Os mundos extraordinários de 'Fargo' – e as razões para não deixar de visitá-los
O FAROL dá a você cinco bons motivos para não perder as duas novas temporadas da série ‘torta’, singular, estilosa, nascida a partir do filme clássico dos irmãos Coen
O universo do streaming de audiovisual transborda conteúdo. No sentido de “recheio”, mesmo, de preenchimento de espaço, de alto a baixo. Há muita coisa disponível, uma enormidade. E de tudo que se encontra a maioria é mediana, séries e filmes que “se deixam ver”, que passam o tempo e só, que distraem.
Contudo, aqui e ali encontramos preciosidades, pérolas que fogem ao padrão morno e fustigam nossos sentidos e nossas emoções. É o caso das duas últimas temporadas de Fargo, série iniciada em 2014.
Inexplicavelmente enterradas num cantinho entocado da Amazon Prime Video (era para ser um segredo?) e prontas para serem descobertas por quem se dispor a ir buscá-las, as temporadas 4 e 5 da série trazem novas histórias inspiradas pela mistura de filme de crime e comédia que os irmãos Ethan e Joel Coen deram ao mundo em 1996. São situações surpreendentes, tramas intrincadas e inteligentes, dotadas de um senso de humor finíssimo, encharcadas de dramaticidade e tragédia.
Como costuma acontecer, cada temporada traz agentes da lei (corruptos, incapazes, justos, heróicos), bandidos (patéticos, geniais, violentíssimos, empreendedores, vaidosos), cidadãos comuns (donas de casa, crianças, comerciantes, velhinhas alcoólatras), seres de capacidades incomuns ou acontecimentos sobrenaturais para contar histórias extraordinárias, estilosas e “tortas” na medida certa. E muita neve.
Uma leva de episódios não tem necessariamente ligação com a outra, exceto a referência constante à cidade americana de Fargo, em um momento ou outro, ou a eventual citação de um acontecimento ou um personagem em comum com diferentes temporadas. Mas é sempre de forma sutil, que tem a ver com a história, que ajuda a comentá-la ou complementá-la.
Na quarta temporada, Chris Rock estrela um complicado quebra-cabeças sobre o convívio e a rivalidade sanguinária entre grupos criminosos rivais na cidade de Kansas City, no estado do Missouri, nos anos 1950: os negros, os irlandeses e os italianos. Já na quinta, Juno Temple brilha como a mãe e esposa exemplar em fuga de um ex-marido brutalmente abusivo – o xerife ultra-direitista (Jon Hamm) que tem uma poderosa milícia a seu serviço em plena era Trump.
Se ainda não sacou do controle remoto para se aboletar diante da TV e maratonar os 21 novos episódios de Fargo, o FAROL selecionou cinco bons motivos para não deixar de vê-los:
CHRIS ROCK
Mais conhecido por seu trabalho como comediante ou por suas passagens pelo lado mais pop do cinema, Chris encontrou aqui, na quarta temporada de Fargo, um dos melhores papéis de sua carreira, como o chefe grisalho de uma gangue criminosa que se esmera também para ser um bom chefe de família – e que tem uma visão empreendedora à frente do seu tempo, embarreirada pelo racismo. Ele modula seu Loy Cannon entre o sinistro, o violentíssimo, o sagaz, o ambicioso e o doce, enquanto busca manter o poder, preservar a família – e, no amargo final, redimir sua alma.
2. JUNO TEMPLE
Conhecida mundo afora por conta de uma série recente de imenso sucesso e repercussão, Juno surge na temporada 5 de Fargo completamente diferente de Kelley – a doidinha-com-muito-talento-e-um-coração-de-ouro da comédia Ted Lasso.
Sua Dorothy “Dot” Lyon é uma dona-de-casa e mãe de família atenciosíssima com um passado assustador, que busca na normalidade da vida no subúrbio um refúgio dos abusos do ex-marido xerife todo-poderoso e trumpista. Mas é capaz de virar um animal selvagem e impossível de ser derrotado quando atacada pelos capangas do homem asqueroso com quem se casou (forçada) aos 15 anos. E tenta amansar com puro amor a criatura sobrenatural que não desiste de cumprir a missão de que foi encarregado: a de matá-la.
