Ópera, Broadway e rock, tudo junto e misturado no século 21
Uma ópera sobre os últimos dias de um astro de rock muito parecido com Kurt Cobain e a adaptação do filme ‘Quase Famosos' para o teatro musicado abrem novas possibilidades
Rock e ópera já se miscigenam desde a década de 1960, quando pioneiros como Pete Townshend (Tommy), Frank Zappa (Absolutely Free) e The Kinks (Arthur Or The Decline and Fall of The British Empire) decidiram expandir as fronteiras da música pop criando álbuns conceituais, temáticos, que contavam uma mesma história, com começo, meio e fim, através de suas faixas – muitas vezes confortavelmente esparramadas por quatro lados de um LP duplo de vinil.
A mesma coisa aconteceu entre o rock e o teatro musicado da Broadway – Hair e Jesus Cristo, Superstar são exemplos desbravadores.
Ao longo do tempo, as duas modalidades – a ópera rock e o musical rock da Broadway – se popularizaram, mutuamente se influenciaram, e chegam ao século 21 oferecendo uma diversidade de interpretação de suas possibilidades com frescor renovado.
Nesta sexta-feira, 14 de outubro, estreia na Royal Opera House, em Londres, Last Days, uma ópera que não é necessariamente rock, mas cujo protagonista, o astro de rock Blake, é baseada num ícone trágico do gênero: Kurt Cobain, do Nirvana, que se matou em 1994.
Os quatro dias da temporada de Last Days – inspirado até certo ponto no filme de mesmo título, de Gus Van Sant, lançado em 2005 – estão com lotação esgotada, o que demonstra o interesse pelo formato e pelo espetáculo, criado em parceria pelo artista Matt Copson e por Oliver Leith, compositor-em-residência na Royal Opera House, ambos estreando no mundo da ópera, e estrelado pela atriz Agathe Rousselle (que, ao cantar no palco, balbucia de tal forma que é preciso acompanhar legendas com as letras projetadas numa tela).
Fãs de Cobain reconhecerão as referências visuais óbvias que ligam Blake a Kurt (o estilo de óculos escuros, por exemplo), mas os autores da ópera dizem estar menos interessados no que movia o compositor de “Smells Like Teenage Spirit”.
Um dos objetos de cena de destaque é uma espingarda semelhante à que o artista usou para se matar. Mas os realizadores garantem estar menos interessados na vida ou na motivação de Cobain, ou no que aconteceu de fato com ele, do que em saber "o que nós, como cultura ocidental, queremos de nossos símbolos”, como explicou Copson numa entrevista ao The New York Times.
E mês que vem chega à Broadway a versão teatro-musicado de Quase Famosos, a semi-autobiografia do jornalista Cameron Crowe que rendeu a ele o Oscar de Melhor Roteiro, em 2000. O musical, como o filme, segue a trajetória de William, jovem de 15 anos apaixonado por rock e jornalismo que, no início dos anos 1970, parte para entrevistar alguns de seus maiores ídolos – Black Sabbath, The Allman Brothers Band, David Bowie – para publicações como as revistas Creem e Roling Stone.
O próprio Cameron se encarregou do libreto da adaptação de seu filme para o formato musical – cuja estreia ocorreu três anos atrás, no Old Globe Theatre, em San Diego, na Califórnia, antes que a pandemia impedisse que o espetáculo ganhasse a estrada. E o hiato provocado pela chegada do COVID acabou levando Crowe a reescrever (ou adicionar) passagens do musical, inclusive atualizando traços de personalidade de personagens, como Penny Lane, a groupie vivida no cinema por Kate Hudson e no palco por Soleia Pfeiffer.
No musical, Penny “tem mais controle sobre suas ações e sobre as consequências que elas trazem”, explicou Crowe numa entrevista, em vez de permanecer primordialmente um objeto de desejo do rapazes e homens, como no filme.
Por outro lado, o diretor do espetáculo, Jeremy Herrin, disse em entrevista que o objetivo não foi atualizar Penny e suas amigas utilizando os parâmetros do Século 21. “Seria espantoso dar às personagens um vocabulário e um processo de raciocínio que não teriam (nos anos 1970)”, explicou. “Mas tentamos ser responsáveis sobre a maneira que apresentaríamos (aquele mundo”.
