida de flores e com a última edição da SELF debaixo do braço. O tom da logo da revista harmonizava com a camiseta que estava vestindo, impressa com duas palavras: IPANEMA, BRASIL.
Numa sacada genial de Renato, a matéria acabou ganhando um quê a mais: ele convidou Bea para paginar o texto final e as imagens (as fotos de Maurício e material de arquivo, cedido pela própria designer), dando àquelas páginas um jeito todo seu. O que significou também que ela pode ler todo meu texto previamente e “editar” declarações que tinham o potencial de incomodá-la mais adiante: como o trecho em que chamava de “ditador" Jann Wenner, fundador e chefão da Rolling Stone – seu chefe!
O mais surpreendente de tudo aquilo foi o que o convívio durante a confecção daquela matéria gerou. Antes de deixar o Rio, Bea me deu seu telefone em Nova York, junto com um convite para visitá-la na redação da Rolling Stone quando estivesse por lá. O que não custou a acontecer.
Menos de um ano depois, em setembro de 1980, batia à porta de Feitler – ou melhor, da Rolling Stone, no 23º andar do prédio de número 745, na 5ª Avenida – e ela, como prometido, me recebeu, folheando a nova edição da revista (número 327, com Robert Redford na capa) e discutindo por telefone as provas do livro sobre os Beatles, que estava para ser lançado (apesar de ter recusado a oferta inicial, de 10 mil dólares, para fazê-lo).
Ela falou do disco que John Lennon estava finalizando (sublinhando sua estranheza pela magreza do ex-Beatle, que parecia-lhe excessiva), me apresentou a Kurt Loder – um dos jornalistas-estrelas daquela fase da RS, que passou os minutos seguintes conversando sobre uma entrevista que havia feito com Jerry Lee Lewis, O Matador, preocupado que o músico parecia nas últimas (Obs.: Jerry está vivo até hoje, aos 87 anos) – e combinou um jantar em sua casa, um apartamento “Mangueira e kitsch” em Central Park South.
Por algum motivo absurdo, imperdoável, na hora H telefonei para me desculpar e acabei não indo ao jantar. E, por um desses acasos divinos, dias depois, andando pelo Upper West Side, esbarrei – literalmente – em John Lennon! E Yoko Ono!
Ainda não sabia que, na verdade, Bea estava de saída da Rolling Stone, convidada pela fotógrafa Annie Leibovitz (que lá estava desde 1971, quando clicou – ele aqui, de novo – John Lennon para a primeira de uma série de capas históricas) para participar como diretora de arte da reinvenção da Vanity Fair, uma revista chique, fundada nos anos 1910, que estava para ser reativada pela gigantesca editora Condé Nast em 1982.
Por caminhos tortuosos, de volta ao Rio, cheguei a ver a “boneca" da nova VF – aquele número zero preparado para apresentar o novo título a patrocinadores e anunciantes potenciais. Com Mikhail Baryshnikov gargalhando na capa, a revista era a cara de Bea: alegre, colorida, solar, vibrante, atrevida. Foi seu último trabalho.
Bea morreu antes da nova Vanity Fair estrear, vítima de um câncer recorrente. Tinha 44 anos. Trabalhou até o fim, sem deixar que seus colegas na revista soubessem o que estava acontecendo com ela. Ia trabalhar usando turbantes chiquérrimos, que disfarçavam a escassez de cabelos provocada por seu tratamento. Para todo mundo, era apenas Bea sendo Bea.
PLAYLIST FAROL 9
A exuberância e a dramaticidade dos Artic Monkeys. O retorno do Mars Volta. O pop sofisticado e agridoce de Weyes Blood. Indie rock feminino à enésima potência. E a descoberta de uma faixa inédita do Queen – com Freddie Mercury no topo da forma.
Artic Monkeys – “There’d Better Be A Mirrorball” – O quinteto britânico deve muito ao pop elegante de David Bowie e ao Roxy Music em seu sétimo álbum, The Car, repleto de arranjos orquestrais exuberantes e dramaticidade, como na faixa de abertura.
The Mars Volta – “Blacklight Shine”– Os mestres do punk progressivo ressurgem, tinindo, após um hiato de 10 anos, sublinhando ainda mais sua latinidad, com o que talvez seja o melhor disco de sua carreira.
Weyes Blood – “Grapevine” – Dona de uma voz que mistura Aimee Mann e Karen Carpenter, a californiana Natalie Mering lança o segundo álbum de uma trilogia iniciada em 2019, And In The Darkness, Hearts Aglow, transbordando um pop sofisticado e agridoce, dotado de uma qualidade cinematográfica.
Angeline Morrison – “Unknown African Boy (d. 1830)” – Britânica, Angeline pesquisou a história da chegada dos negros ao Reino Unido, onde estão desde os tempos romanos, e a partir dai criou um disco de canções folk inspiradas em suas descobertas. É um trabalho profundo, único, arrebatador.
Holland Andrews – “Rules”– “Demônio da voz”, a americana Andrews juntou forças com o alemão Nils Frahm para criar uma jam acústico-eletrônica pungente, repleta de sintetizadores e Mellotron.
Madison McFerrin – “Stay Away (From Me)”– Filha do legendário vocalista de jazz Bobby McFerrin, Madison opta pela intimidade em seu novo single, um sensual e aveludado R&B, que ela mesma produziu.
Black Lips – “Lost Angel”– Em clima de faroeste fantasmagórico e Lynchiano, o quinteto de Atlanta chega a seu décimo álbum de carreira, Apocalipse Love.
Sleater-Kinney, Courtney Barnett – “Words and Guitar”– Indie rock feminino à enésima potência nesta regravação, parte do álbum Dig Me In: A Dig Me Out Covers Album, que revisita todo o terceiro disco de estúdio do trio americano, lançado originalmente em 1997.
Lucrecia Dalt – “Atemporal”– A cantora/compositora colombiana criou uma espécie de bolero futurista desconstruído para falar de um ser alienígena, Preta, que visita a Terra.
Queen – “Face It Alone”– Uma faixa inédita do Queen – que estava "escondida em plena vista”, segundo Brian May – , gravada em 1988 e parte da futura reedição ampliada do álbum The Miracle, de 1989, com Freddie Mercury soltando a voz com toda sua potência.