Os alquimistas (artificiais) estão chegando
Entre deepfakes sonoros feitos de brincadeira e falsificações marotas existe uma enorme distância. Mas como melhor lidar com o uso de Inteligência Artificial na música?
Na primeiríssima edição deste FAROL, naquele longínquo agosto de 2022, perguntamos: uma inteligência artificial consegue fazer música com emoção?
O gancho para a indagação era o concerto do grupo de música de câmara moderna Ensemble Signal no DiMenna Center for Classical Music, em Nova York, que promoveu o encontro de dois solistas: a flautista e compositora Nicole Mitchell, veterana do jazz, e o Voyager, programa de IA capaz de ouvir uma interpretação musical e responder com improvisos, plugado num teclado Yamaha Disklavier, via computador.
Nicole e a IA interpretaram “Tales of the Traveller”, peça de 20 minutos composta por George Lewis, pioneiro da música feita por computador e responsável pela programação inicial do Voyager, 35 anos atrás.
Mergulhamos mais fundo na questão, naquela matéria do ano passado: um ser humano pode sentir a música que toca e ouve, mas o que uma IA faz? Digere dados e os devolve matematicamente? Reproduz sentimento? Evoca e provoca emoção?
Passados oito meses, o mundo não é mais o mesmo e o buraco é bem mais embaixo. A Inteligência Artificial – de certa forma, romantizada em sua descoberta inicial – se sofisticou, se popularizou de maneira exponencial, e é a bola da vez na ciência e nas artes. Nesse momento, em especial, agita justamente o mundo da música, provocando debates acalorados em torno de criações por ferramentas de IA se insinuando nas plataformas de streaming, simulando a produção de artistas famosos e até forjando parcerias inexistentes entre compositores e cantores que nunca trabalharam juntos.
De um lado, existem exercícios bem-humorados que inventam “gravações perdidas” de nomes consagrados, assumidamente brincadeiras que demonstram as possibilidades da ferramenta quando aliada a um pouco de imaginação e uma boa dosagem de senso de humor. É o caso do projeto AISIS, descrito como sendo um álbum conceitual feito numa “realidade alternativa” onde a formação do Oasis entre 1995 e 1997 teria continuado a trabalhar no estúdio. Só agora achou-se uma gravação com essa nova produção. Na verdade, tudo não passa de uma mentirinha. A música foi criada pela banda indie britânica Breezer, dois anos atrás, em plena vigência do lockdown. Depois, usou-se uma ferramenta de IA para se substituir a voz do cantor original por uma simulação da voz de Liam Gallagher, o vocalista do Oasis.
Postado no YouTube, o projeto teve 70 mil views e recebeu elogios de fãs do Oasis – e até de Liam: “Uma puta loucura”, ele tuitou,“estou soando mega”.
Contudo, existe o lado sombrio da IA usada na música, semelhante a como vem sendo empregada nas imagens para a criação de deepfakes traiçoeiras. Circulou recentemente a música “Heart on My Sleeve”, uma pretensa “colaboração” inédita entre Drake e The Weeknd. Era, na verdade, uma criação de IA feita por um usuário anônimo do TikTok, Ghostwriter977 que se espalhou feito fogo em mato seco. As diversas postagens da música acumularam 11 milhões de views na plataforma de vídeos de curta duração.
Uma coisa é brincar com a IA, fazendo covers por pura diversão – algo hoje possível para qualquer um de posse do software cover.ai. Outra coisa é usar a IA para se fazer passar pelo produto genuíno. E ainda usando o cérebro, o coração e o suor dos outros.
Para gerar uma música, qualquer música, a ferramenta de IA precisa ser alimentada com a criação intelectual e artística de centenas, milhares de artistas de carne e osso, para assimilar, digerir e reproduzir o que aprendeu. Da mesma forma como ocorre também com imagens geradas por IA, é utilizado o conhecimento e o talento alheio – sem consentimento e sem remuneração.
O Google anunciou há pouco a ferramenta MusicLM, que gera músicas a partir de comandos por escrito. Digamos, “salta um samba com uma batida eletrônica e elementos de reggaeton!”. Pode sair um tremendo Frankenstein, lógico. Se for por brincadeira, tudo bem. Mas o que impede alguém de se aproveitar disso para criar deepfakes musicais e tentar ganhar um troco rápido com essa ilusão sonora marota? O que acontece se for pedido à ferramenta "uma música com melodias no estilo de Roberto Carlos, com letras como as de Chico Buarque e arranjos à Tom Jobim”? O Google garante que apenas um por cento da música gerada pela ferramenta teria relação com gravações existentes. Mas será mesmo?