E mais …
O olhar feminino das fotógrafas da agência Magnum. Documentário homenageia Sidney Poitier. ‘Menino Maluquinho’ ganha personagem negra. A OSESP faz história no Carnegie Hall. Os 60 anos de ‘Love Me Do’. E o diretor de ícone do cinema queer vai filmar no Rio de Janeiro
– Recém-aberta no International Center of Photography, em Nova York, a exposição Close Enough: New Perspectives from 12 Women Photographers of Magnum celebra, através de 150 fotos, o olhar feminino das profissionais da agência Magnum, cooperativa de fotógrafos independentes do mundo inteiro, criada em 1947. Com curadoria de Charlotte Cotton, que já trabalhou no Victoria and Albert Museum, em Londres, e no Los Angeles County Museum of Art, em Los Angeles, a mostra coincide com o aniversário de 75 anos da Magnum e reúne trabalhos registrados em diferentes países e diferentes culturas, de Argentina e Turquia a Espanha e Reino Unido. O título escolhido para a exposição – que fica em cartaz até 9 de janeiro – parafraseia o fotógrafo Robert Capa, um dos fundadores da Magnum: “Se suas fotos não estão boas o bastante é porque você não está perto o suficiente”.
– O impacto cultural e político de um dos gigantes do cinema e o primeiro astro negro de Hollywood, o ator, cineasta e ativista Sidney Poitier – morto em janeiro passado, aos 94 anos – é o assunto do documentário O legado de Sidney Poitier, que Oprah Winfrey produziu para a Apple TV +, com depoimentos de Spike Lee, Barbra Streisand, Denzel Washington, Morgan Freeman e outros. De reboque, a Apple disponibilizou cinco clássicos da carreira de Poitier, dentre ele Ao Mestre, Com Carinho, e Um Por Deus, Outro Pelo Diabo, co-estrelado por Harry Belafonte.
– A Orquestra Sinfônica de São Paulo faz história neste fim de semana, apresentado-se por duas noites – hoje (sexta-feira, 10/10) e amanhã – no Carnegie Hall, em Nova York. É a primeira orquestra da América do Sul a subir naquele prestigioso palco, segundo O Globo. No repertório, a suíte “Scheherazade”, de Nikolai Rimsky-Korsákov, bem como um programa chamado “Floresta Villa-Lobos”, que inclui, além da obra de Heitor, a música de Tom Jobim, Clarice Assad, Uakti e a “Sinfonia dos Orixás", de Almeida Prado.
– Os 60 anos de lançamento do primeiro single dos Beatles, “Love Me Do”, foram celebrados na quinta-feira da semana passada, 5 de outubro, com a disponibilização de duas novas versões da música, gravadas por artistas jovens – a cantora de jazz Ni Maxine e o grupo pop TRAITS – na mesma casa em Liverpool onde Paul McCartney morava, e onde ele e John Lennon compuseram suas primeiras músicas em parceria. O evento foi organizado pelo National Trust, o órgão de patrimônio nacional que hoje é dono da casa de número 20 em Forthlin Road (assim como da casa da Tia Mimi, onde Lennon foi criado) e os artistas foram selecionados pelo irmão de Sir Paul, Mike McCartney, pelo DJ e jornalista Pete Paphides e por representantes do National Trust.
– A nova série animada baseada em O Menino Maluquinho, obra clássica de Ziraldo, estreou nesta quarta-feira, Dia da Criança, na Netflix, com uma mudança notável em relação ao original: Julieta, uma das personagens mais importantes da história, deixou de ser branca para ser negra. Segundo um dos produtores da série, Rodrigo Olaio, a mudança ocorreu para tentar atualizar a obra. “Ziraldo gostou muito da ideia”, disse Rodrigo à Folha de S. Paulo, "achou massa". "Trouxemos mais ritmo, comédia e diversidade para fazer uma série com cara de 2022”, acrescentou a showrunner Karina Schulze.
– O cineasta australiano Stephan Elliott, catapultado à fama internacional após ter dirigido Priscilla, a Rainha do Deserto, pretende realizar no Rio de Janeiro seu próximo filme. De passagem pela capital fluminense por conta do Festival do Rio, Stephan disse estar disposto a voltar ao estilo extravagante e queer de Priscilla. “Não queria ficar preso na imagem do cara extravagante, fã de musicais, mas, 30 anos depois, estou mais velho, mudei minha relação com o filme e decidi que é hora de revisitar esse universo”, explicou à Folha de S. Paulo.
