Os Cinco Discos de 2023
Discos de reflexão, de revigoramento, ambiciosos e históricos compõem a lista dos destaques no ano musical do FAROL
Já dissemos isso aqui, mas vale repetir: selecionar os Discos do Ano é, por natureza, um exercício falho.
A peneira final reflete pontos de vista e opiniões que costumam ser divergentes e conflitantes quando uma seleção é confrontada com outra.
Basta dar uma vasculhada nas listas de Melhores do Ano em qualquer publicação. Nenhuma é igual à outra. Você concorda, se surpreende, se revolta ("como deixaram de fora fulano?"; "não acredito que incluiram essa porcaria!"). Mas é assim mesmo. E é esse o barato da coisa.
Nossos cinco destaques de 2023 (veja que não usamos a palavra “melhores”) são os discos que seduziram e encantaram por seu conceito, sua sonoridade, seu resultado final; são discos de reflexão, de revigoramento, de altas sacações, históricos, até. Com ambição.
Essa é nossa lista. Concordou? Se surpreendeu? Se revoltou? Tudo bem. Faz parte.
E na sua, entraria o quê? Mande para cá. Queremos muito saber o que fez sua cabeça em 2023.
Os Paralamas do Sucesso – Ronca Ronca Apresenta Os Paralamas do Sucesso Ao Vivo
Em 1999, os Paralamas fizeram um show especial para o Ronca Ronca, legendário e longevo programa de rádio de Mauricio Valladares (um parceiro de primeira hora do grupo, desde 1982), que este ano celebrou 40 anos.
Ao vivo no estúdio, Herbert, Barone e Bi tocaram clássicos (“The Tears of A Clown”, de Smokey Robinson & The Miracles, e “Sweet Sixteen”, de B. B. King) e surpresas (“Caleidoscópio”, sucesso de Dulce Quental, e "Eu Quero Ver o Oco", dos Raimundos). Com tudo sendo gravado numa fita cassete! Em mono! Para encerrar o set, uma das músicas-assinatura do Cream, “Sunshine Of Your Love”.
Inicialmente disponível apenas em vinil (e prensado em vermelho!), numa tiragem limitada que logo esgotou, o álbum chegou às plataformas de streaming em outubro. É um documento histórico de enorme importância – pelo conteúdo, por mostrar o trio curtindo à vontade suas influências e preferências, apresentando um setlist único, jamais reproduzido; e pelo formato – que celebrou, ao mesmo tempo, o rádio, os programas ao vivo, sem rede de proteção, e o vinil.
PJ Harvey – I Inside The Old Year Dying
Uma de nossas eternas musas, PJ lançou em 2023 seu primeiro álbum em sete anos, I Inside the Old Year Dying. E ele é inebriante.
É um disco desafiador, provocador, enigmático, que serve de acompanhamento para o livro de poesias de Harvey – Orlam, escrito num dialeto intransponível para a maioria, assim como algumas das letras aqui –, e recorre a tradições do interior da Inglaterra para criar um conjunto de canções de arranjos que soam caseiros (de propósito), tocados com instrumentos que soam distorcidos (de propósito), e repleto de momentos sombrios, que chegam até a provocar medo (crédito devido também aos co-produtores, John Parish e Flood). Ainda que em determinado ponto PJ cite a romântica “Love Me Tender”, sucesso de Elvis Presley.
ANOHNI and the Johnsons – My Back Was a Bridge For You To Cross
Após mais de 10 anos sem gravar com sua banda, ANOHNI reapareceu com os Johnsons em seu novo álbum, My Back Was a Bridge for You To Cross.
Abandonando a sonoridade pesada – por vezes, difícil de suportar – de seus discos solo recentes, ANOHNI aliou-se a um produtor de pop-soul, Jimmy Hogarth, para criar um álbum mais orgânico, mais humano, ainda que mais espartano, aqui e ali, por vezes ecoando a sonoridade e o espírito do primeiro álbum solo de John Lennon. É um disco sobre o amor como a base para a resistência num mundo cada vez mais duro.
A voz de ANOHNI, sozinha, sempre foi capaz de partir o coração ou de inundá-lo de emoção, e aqui ela se apresenta cheia de energia e foco, em momentos incorporando características soul ou gospel, mas sempre privilegiando sua base rock.
