Paul Simon teve um sonho. E o sonho virou uma obra-prima
Aos 81 anos, o cantor-compositor icônico criou um dos melhores discos de sua carreira, no qual mostra o quanto andou pensando na vida, na morte – e no que vem depois
Paul Simon teve um sonho na noite de 15 de janeiro de 2019: uma voz dizia que ele precisava compor uma peça musical chamada Os Sete Salmos.
A partir dali, ele passou a acordar no meio da noite, no decorrer de semanas, meses, e as palavras para essa peça musical vinham chegando, aos poucos. E ele ia anotando. Aquilo virou uma busca, uma jornada que Simon precisava percorrer até o fim.
Demorou quatro anos para que ele decodificasse por completo a mensagem recebida e ela tomasse a forma de um disco pronto. E o que Os Sete Salmos, o disco, mostra é que, aos 81 anos, Paul vem pensando muito na vida, na morte – e no que vem depois.
Como George Harrison e David Bowie antes dele, Simon transformou em música suas meditações sobre a fragilidade, a brevidade e a velocidade vertiginosa da vida, sobre nossa finitude, e sobre o que acontece conosco uma vez que o coração para de funcionar. “Dois bilhões de batidas de coração e fim. Ou começa tudo de novo?”, ele indaga em "Your Forgiveness”, uma das sete faixas que compõem os 33 minutos do álbum – transformado numa única peça musical, sem interrupção, nas versões em CD e via streaming.
Ao contrário de George e David, que gravaram, respectivamente, seus Brainwashed e Blackstar sabendo que estavam chegando ao fim – o que tornou esses trabalhos seus testamentos artísticos – , até onde se saiba Paul está saudável, ainda que tenha perdido quase toda a audição do ouvido esquerdo, o que o impedirá de fazer mais shows. Mas a realidade atesta que há menos tempo à frente para Simon do que houve nos seus 65 anos de carreira – ao lado de Art Garfunkel e solo. Possivelmente, este será seu álbum derradeiro, sua chance de atar (ou desatar) todos os nós criativos que ainda restam, de deixar a vida em ordem, de por no papel tudo que faltou dizer.
E o que ele conseguiu, nesse processo, foi criar uma obra-prima, um dos pontos mais altos da fase mais madura de sua carreira.
Conduzido basicamente pela voz e pelo violão de Paul – com pequenas intervenções de gaitas, sinos, percussão, instrumentos de sopro e as vozes do grupo britânico Voces8 – e a maior parte do tempo desatrelado dos formatos pop que moldaram toda a obra anterior do artista, Os Sete Salmos é um disco reflexivo, impressionista, repleto de imagens religiosas, que celebra a vida e examina a espiritualidade e o misticismo de forma interessada e repleta de dúvidas e indagações, de discussões do artista consigo mesmo a respeito de ter fé ou não – e em quê. São preces, hinos, pensamentos – muitos deles imperfeitos –, súplicas e observações sobre o que nos espera no fim da linha.
"Ando pensando muito na grande migração”, ele abre o disco, em “The Lord”. E logo se conclui que a migração a que ele se refere é a passagem da vida para a morte. E o Senhor do disco, o qual Paul cita repetidas vezes, é tão onipresente quanto o Deus de Harrison ("Ele não existe, ele é a própria existência”, diz George em “Brainwashed”), mas assume formas diferentes: para Simon, ele é "a terra por onde caminho, um rosto na atmosfera”, mas também é “meu engenheiro”, “meu reflexo na janela”, “a música que eu ouço”, “uma mata virgem”, “uma refeição para os mais pobres”, “o vírus do COVID” e “a elevação do nível do mar”. Ao mesmo tempo, dor, punição, bondade, gratidão, a natureza e o dia a dia.
A partir daí ele inicia uma jornada em que parece percorrer uma estrada cantarolando, falsamente distraído, enquanto checa suas convicções e seus medos. “Estamos todos caminhando pela mesma estrada”, diz em “Trail of Volcanos”, incluindo a todos nós na viagem, “até seja lá onde ela termina. A pena é que o dano que foi feito deixa tão pouco tempo para reparação”.
Dá carona a refugiados que o fazem lembrar como “Deus transforma a música em felicidade", cogita o valor e a qualidade de cada um de nós (“somos todos apenas tentativa e erro, um de um bilhão no universo?”) e argumenta que ainda não está na hora de ir (“minha mão está firme, minha mente ainda está clara”, pondera em “Wait”).
Mas, sereno, aceita sua sina inexorável, no potente encerramento do disco: "a vida é um meteoro, deixe seus olhos vagar, o paraíso é lindo, é quase como nosso lar. Crianças, preparem-se. Está na hora de vir pra casa”.
Resta apenas uma última palavra, que ele entoa – junto com a esposa, a cantora Edie Brickell – como se ali existissem sete sílabas, quando são apenas duas: "amén”.