Lado Z – Nas trincheiras do jornalismo musical, mundo afora, com José Emilio Rondeau
Uma tarde em Santa Monica com Pamela Des Barres, a supergroupie
Toda essa conversa sobre Quase Famosos reavivou na memória uma tarde de chá, conversa e muitas risadas na casa de Pamela Des Barres, em Santa Monica.
Californiana do Vale de São Fernando, ao norte de Los Angeles, Pamela já era fã de música pop durante o ensino médio quando um amigo a apresentou ao blues rock psicodélico de Captain Beefheart e ela, aos 17 anos, se mandou para Hollywood, em busca de tudo que tivesse a ver com a música que começava a fazer sua cabeça.
Começava ali uma vida rica em experiências e convivência com boa parte da realeza rock dos anos 1960 e 1970 – americana e européia – , como fã, confidente, colaboradora e amante.
Pamela tornou-se uma das figuras de destaque dentre as groupies, moças sempre muito jovens (algumas, menores de idade) que dedicavam todos seus dias a seguir (e servir) seus ídolos, em turnês, estúdios, quartos de hotel, costurando um relacionamento de intimidade e cumplicidade que em muitos casos resultava em amizade verdadeira e mesmo parceria artística ou profissional.
Houve até um momento em que Frank Zappa, entusiasmado, formou um grupo musical/performático integrado exclusivamente por groupies, o GTO (Girls Together Outrageously), que chegou a gravar um disco, Permanent Damage, mais uma curiosidade pitoresca do que qualquer outra coisa. Mas rolou.
Esses anos em que ela conviveu com artistas como Mick Jagger, Jim Morrison, Keith Moon, Jimmy Page, Robert Plant, Alice Cooper e Jimi Hendrix foram relatados num livro divertidíssimo, lançando por Pamela – que eventualmente casaria com o vocalista inglês (e marquês de verdade) Michael Des Barres – em 1987: I’m With The Band-Confissões de Uma Groupie.
As peripécias de Pamela e de suas colegas groupies inspiraram Cameron Crowe na hora de criar a personagem Penny Lane, vivida por Kate Hudson no filme Quase Famosos. Daí a sinapse.
Voltando a Santa Monica …
Um jornalista suíço, Claude Etique – baixinho, sorriso cheio de dentes, cabelos fartos e sempre vestido como se fosse um astro-de-rock-em-treinamento – era correspondente em Los Angeles, onde cobria cinema e (claro!) rock. Ele conhecia todos os leões de chácara dos nightclubs de West Hollywood. E conhecia Pamela.
Em 1988, Claude, eu, mais um grupo de outros jovens correspondentes estrangeiros em L.A. vínhamos tentando criar uma associação que nos fortalecesse, para que conseguíssemos mais espaço, acesso a entrevistas e poder dentro de um mercado super competitivo. Especialmente no caso da cobertura de cinema.
Seria uma espécie de contraponto à veterana Hollywood Foreign Press Association, que açambarcava todas as atenções, especialmente por conta dos prêmios Golden Globes, fortes ferramentas de marketing para os estúdios de cinema e TV. Pensamos até num nome para essa nova associação – algo como The Hollywood International Independent Press, não lembro direito, por aí –, mas a ideia nunca deslanchou.
De todo modo, como parte desse esforço conjunto, Claude organizou uma coletiva com Pamela Des Barres, para falar do livro, na residência dela, uma casa pequena e charmosa num recanto pacato, não muito distante do mar.
Foi no mínimo curioso dar de cara com Pamela – àquela altura, uma “senhorinha" de 50 anos que nos servia chá – tendo a memória cheia das histórias de sexo, drogas e rock ’n’ roll contidas no livro.
Sempre sorridente e muito falante, Pamela corroborou tudo que havia contado no livro. Estava no auge da juventude, tinha acesso total ao centro nervoso da indústria de rock (antes mesmo que esse nome já existisse), curtia o sexo livre e sem grilos com pessoas que admirava e que tinha como grandes artistas, e se considerava uma igual, não uma peça descartável que é jogada fora depois de usada.