The Rolling Stones – Hackney Diamonds
O primeiro álbum dos Rolling Stones em quase 20 anos, gravado com Steve Jordan na bateria, Hackney Diamonds soa como se todo mundo no estúdio estivesse se divertindo à beça, com sangue nos olhos e disposição total, e traz todas as características clássicas do grupo, mas aqui elas estão potencializadas pela produção de Andrew Watt, concentradas: rocks explosivos, de refrão-chiclete (“Angry”, a faixa de abertura), baladas românticas (“Depending On You”, com a guitarra slide de Ronnie dialogando com o órgão Hammond de Benmont Tench), pitadas de country (a excelente “Dreamy Skies”), a tradicional faixa cantada só por Keith (“Tell Me Straight”), mergulhos na música negra (a divina “Sweet Sounds of Heaven”, uma apoteose soul/gospel, com participação de Lady Gaga e Stevie Wonder, o indiscutível ponto alto do álbum).
Paul McCartney entra distorcido e sujo na brincadeira punk de “Bite My Head Off” e Elton John completa o time de convidados tocando com elegância e impensada discrição em “Get Close”, e atuando da mesma forma que o também falecido Stone original Ian Stewart faria, batucando no piano, no melhor estilo boogie woogie, numa das duas vezes no álbum em que Charlie Watts comparece – “Living By The Sword”, um rockaço com Bill Wyman no baixo, reformando a seção rítmica clássica dos Stones. Charlie, gravado quatro anos atrás, empresta também seu suíngue à super dançável “Mess It Up” (recentemente editada em versão remix).
O encerramento do disco vem com Mick e Keith sozinhos, voz, gaita e violão interpretando “Rollin’ Stone”, a música de Muddy Waters que batizou o grupo. É um momento ao mesmo tempo puro e primal, onde se ouve, da forma mais palpável possível, a essência de Jagger e Richards – e, consequentemente, dos Stones. É um final de ciclo sublime, perfeito, redondo.
Paul Simon – Os Sete Salmos
Paul Simon teve um sonho. E o sonho virou uma obra-prima.
Aos 81 anos, o cantor-compositor icônico criou um dos melhores discos de sua carreira, no qual mostra o quanto andou pensando na vida, na morte – e no que vem depois.
Como George Harrison e David Bowie antes dele, Simon transformou em música suas meditações sobre a fragilidade, a brevidade e a velocidade vertiginosa da vida, sobre nossa finitude, e sobre o que acontece conosco uma vez que o coração para de funcionar.
“Dois bilhões de batidas de coração e fim. Ou começa tudo de novo?”, ele indaga em "Your Forgiveness”, uma das sete faixas que compõem os 33 minutos do álbum – transformado numa única peça musical, sem interrupção, nas versões em CD e via streaming.
Ao contrário de George e David, que gravaram, respectivamente, Brainwashed e Blackstar sabendo que estavam chegando ao fim – o que tornou esses trabalhos seus testamentos artísticos – , até onde se saiba Paul está saudável, ainda que tenha perdido quase toda a audição do ouvido esquerdo, o que pode impedi-lo de fazer mais shows. Mas a realidade atesta que há menos tempo à frente para Simon do que houve nos seus 65 anos de carreira – ao lado de Art Garfunkel e solo. Possivelmente, este será seu álbum derradeiro, sua chance de atar (ou desatar) todos os nós criativos que ainda restam, de deixar a vida em ordem, de por no papel tudo que faltou dizer. E o que ele conseguiu, nesse processo, foi criar um dos pontos mais altos da fase mais madura de sua carreira.
Conduzido basicamente pela voz e pelo violão de Paul – com pequenas intervenções de gaitas, sinos, percussão, instrumentos de sopro e as vozes do grupo britânico Voces8 – e a maior parte do tempo desatrelado dos formatos pop que moldaram toda a obra anterior do artista, Os Sete Salmos é um disco reflexivo, impressionista, repleto de imagens religiosas, que celebra a vida e examina a espiritualidade e o misticismo de forma interessada e repleta de dúvidas e indagações, de discussões do artista consigo mesmo a respeito de ter fé ou não – e em quê. São preces, hinos, pensamentos – muitos deles imperfeitos –, súplicas e observações sobre o que nos espera no fim da linha.
"Ando pensando muito na grande migração”, ele abre o disco, em “The Lord”. E logo se conclui que a migração a que ele se refere é a passagem da vida para a morte. E o Senhor do disco, o qual Paul cita repetidas vezes, é tão onipresente quanto o Deus de Harrison ("Ele não existe, ele é a própria existência”, diz George em “Brainwashed”), mas assume formas diferentes: para Simon, é "a terra por onde caminho, um rosto na atmosfera”, mas também é “meu engenheiro”, “meu reflexo na janela”, “a música que eu ouço”, “uma mata virgem”, “uma refeição para os mais pobres”, “o vírus do COVID” e “a elevação do nível do mar”. Ao mesmo tempo, dor, punição, bondade, gratidão, a natureza e o dia a dia.