José Emilio Rondeau
O legado de Rita Lee, agora na mão dos filhos. Enquanto músicas inéditas da artista já vêm à tona, por outros caminhos. Scorsese e Jesus, juntos, novamente. O livro do ministro francês que causou furor por seu conteúdo sexual. MPB em quadrinhos. E David Lynch fala sobre sua colaboração de décadas com o pianista e compositor Angelo Badalamenti, o criador do som de ‘Twin Peaks’.
– Filhos de Rita Lee e Roberto de Carvalho, João e Beto preparam uma série de projetos para levar adiante o legado da mãe, morta no início do mês, aos 75 anos. Eles trabalharão com o acervo da artista – que inclui 30 cadernos recheados de composições inéditas – para criar trabalhos derivados da autobiografia de Rita: dentre eles, um filme (com roteiro já pronto, escrito por ela mesma), um musical e um documentário, este feito a partir de arquivos da família. Há, ainda, o desejo de se criar uma Fundação Rita Lee – para onde iriam cenografias, instrumentos e roupas de show, por exemplo – , mais um software que simule a voz dela para que qualquer um consiga utilizá-la para produzir música, e mesmo um robô com a personalidade dela, programado a partir de textos, documentos e tuítes, para interagir com as pessoas. Em outro front, o jornalista e pesquisador Renato Vieira encontrou no Arquivo Nacional três letras inéditas de Rita, enviadas para a Censura Federal na época em que ela estava gravando o álbum Fruto Proibido, de 1975. São elas "Anjo da Vanguarda", "Disfarce" e "The Old Friend”. Esta última é uma parceria com o guitarrista Luiz Sérgio Carlini, então guitarrista do Tutti Frutti, banda de apoio de Rita. Nenhuma delas entrou no álbum que estava sendo gravado. No entanto, trechos de “Disfarces" foram aproveitados em outra música: “Melodia Inacabada”, lançada pela cantora Marília Barbosa, em 1978.
– Motivado por seu recente encontro com o Papa Francisco, Martin Scorsese anunciou que fará um segundo filme baseado na vida de Jesus. A revelação foi feita numa conversa com o diretor editorial da revista A Civilização Católica, como parte do congresso A Estética Global da Imaginação Católica, realizado em Roma no fim de semana passado, evento do qual participaram mais de 40 poetas, roteiristas e cineastas do mundo inteiro que se identificam como católicos ou para quem o catolicismo teve importância em seu desenvolvimento artístico. “Respondi ao apelo do Papa aos artistas da única maneira que saberia fazer: imaginando e escrevendo um roteiro sobre Jesus”, disse Scorsese. “E estou pronto para dar partida nele”. Scorsese se referia à declaração do Papa Francisco sobre como o trabalho dos autores e poetas – em especial, escritores como Dostoiévski e Dante – ajudaram-no "a compreender a mim mesmo, ao mundo e a meu povo, e mais profundamente o coração humano, minha vida de fé e meu trabalho pastoral”. Martin tem uma árdua tarefa pela frente, a julgar pela reação causada por seu outro filme dedicado ao mesmo protagonista. A Última Tentação de Cristo, de 1988, causou furor no meio religioso ao mostrar um Jesus conflitado entre seu lado divino e seu lado humano, o que seria uma blasfêmia. Quatro mil cinemas nos Estados Unidos se recusaram a exibir o filme, quando foi lançado. Mais tarde, a Blockbuster baniu o vídeo do filme de suas prateleiras.
– Não são as medidas econômicas tomadas pelo Ministério das Finanças da França que estão causando polêmica no país, mas as passagens do romance que Bruno Le Maire - o ministro, em pessoa – lançou. A história fictícia de dois irmãos que viajam para Cuba no final do anos 1940, Fugue Américaine contém trechos bastante picantes, que incluem boas doses de sexo explícito – e uma frase sobre o ânus que a CNN considera "inesquecível". Não que o público leitor francês seja pudico, mas a oposição se aproveitou do teor caliente do romance para constranger o governo do presidente Emmanuel Macron. A crítica, por sua vez, se dividiu. O diário Le Figaro encontrou no livro – o quinto escrito por Le Maire – “muita sensibilidade e melancolia” e uma “celebração da música e da humanidade”, uma vez que envolve na trama o pianista Vladimir Horowitz, personagem da vida real. Já o crítico literário Alexandre Gefen observou que "o povo francês consegue perdoar um político por escrever romances eróticos, mas não perdoa um politico que escreve mal”.
– Ouvir música é uma coisa, mas “lê-la" em forma de gibi é algo bem diverso. Essa é a ideia por detrás do livro MPQ – ou Música Popular em Quadrinhos – , que reúne oito versões em quadrinhos – cada uma feita por um artista diferente – para clássicos da canção brasileira, como "Apenas Um Rapaz Latino Americano”, de Belchior, “Garota de Ipanema”, de Tom e Vinícius, “Balada do Louco”, dos Mutantes, “País Tropical”, de Jorge Ben Jor, e “Marinheiro Só”, de Clementina de Jesus.