3. OLE MUNCH
Taciturno, vestindo um kilt escocês, um penteado que lembra o dos Beatles e com zero emoção, falando por meio de parábolas e referindo-se a si próprio na terceira pessoa, Munch teria nascido nos anos 1500, no País de Gales, ou descenderia de um “comedor de pecados dos mortos” daquele tempo, mas cá está ele, no século 21, como uma máquina de matar, um assassino infalível e de talentos de outro mundo, capaz até de ler os pensamentos de seus oponentes. Contratado originalmente para capturar Dot, uma presa aparentemente fácil que mostra-se “um tigre”, Munch torna-se um anjo exterminador – ou punidor. Vivido magistralmente pelo ator britânico Sam Spruell, Ole Munch é o ingrediente especial da quinta temporada da série.
4. A NARRATIVA E O TEXTO
Nada em Fargo é linear ou “normal”.
Tempos e locais aparentemente sem ligação nos confundem, a princípio, mas depois mostram-se partes integrais de um mesmo todo.
Uma temporada pode abrir com os bastidores bizarros de um faroeste em preto-e-branco estrelado por Ronald Reagan para situar a época da história central – a troca do poder na Casa Branca, de Jimmy Carter para o então já ex-ator.
Há momentos “cabeça” em que parecemos estar diante de um filme de Ingmar Bergman, ou de David Lynch.
Cenas paralelas aparecem ao mesmo tempo em telas subdivididas – e tudo que passa ali, em cada divisão, tem o mesmo peso e a mesma importância. Portanto, olho vivo.
E as falas chegam teatrais, textos elaboradíssimos e cheios de significados, prenhes de sotaques locais. Embora a tradução nem sempre faça jus a esses predicados.
Onde mais você encontra tudo isso num mesmo pacote?
5. A TRILHA MUSICAL
A trilha incidental do compositor e produtor Jeff Russo é um primor, acentua a dramaticidade da série de maneira nunca óbvia.
Enquanto isso, as faixas selecionadas cuidadosamente pela supervisora musical Maggie Phillips para complementar o trabalho de Russo fogem ao trivial, são escolhas incomuns, certeiras e complementares à narrativa, situando o tempo e dando o clima preciso da cena, sejam elas um spiritual negro, a banda de Duke Ellington quebrando tudo, um trecho de ópera ou um rock pesado do Grand Funk Railroad.
Chico Buarque aos 80. Você conhece Marechalwood? Festival para os saudosos dos anos 1980. Inteligência Artificial agita evento francês de animação. Que tal gastar como Bruce Wayne? Você tem bolsos para isso? E o R.E.M. se reúne para tocar … uma só música.
– Gigante da música, da literatura e do teatro, Chico Buarque de Hollanda comemorou 80 anos na quarta-feira passada com fôlego de menino e uma sucessão de homenagens passando em revista sua vida e sua carreira. Daqui a pouco, em agosto, lança um novo livro, Bambino a Roma, uma “autoficção” inspirada em sua infância. Antes disso, na TV, documentários enfocam os diferentes aspectos do trabalho de Chico. No canal Curta!, por exemplo, o próprio artista estreia a nova série Na trilha do som, onde irá conversar com o apresentador Marcelo Janot sobre as músicas que criou para filmes. Hoje, sexta (21/6), o programa Metrópolis mostra na TV Cultura reportagem especial sobre os 80 anos de Chico. E no sábado (22/6) a TV Brasil exibe Chico e as cidades, documentário com trechos dos shows da turnê As cidades, de 2019, com depoimentos de Buarque sobre seu trabalho e sua vida pessoal. Enquanto isso, a atriz Silvia Buarque, primogênita de Chico, escreveu um texto mostrando como é seu convívio com o pai.
– Já ouviu falar de Marechalwood? Subúrbio da Zona Norte carioca, o bairro de Marechal Hermes é um dos locais mais usados no município do Rio de Janeiro por quem procura locações para filmes ou comerciais. Tanto que ganhou o apelido carinhoso que o relaciona a Hollywood, a capital do cinema. De acordo com levantamento da Rio Film Commission, departamento vinculado à Secretaria Municipal de Cultura que atende às produções audiovisuais feitas em sua jurisdição, Marechal é o terceiro lugar mais usado em filmagens de todo o Rio, perdendo apenas para o Centro da cidade e o bairro do Flamengo. O motivo? “É um dos poucos lugares do subúrbio que mantêm um cenário de época”, atesta Zel Mir, morador do bairro que aluga para filmagens a casa onde ele e sua esposa, Lucy, moram, construída nos anos 1960.