Como defender os direitos autorais e intelectuais nessa hora? E como as empresas de streaming e distribuição evitam que gato passe por lebre nos seus canais?
Para ser aceita por uma plataforma como Spotify ou Apple Music, a música precisa chegar através de um gravadora ou de uma distribuidora, o que minimiza a possibilidade de que falsificações como “Heart on My Sleeve” saiam do território da molecagem e rendam algum dinheiro. Por outro lado, sem esses filtros, views no TikTok e no YouTube não se encarregariam de encher os bolsos dos falsificadores?
As gravadoras estão se precavendo contra os riscos do uso da IA para garimpar seus catálogos sem a devida autorização – num movimento semelhante à cobrança pelo uso de samples, décadas atrás –, pressionando as plataformas de streaming para rastrear todas as músicas que tenham usado Inteligência Artificial para extrair elementos de canções protegidas por copyright.
Além dos aspectos jurídico-legal – que será, eventualmente, mitigado, quando houver legislação apropriada – e ético, há também uma questão que levantamos lá no início de tudo, em agosto. Atender a um comando de voz ou texto e responder com uma simulação de humanidade pode ser considerado fazer música? E essa música criada por IA, por mais bem elaborada, tem coração? E é capaz de provocar aquilo a que toda boa canção de almejar – comunicação e emoção?
A trabalheira que dá montar a lineup de um festival de música. Drummond reeditado e ampliado. Spielberg e PTA discutem a preservação de filmes. “Garota de Ipanema” é a música mais gravada do ano. E Lucinda Williams escreveu um livro de memórias.
– Como é feita a seleção de quem comporá o lineup de um festival de música como Lollapalooza ou Rock In Rio? O diário espanhol El País fez essa pergunta à equipe do festival Primavera Sound, nascido em Barcelona em 2001 como um evento de música indie e pop com preocupação ambiental e social e que hoje tem versões em países como Estados Unidos, Chile, Portugal e Brasil. Para a edição 2023, que acontece pela primeira vez também em Madri, serão 238 atrações, selecionadas por um grupo de 10 pessoas.
– Vinte e cinco poemas de Carlos Drummond de Andrade inéditos em livro fazem parte da reedição de Viola de Bolso, obra do mineiro lançada originalmente em 1952 e agora ampliada, graças ao trabalho de Pedro Graña Drummond, neto do poeta e administrador do espólio do avô, morto em 1987. “Para mim, cuidar da obra dele é uma forma de atenuar a saudade", disse Pedro a O Globo.
– Os diretores Steven Spielberg e Paul Thomas Anderson se reuniram na semana passada para discutir a preservação de filmes antigos. Eles fizeram parte de um painel organizado na noite de abertura do TCM Classic Film Festival no famoso Chinese Theatre, em Hollywood, quando foi exibida uma cópia restaurada, e em 4K, do clássico Rio Bravo (Onde Começa o Inferno), filme de 1959 dirigido por Howard Hawks. Spielberg explicou à platéia que Martin Scorsese havia lançado a Film Foundation, em 1999, para preservar a historia do cinema, grupo ao qual Steven se associou, junto com Francis Ford Coppola, Stanley Kubrick e Sydney Pollack. Por sua vez, Anderson ressaltou que um trabalho de preservação vai além do cuidado com a história do cinema, mas também com as próprias memórias ligadas a filmes. "Onde eu estava quando vi E.T.-O Extraterrestre pela primeira vez?”, ele indaga. "Lembro tão bem de quem estava comigo naquele momento quanto do próprio filme". Trechos do bate-papo estão no YouTube.
– “Garota de Ipanema”, obra-prima de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, lançada em 1962 e um clássico da cultura brasileira, encabeça a lista de músicas do Brasil mais gravadas, segundo levantamento do ECAD (entidade brasileira responsável pela arrecadação e distribuição dos direitos autorais na indústria fonográfica). São 442 versões registradas mundo afora, mantendo a canção na liderança pelo segundo ano consecutivo. Empatadas em segundo lugar estão "Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso (ex-líder do ranking), e “Carinhoso", de Pixinguinha e Braguinha, cada uma com 430 gravações. Tom e Vinícius, aliás, aparecem na mesma lista com duas outras parcerias: "Eu Sei Que Vou Te Amar" (em 5º lugar, com 279 gravações) e "Chega de Saudade” (em 7º, com 257 gravações).
– A country-rocker blueseira Lucinda Williams está lançando um livro de memórias – Don’t Tell Anybody the Secrets I Told You – junto com seu novo – e excelente – álbum, Stories from a Rock N Roll Heart, do qual já falamos aqui. Ela escreve sobre o início da carreira, quando tocava em troca de gorjetas e não era compreendida pelas gravadoras americanas, que não sabiam o que fazer com seu estilo rascante e rebelde: "é country demais para ser rock e rock demais para ser country”, reclamavam. Tanto que acabou sendo contratada por um selo … inglês, Rough Trade Records.