E o próprio fato de estar ali, falando com alegria e orgulho sobre o livro que narrava suas aventuras nos bastidores, nas camas, nas limusines e nos aviões de seus ídolos demonstrava que Pamela era mais que uma sobrevivente sortuda de um período que deixou muita gente devastada, destruída. Quando muitas de suas colegas groupies haviam sucumbido à solidão, às drogas, à bebida, ao desemprego e ao desabrigo, Pamela virou uma estrela – e uma profissional bem-sucedida, que soube fazer de sua vivência a matéria-prima de sua carreira profissional.
Hoje com 74 anos, ultra de bem com seu passado, Pamela tem mais três livros editados, ministra cursos de escrita criativa exclusivamente para mulheres, alimenta um canal no YouTube com suas divertidíssimas memórias (não perca o vídeo em que ela conta como começou sua convivência com astros de rock, em 1966, ganhando acesso a um show dos Byrds, mesmo sendo “de menor”, e um baseado dado por Roger McGuinn) – e oferece visitas guiadas aos locais em Los Angeles onde viveu a vida de rock de uma supergroupie.
PLAYLIST FAROL 8
Springsteen revisita clássicos do R&B e da soul music. O pop Beatlesco de Sofie Royer. O gatinho adorável do Deerhoof. O canto falado do Dry Cleaning. E o hip hop futurista de NMANDÏ.
Bruce Springsteen – “Do I Love You (Indeed I Do)” – O Chefão tirou da manga um álbum todo dedicado a clássicos do rhythm and blues e do soul, Only The String Survive. São versões para 15 canções tornadas famosas por artistas como The Commodores, Diana Ross & The Supremes, The Four Tops e The Temptations. O primeiro gostinho vem com este cover de um sucesso de Jackie Wilson.
NNAMDÏ – “Armoire”– O cantor, rapper e multi-instrumentista Nnamdi Ogbonnaya já foi chamado de “o artista mais esquisito de Chicago”, mas o epíteto é insuficiente para balizar a música sem fronteiras de gênero que ele faz em seu recém-lançado novo álbum, o sensacional Please Have a Seat.
Ondara – “An Alien in Minneapolis” – Ondara nasceu no Quênia mas mora em Minessota, no coração dos Estados Unidos, e faz um folk rock pop irresistível, tingido de Americana, que o aproxima tanto de David Gray e Jim Croce quanto do U2. Ironicamente, fala aqui do sentimento de deslocamento ao perceber que a forma como foi recebido no país de onde ouvia a música que fez sua cabeça difere – e muito – do que era sua expectativa.
The Cult – “Mirror” – O som clássico do grupo britânico – representado pela voz de Ian Astbury e os riffs de guitarra encharcada em eco de Billy Duffy – está intacto, senão revigorado, em seu décimo-primeiro álbum, Under The Midnight Sun.
Sofie Royer – “Schweden Espresso”– Vem de Viena o pop requintado e cheio de pedigree de Sofie, com barretadas sucessivas a influências como os Beatles, Kate Bush, Paul McCartney da safra mais recente – e até Sufjan Stevens.
Tristesse Contemporarie – “England”– Um chegou da Suécia. Outro, do Japão. Mais um da Inglaterra e, por fim, da Jamaica. Todos se encontraram na França, onde formaram um quarteto que mistura “de um tudo” em seu caldeirão pop energizante, leve, super bem-humorado – e irresistível.
Deerhoof – “My Lovely Cat!”– O amor por felinos (e o desejo de imortalidade para um bicho de estimação) é a motivação do grupo californiano nesta canção composta e cantada em japonês pela baixista e vocalista Satomi Matsuzaki.
Fever Ray – “What They Call Us”– Numa onda não muito distante da de Björk, a escandinava Karin Dreijer é conhecida pela música eletrônica feita junto com o irmão Olof, sob o nome de The Knife. Solo, ela vira Fever Ray, mas mantém o parentesco musical com sua banda de origem, apenas carregando mais a mão no mistério e na tensão.
Midwife – “Sickworld”– O dream rock etéreo de Madeleine Johnston – americana de Denver – lembra bastante Judee Sill, mas ela prefere chamá-lo de Heaven Metal.
Dry Cleaning – “Don't Press Me”– Rock alternativo britânico de uma economia espartana (dura menos de dois minutos), liderado pelo canto falado de Florence Shaw, uma amostra do novo álbum do quarteto, Stumpwork.