– A nostalgia pelos rock dos anos 1980 ganhou um novo festival nos Estados Unidos, o Totally Tubular, que começa na semana que vem em Santa Barbara, na Califórnia, com um lineup que inclui Thomas Dolby, Modern English, The Plimsouls, Tommy Tutone, The Tubes, Men Without Hats, Wang Chung e Bow Wow Wow.
– A Inteligência Artificial foi um dos assuntos mais polêmicos durante o Festival de Annecy, na França, a maior mostra de filmes de animação do mundo, que aconteceu na semana passada. O tema provocou discussões por conta de cinco produções – quatro curtas e um longa – criadas, ainda que parcialmente, através do uso de ferramentas de IA. As principais críticas foram dirigidas à organização do festival, por aceitar incluir as obras no evento, ato considerado “vergonhoso” por alguns. Diretor artístico do festival, Marcel Jean fez questão de assinalar para o diário espanhol El País que não há regras que desclassifiquem uma produção por utilizar IA. Na verdade, dentre os mais de 3.400 filmes oferecidos ao festival, muitos utilizavam Inteligência Artificial, mas não entraram na seleção oficial final por carecerem de “uma visão”. Permaneceram apenas aqueles que “provocam questões que devemos compartilhar com o público, com a indústria, com os júris. (Selecionamos) o que achamos mais relevante, capaz de provocar ou estimular o debate”.
– Melhor que ser o Batman, talvez só ter o estilo de vida de Bruce Wayne, gastando a rodo para ter tudo do bom e do melhor. Pensando nisso, a recém-criada Wayne Enterprises Experience – uma empresa de verdade, inspirada nos quadrinhos – , com curadoria e produção da Warner Brothers Discovery Global Consumer Products and Relevance International, abriu ao público uma mansão no Chelsea, em Manhattan, onde qualquer um com um saldo bancário estratosférico convivia com personagens do escossistema de Batman e Bruce – como o mordomo Alfred ou mesmo o Charada, interpretados por atores – e podia adquirir bens do “dono da casa”, fossem eles um carro avaliado em mais de cinco milhões de dólares ou um super equipamento de som de 750 mil dólares. Bastava acessar um código QR situado no produto e, pronto, ele era seu. Foi uma oportunidade de (super) badalar a marca Batman e associá-la a outras, exclusivíssimas, que se beneficiam muito da parceria. O evento, ultra-exclusivo, durou apenas uma semana, mas os interessados ainda podem comprar online alguns dos produtos oferecidos. Quem se habilita?
– O R.E.M., um dos principais nomes do rock alternativo americano dos anos 1980 e 1990, reuniu-se pela primeira vez em 15 anos para uma apresentação ao vivo. Na semana passada, a formação clássica da banda – o vocalista Michael Stipe, o guitarrista Peter Buck, o baixista Mike Mills e mesmo o baterista Bill Berry, que se desligou da banda oficialmente em 1997 – subiu ao palco do auditório do hotel Marriott Marquis, em Nova York, para tocar uma versão de “Losing My Religion”, seu grande sucesso de 1991, para comemorar a entrada do grupo no Hall of Fame dos Compositores dos Estados Unidos. Em entrevistas, Bill Berry explicou que saiu da banda porque seu nível de energia caiu enormemente após ter sofrido um aneurisma cerebral, durante um show na Suíça, mas, de certa forma, mais tarde “meio que” arrependeu-se de ter ido embora. “Mas isso foi há muito tempo, faz um quarto de século”.
PLAYLIST FAROL 88
Os reflexos da turnê de 'Born in the U.S.A.". Def Leppard mergulha nos anos 1970. Heartworms nervoso. A delicada tapeçaria vocal de ANOHNI. O faroeste latino dos Hermanos Gutiérrez. O falsete delicado de Hayden Thorpe. Chinese American Bear combina características pop da China e dos Estados Unidos. Laurie Anderson homenageia a aviadora Amelia Earhart. Seal + Jeff Beck + Hendrix. E o adeus a Skowa.