PLAYLIST FAROL 33
Vizinhos fazem música juntos. Jorja une África e blues americano. Ann-Margret nascida para ser selvagem. Folk escocês pastoral e psicodélico. O pop afro-futurista de Fatoumata Diawara. A nova do Foo Fighters. Bobby Womack regrava James Taylor. Stereolab + Mombojó. E a despedida de Mamão e Ahmad Jamal.
Dudu Tassa, Jonny Greenwood – “Ashuka Shay”– Guitarrista do Radiohead e compositor de trilhas sonoras, Jonny juntou-se ao israelense Tassa para fazer um álbum de sonoridade internacional, Jarak Qaribak (Seu Vizinho é Seu Amigo), que traz participações, ainda, de músicos dos Emirados Árabes e do Líbano, como o vocalista Rashid Al Najjar, que participa desta faixa.
Jorja Smith – “Try Me”– A britânica Jorja faz uma ponte entre a África e o blues americano – notadamente, Bo Diddley – em seu primeiro single desde 2021.
Ann-Margret – “Born To Be Wild”– Sim, você leu certo. É ela mesma, Ann-Margret, boazuda que cantou e representou ao lado de Elvis Presley nos anos 1960 e foi a mãe de Tommy na versão em filme da ópera-rock do The Who. Aos 81 anos ela gravou um álbum de covers, cercada de um butantã musical que inclui Pete Townshend, Clem Burke (ex-baterista de Blondie e Eurythmics), Don Randi (tecladista do Wrecking Crew, legendário grupo de músicos americanos de estúdio) e os Fuzztones, veteranos nova-iorquinos do som garagem, que a acompanham nesta versão do clássico sixties do Steppenwolf.
Stornoway – “Trouble With Green” – O pendor melodioso do quarteto escocês de folk-pop empresta um pouco da dramaticidade teatral de Peter Gabriel – com direito a flauta e Mellotron – nesta faixa pastoral/psicodélica, com diversos movimentos, para falar de … cores.
Fatoumata Diawara – “Massa Den” – Nascida no Mali mas baseada há anos em Londres, produzida por Damon Albarn, Fatoumata cria com sua voz e sua guitarra um pop afro-futurista arrebatador.
Foo Fighters – “Rescued"– A primeira nova música do grupo desde a morte do baterista Taylor Hawkins é descrita pela banda como “uma resposta brutalmente honesta e emocionalmente crua a tudo por que passou o Foo Fighters no ano passado”. Ela será a faixa de abertura do álbum But Here We Are, que sai em junho.
Bobby Womack – “Fire and Rain” – Em 1971, Womack – super craque do R&B, cantor e compositor de gemas como “Lookin' for a Love”, e colaborador constante dos Rolling Stones, que chegaram ao topo das paradas inglesas com uma composição dele, “It’s All Over Now" – gravou esta versão soul do clássico de James Taylor.
Modern Cosmology – “A Time To Blossom” – O Stereolab, grupo franco-britânico pioneiro do art-rock, casou com o recifense Mombojó, de alt-MPB, e teve um filho chamado Modern Cosmology. Agora, o rebento lança seu primeiro álbum desde a gênese do bebê, What Will You Grow Now?. O resultado é algo bem próximo do tropicalismo.
Azymuth– “Castelo-Version 1”– Carioca do Estácio, Ivan Miguel Conti, mais conhecido pelo apelido – Mamão –, tornou-se um dos mais versáteis e requisitados bateristas do Brasil, gravou com meio mundo da MPB – de Marcos Valle, Tim Maia e Candeia a Rita Lee, Eumir Deodato e Elis Regina – e formou com o tecladista José Roberto Beltrami e o baixista Alex Malheiros o trio Azymuth, marco do jazz-funk brasileiro. Referência para a música instrumental do país, Ivan morreu esta semana, aos 76 anos.
Ahmad Jamal – “Poinciana”– O pianista americano tinha um toque econômico mas elegante e melódico que fez dele um dos mais influentes e respeitados instrumentistas e compositores do jazz moderno, capaz de influenciar gigantes como Herbie Hancock e Miles Davis e, mais tarde, artistas de hip hop. Uma de suas características era dar tratamento especial a standards, como foi o caso de “Poinciana", canção pop romântica da década de 1940 que acabou sendo uma espécie de faixa-assinatura sua, quando a gravou, 10 anos depois. Jamal morreu na semana passada, aos 92 anos.