– O pianista e compositor Angelo Badalamenti – tornado mundialmente famoso através de seu trabalho para os filmes e as séries criadas pelo diretor David Lynch, como Veludo Azul , Mulholland Drive-Cidade dos Sonhos e Twin Peaks – morreu em dezembro do ano passado. Mas só agora Lynch fala sobre a colaboração e o convívio entre os dois, numa longa entrevista dada ao programa Sound of Cinema, da rádio BBC3. No decorrer da conversa há muitos bastidores do trabalho feito por David e Angelo, mas também bastante sobre outros aspectos, como restaurantes. “Sempre associei Angelo a boa comida italiana”, David diz, em determinado momento, antes de rememorar um jantar no bar do Hotel Carlton, em Cannes, onde os dois se encontraram com Harry Dean Stanton – e a gargalhada rolou solta.
PLAYLIST FAROL 39
O blues de raiz feito por um coreano-americano. Indie rock neo-zelandês. O começo de carreira de David Gilmour. Beyoncé + Kendrick Lamar. A esporreira do duo britânico Royal Blood. O piano etéreo de Gia Margaret. A estreia da filha de Dave Gahan, do Depeche Mode. Os experimentos de Charlie Watts e Jim Keltner. O guitarrista Steve Lukather mantém intacta sua verve pop-rock. E o indie pop adolescente que vem de Los Angeles.
Nat Myers – "Yellow Peril”– Produzido pelo incansável Dan Auerbach, o coreano-americano Nat absorveu tanto dos velhos mestres dos blues que parece estar vivendo em algum espaço dos anos 1940, com sua voz rouca e seu violão tocado com o slide, abordando o racismo contra o pretenso perigo trazido por imigrantes "amarelos", como seus ancestrais.
Soft Plastics – “Darcie" – O trio neo-zelandês de indie rock, liderado pela vocalista Sophie Scott-Maunder, acaba de lançar seu álbum de estreia, Saturn Return.
David Gilmour/Joker’s Wild – “You Don’t Know Like I Know”– Antes de assumir seu posto no Pink Floyd, David se ocupava de um repertório de covers de sucessos de R&B daquela época como integrante do Joker’s Wild, banda de Cambridge, terra de Syd Barrett e onde Gilmour e Roger Waters se conheceram. Vez por outra, preciosidades como essa – gravada em 1965 – vêm à tona.
Beyoncé, Kendrick Lamar – “AMERICA HAS A PROBLEM” – A mega estrela convocou o rapper – com quem já havia trabalhado diversas vezes – para dar estofo adicional ao remix de uma das faixas de seu álbum mais recente, Renaissance, e ele usa seu tempo para denunciar grandes corporações e até a Inteligência Artificial.
Royal Blood – “Mountains At Midnight”– Assim como o Black Keys e o White Stripes antes dele, o duo de Brighton, na Inglaterra, resume-se a guitarra, bateria e voz. E que esporreira!
Gia Margaret – “Hinoki Wood” – Etéreo, abafado, rodeado por algumas poucas intervenções de efeitos de guitarra, o piano de Gia, instrumentista de Chicago, encanta por sua simplicidade e por seu lirismo.
Stella Rose – “Angel"– Filha de peixe … Stella herdou o gene musical do pai, Dave Gahan, do Depeche Mode. Mas em seu recém-lançado álbum de estreia, Eyes of Glass, ela mostra personalidade própria, urdida durante anos de ralação em pequenos palcos de Nova York, onde mora.
Charlie Watts, Jim Keltner – “Max Roach” – Quem disse que Watts, o baterista dos Rolling Stones durante 60 anos (e que comemoraria 82 anos hoje), não era chegado a um experimentalismo? O projeto que criou mais de 20 anos atrás com outro craque das baquetas – o americano Jim Keltner, colaborador de dois ex-Beatles, Bob Dylan, Ry Cooder e tantos outros –, mais o programador francês Phillippe Chauveau, mostra que Charlie tinha, sim, cabeça aberta o suficiente para fazer um disco só de percussão e efeitos eletrônicos, com faixas editadas de forma experimental, cada uma dedicada a um grande baterista ou percussionista, de Airto Moreira a Kenny Clarke, passando por Elvin Jones e Max Roach, o homenageado daqui.
Steve Lukather – “When I See You Again” – Californiano, o veterano Steve emprestou sua guitarra precisa e inspirada a discos de Aretha Franklin, Bee Gees, Warren Zevon, Lionel Richie, Earth, Wind & Fire e até Rita Lee (ele toca no álbum Bombom, de 1983), e integrou uma das bandas mais presentes no imaginário pop americano dos anos 1970/80, Toto. Solo, aos 65 anos, mantém em ótima forma a mesma verve pop-rock de sempre.
Forsythia – “Pretty Lungs” – Nada como o vigor da juventude para impulsionar uma banda de rock cheia de ideias e atitude. É o caso deste trio de adolescentes de Los Angeles, que, além de fazer um indie pop estimulante e cheio de frescor, cria seus próprios vídeos e desenha suas próprias camisetas.