Bruce Springsteen – “Born in the U.S.A.”– Entre 1984 e 1985, Bruce Springsteen reinava supremo como o maior astro de rock dos Estados Unidos, um gigante de popularidade impulsionado pela imensa repercussão e pelo sucesso fenomenal de seu sétimo álbum, Born in the U.S.A, um libelo anti-guerra e contra o lado podre dos Estados Unidos (então governado por Ronald Reagan) que foi interpretado por muitos como uma saudação patriótica ao país, acima de qualquer de seus defeitos – o que não era. Quarenta anos depois, sai agora um registro de momentos da turnê de lançamento daquele disco, que ecoa a força do repertório do álbum, o poder de Bruce e sua E Street Band no palco (aqui no topo da forma e completa, com Clarence Clemons e Danny Federici ainda a bordo) e a magia comunal operada pelo rock ’n’ roll.
Def Leppard – “Just Like 73”– Nesta parceria inédita, o veterano quinteto de pop-rock pesado de Sheffield une forças com o guitarrista Tom Morello, do Rage Against The Machine, para celebrar juntos uma época em que David Bowie e Marc Bolan brilhavam nas rádios e nos palcos.
Heartworms – “Jacked” – Guitarras nervosas, teclados eletrônicos paranóicos e uma variedade de efeitos sonoros impulsionam o novo single do projeto da londrina Jojo Orme, com ares de Siouxsie and the Banshees.
ANOHNI, Antony and the Johnsons– “Breaking” – Faixa gravada durante as sessões que deram origem a My Back Was A Bridge For You To Cross, considerado pelo FAROL um dos cinco melhores discos de 2023. Como no álbum, ANOHNI ecoa a sonoridade crua e o espírito do primeiro álbum solo de John Lennon, ao mesmo tempo que cria uma delicada tapeçaria harmônica com sua voz.
Hermanos Gutiérrez– “Lágrimas Negras”– Os irmãos Alejandro e Estevan (filhos de uma equatoriana e um suíço e baseados em Zurique) continuam aprimorando sua sonoridade de faroeste latino misterioso em seu recém-lançado quinto álbum, Sonido Cosmico. Como antes, produzidos pelo incansável Dan Auerbach.
Hayden Thorpe – “They” – Com um considerável quê de Elbow, o cantor-compositor inglês lançou um novo single solo, parte do álbum Ness, que sai em agosto, usando um falsete delicado para falar do plano belicoso de um antigo Ministro da Defesa britânico para desenvolver armamento para guerras.
Chinese American Bear – “Feelin'Fuzzy” – A dupla formada por Bryce Barsten e Anne Tong – de Seattle – combina características pop da China e dos Estados Unidos, com doses generosas de psicodelismo, mirando num público adolescente.
Laurie Anderson – “Road to Mandalay”- Vem aí álbum novo de Laurie Anderson, inspirado no voo que tirou a vida de Amelia Earhart, pioneira americana da aviação que morreu em 1937, quando sua aeronave caiu enquanto ela e seu navegador, Fred Noonan, tentavam fazer uma viagem transcontinental. O disco sai somente em agosto, mas a artista já disponibilizou um trecho curto, com menos de dois minutos de duração.
Seal – “Manic Depression”– A reedição comemorativa do álbum de Seal lançado em 1994 traz esta versão de um clássico de Jimi Hendrix, gravada para um disco em homenagem ao guitarrista que saiu um ano antes, com outro divino mestre do instrumento assumindo (e entortando) as cordas: Jeff Beck.
Skowa e A Máfia – “Atropelamento e Fuga”– Multi-instrumentista, o paulistano Marco Antônio Gonçalves dos Santos adotou o nome artístico de Skowa e tornou-se conhecido na cena independente, em especial por seu profundo conhecimento da música negra mundial. Teve passagens por grupos como Sossega Leão e Premeditando o Breque e ultimamente integrava uma formação nova do Trio Mocotó, pioneiro do samba-rock. Um dos momentos mais marcantes de sua carreira foi a criação do Skowa e A Máfia, grupo que misturava rock com funk, hip-hop e samba. Seu grande sucesso veio em 1989, com esta música. Skowa morreu esta semana, aos 68 anos.