Tourada é cultura? A volta do Spinal Tap – e de Axel Foley. Arnaldo Baptista lança livro. O Festival Rockarioca rola. E como deve ser trabalhar com Hayao Miyazaki?
– O recém-empossado Ministro da Cultura espanhol, Ernest Urtasun, vai ter que pegar o touro à unha – literalmente. Declaradamente anti-touradas num país onde mais de 200 mil empregos diretos e indiretos são gerados pela atividade, ele também se vê na berlinda junto aos grupos que compartilham de sua opinião, pois querem se certificar de que ele não mudará de lado. O Partido Animalista Con el Medio Ambiente, por exemplo, já está batendo na porta do ministro, pois quer que Ernest revogue uma lei que transformou a tourada em patrimônio cultural. Enquanto isso, os pró-touradas, liderados pela Fundación Toro de Lidia, mantêm uma acirrada luta jurídica para manter a atividade. Um artigo de opinião no diário La Vanguardia examinou a questão e levantou a bola: a tourada é cultura, sim, mas faz sentido mantê-la viva no século 21?
– Vem aí a sequência de Isto é Spinal Tap, o hilariante documentário de mentirinha, lançado em 1984, sobre um grupo inglês dos anos 1960 que entrava na década seguinte já em plena decadência, mas com a arrogância e a infantilidade intactas. Na nova produção, que começa a ser filmada em fevereiro, com Rob Reiner de novo na direção, comandando a formação clássica do filme – Christopher Guest, Michael McKean e Harry Shearer – , Paul McCartney e Elton John farão participações especiais.
– Outro filme icônico do mesmo período ganhará também sequência. O quarto longa da série Um Tira da Pesada já está sendo rodado em Los Angeles, com Eddie Murphy de volta ao papel do policial Axel Foley. Agora, ele ajuda a filha – uma advogada interpretada por Taylour Page – num caso envolvendo um criminoso que ela defende e, por isso, causa confrontos com o chefe da polícia (Kevin Bacon) enquanto trabalha ao lado de um novo parceiro (Joseph Gordon-Levitt). A produção está sendo feita para a Netflix e será lançada em 2024, numa data a ser anunciada.
– Arnaldo Baptista, cantor, compositor, multi-instrumentista e uma das forças-motrizes da formação original, clássica, dos Mutantes, vai lançar um livro, mês que vem, organizado a partir de textos seus. Ficções Completas trará a íntegra de seu romance – Rebelde Entre Rebeldes – mais os contos “O Abrigo” e “The Moonshiners”.
– Vai até amanhã, 2/12, o 2º Festival Rockarioca, evento anual que celebra a diversidade de gênero, raça, geração e território no rock produzido na região do Grande Rio de Janeiro. Acontece no Audio Rebel, em Botafogo.
– Como deve ser trabalhar com o diretor japonês Hayao Miyazaki, de 82 anos, ganhador do Oscar pelo clássico A Viagem de Chihiro?A reposta foi dada ao The New York Times, em parte, por Toshio Suzuki, de 75 anos, co-fundador com o cineasta do estúdio Ghibli e há quase meio século o principal colaborador de Miyazaki. O gatilho da conversa é o novo longa de animação, O Menino e a Garça, que sai semana que vem nos Estados Unidos mas foi lançado em julho no Japão, onde conquistou a segunda maior bilheteria naquele país de um filme produzido pelo Ghibli. Os dois se conheceram na década de 1970, quando Suzuki era um jornalista interessado em entrevistar o então estreante Miyazaki – e até hoje se falam todo dia, mesmo que não haja assunto urgente a ser discutido. E se reúnem pessoalmente duas vezes por semana, às segundas e quintas. É o oposto do relacionamento do diretor com Joe Hisaishi, de 72 anos, compositor com quem trabalha desde 1984. “Não nos vemos para falar de assuntos pessoais, não comemos juntos, não bebemos juntos. Só nos reunimos para falar de trabalho”.
PLAYLIST FAROL 63
O divertido pop-ska do Madness. Sleaford Mods regrava Pet Shop Boys. O ex-frontman do Midlake vira metade do Harp. Como Bonnie 'Prince’ Billy vai conseguir envelhecer? Raze Regal + White Denim. O drama e a urgência de Chartreuse. Joyce Moreno e Ivan Lins homenageiam Carlos Lyra. Erasmo Carlos + Gaby Amaranto numa inédita do Tremendão. E a despedida a Shane MacGowan e Lanny Gordin
Madness – “C'est La Vie”– O divertido pop-ska do estimado (e veterano) grupo inglês – são 40 anos de carreira – está de volta em seu primeiro álbum em pouco menos de uma década, Theatre of the Absurd Presents C'est La Vie.
Sleaford Mods – “West End Girls”– A dupla britânica reforça seu apreço pelo synthpop dos anos 1980 com uma nova versão de um dos maiores hits dos Pet Shop Boys – que, numa ação complementar, prepararam uma remixagem dessa cover!
Harp – “Throne of Amber”– A revista Uncut definiu com precisão que o primeiro disco de Tim Smith, o ex-frontman do Midlake, como integrante da dupla Harp (formada com a esposa Kathi Zung) soa como o que aconteceria se Robert Smith, do The Cure, tivesse encontrado na década de 1980 a coleção de discos folk do Fairport Convention dos seus pais. Na verdade, a música do Harp atualiza e aprimora o folk-rock texano do Midlake, que já misturava o pop do Fleetwood Mac com o som anos 1970 de bandas como … Fairport Convention!
Bonnie 'Prince’ Billy – “Keeping Secrets Will Destroy You”– "Diga o que está errado comigo. Se eu não souber, como vou conseguir envelhecer?”. A inquietação dos cinquenta e poucos anos de vida guia Will Oldham numa canção dolente, de clima feito-em-casa, que de certa forma traz à memória Harvest, de Neil Young.
Raze Regal & White Denim – “Tivoli”– Há um quê de pop anos 1980 nessa colaboração do quarteto de Austin, Texas, com o vocalista e guitarrista Raze Regal, do grupo californiano The Once and Future Band. Mas o solo de Moog leva a música para territórios outros, quase jazz-rock.
Chartreuse – “All Seeing All The Time” – O quarteto londrino investe no drama e na urgência, numa canção que fala sobre o massacre constante sofrido com o fluxo cada vez maior de informação.
Carlos Lyra/Joyce Moreno, Ivan Lins – “Influência do Jazz”– Os 90 anos do mestre da Bossa Nova estão sendo comemorados com um álbum-tributo recheado de regravações feitas por um lineup multigeracional de craques, que inclui também Caetano Veloso, Lulu Santos e Fernanda Abreu.
Erasmo Carlos/Gaby Amaranto – “A Menina da Felicidade” – Primeira amostra do álbum póstumo do Tremendão (morto em novembro do ano passado) que está para sair em algum momento de 2024, construído a partir de material inédito e inacabado, que ganhou letra ou música só agora, através de colaborações de artistas como Arnaldo Antunes. “A Menina da Felicidade” havia sido dada para Wanderléa gravar num disco que acabou nunca sendo feito. Aqui, a voz-guia do próprio Erasmo junta-se à da artista paraense.
The Pogues – "Fairytale of New York”– O rock irlandês perdeu, dias atrás, Shane MacGowan, o cantor-compositor que fez a ponte entre o punk rock e as tradições musicais de seu país, à frente do Pogues, do grupo dissidente que formou, The Popes, ou individualmente. Morto aos 65 anos, Shane era considerado por Nick Cave “o melhor compositor de sua geração”. Boêmio, McGowan acabou por apaixonar-se mais pela bebida de que cantava em suas canções do que pela própria música. Mas ele deixa uma discografia singular que o posiciona como um notável contador de histórias e símbolo da cultura irlandesa.
Gilberto Gil – “Back in Bahia”– Alexandre Gordin – ou Lanny, como tornou-se conhecido – foi um dos guitarristas mais completos, criativos e arrojados de sua geração. Com formação eclética (MPB, jazz, pop, rock), desde muito cedo, aos 16 anos, tocava na boate do pai, em São Paulo. Participou de grupo com Hermeto Pascoal e outro guitarrista, Olmir Stocker, gravou com a Jovem Guarda, e logo foi incorporado aos artistas da Tropicália. Lanny apareceu em discos de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Macalé (para quem tocou contrabaixo), fez shows com eles e acompanhou artistas como Elis Regina e Tim Maia. No auge da explosão da contracultura e do desbunde dos anos 1970, empunhando a guitarra que batizara carinhosamente de Bluebird, Lanny brilhou em dois álbuns icônicos dos baianos: Gal a Todo Vapor e Back in Bahia, de Gil. Potencializada pelo LSD, a esquizofrenia que já atormentava Lanny descarrilhou sua carreira e Gordin nunca se recuperou por completo. Apesar disso, realizou discos solo merecedores de destaque, como Lanny Duos, de 2007 (do qual participaram Arnaldo Antunes, Chico César, Gil e Caetano) e Lanny’s Quartet & All Stars, de 2014 (onde toca junto com um elenco de guitarristas que inclui Frejat, Pepeu Gomes, Edgard Scandurra, Sérgio Dias e Luiz Carlini). Lanny morreu na terça-feira passada, 28 de novembro, aos 72 anos. Era o dia de seu aniversário.