O mundo dos mortos-vivos
Em clima de Halloween, o FAROL mostra uma exposição em Paris que explora as raízes e a cultura dos zumbis, do Haiti a Hollywood
É zumbi no cinema, no seriado, nos gibis, no videogame, por toda parte – e, também, claro, no Halloween.
Os contagiantes, apavorantes zumbis – e suas variações – são hoje parte integral da cultura pop mundial, personagens-metáfora dos pesadelos da humanidade, merecedores de uma nova e grande exposição, Zumbis-A Morte Não É o Final?, em cartaz até fevereiro no Musée du Quai Branly, em Paris, onde é traçada sua origem, são delineados seus desdobramentos e confrontados seus mitos.
A exposição reúne telas, esculturas, máscaras e bonecos-talismã “para mostrar as realidades escondidas por trás do medo desta icônica ‘não-morte’ e explorar a construção do mito no imaginário coletivo ocidental, desde a sua evocação, em 1697, no romance Zumbi, do escritor francês Pierre-Corneille Blessebois”, como explica o texto de apresentação da mostra.
A figura do ser morto-vivo, em termos antropológicos, teria nascido pelo menos no século 17, no Haiti, embora a origem etimológica da palavra aponte relações também com Angola, a República do Congo e o Gabão. Segundo Danny Laferrière, escritor de origem haitiana e membro da Académie Française, num dos textos do catálogo da exposição, viria dessa interseção a palavra Nzambi, utilizada para designar um espírito ou fantasma de um morto. Com o tráfico dos escravos e o consequente sincretismo religioso, ao atravessar o Atlântico a palavra e seu significado passaram por uma evolução.
A figura do zumbi também serviu de ferramenta de domínio dos escravos africanos. Muitos se matavam ao concluir que jamais escapariam à escravidão. A saída para evitar as baixas foi se aproveitar dos mitos e das lendas trazidos por eles e inventar que não adiantava morrer, porque seus corpos seriam reanimados e devolvidos ao campo. Como quer que fosse, os escravos estavam condenados a trabalhar para sempre.
Antes disso, no entanto, ainda de acordo com Laferrière, já no século 12 há registros de “zombificação” no Haiti. Depois de ter cometido crimes, uma pessoa seria julgada por uma espécie de sociedade secreta. Uma vez condenada, seria drogada com tetrodotoxina, ou TTX, extraída do baiacu, enterrada viva, depois exumada e exilada, transformada em escrava de um feiticeiro, um processo que poderia durar décadas, até a morte da pessoa. Um caso detalhado cientificamente na mostra, de 1962, é o de Clairvius Narcisse. Ele havia sido denunciado por um irmão depois de ter vendido um pedaço de terra que não era seu, delito grave no Haiti. Por isso, condenaram-o a virar um zumbi. Assim, drogado, trabalhou durante dois anos. Até que um dia esqueceram de dar a dose diária da droga que o mantinha em estado de zumbificação – e ele fugiu e desapareceu. Só ressurgiu depois de saber que o irmão denunciador tinha morrido. Dezoito anos mais tarde.
Após a aparição original no livro de Blessebois, a figura do zumbi se espalhou nos escritos europeus a partir de meados dos anos 1900. Um exemplo é o livro A Ilha da Magia-Fatos e Ficção, lançado por William Seabrook em 1929.
Mais adiante, Hollywood se encarregou de popularizar a figura do zumbi ao extremo, do momento em que George A. Romero tirou o sono de meio mundo com A Noite dos Mortos-Vivos, em 1968. Desde então, o personagem virou reflexo de condições sociais e políticas do mundo – de guerras a pandemias –, e tornou-se sinônimo do fim dos tempos, em parte por ser uma criatura “despojada de qualquer referência cultural ou religiosa, praticamente dessacralizada, por isso podendo ser exportado para todas as culturas e filmes do mundo”, explica Philippe Charlier, curador da exposição parisiense.
Do videoclipe de “Thriller”, de Michael Jackson, a The Last of Us (jogo eletrônico e seriado) e The Walking Dead, passando, é claro, pelo Carnaval e pelo Halloween, o zumbi vem-se perpetuando no decorrer das décadas, adaptando-se aos tempos e representando, a cada nova década, um ou mais de nossos temores.
Como nossa atual ansiedade em relação à diminuição dos recursos de um planeta superpovoado, conforme aponta o jornal espanhol La Vanguardia, referindo-se a The State of the Zombie Literature: An Autopsy, livro de Terrence Rafferty. O autor conclui que “existe um sentimento de que há demasiadas pessoas por aí, com demasiadas necessidades urgentes, e que no final estas massas invasoras irão simplesmente nos consumir”. De acordo com ele, e isto seria o mais assustador, essas criaturas não humanas “podem servir de metáfora para pessoas reais, como os imigrantes indocumentados ou as massas dos países em desenvolvimento”.
Uma inédita de Chopin? Os quadrinhos 'roláveis’ da DC Comics. Clarice Lispector, entrevistadora. Quem vai ficar com a mesa de som dos Beatles? A casa mal-assombrada de Janelle Monáe.
– Não é todo dia que se descobre uma valsa inédita de Frédéric Chopin. Mas é o que pode ter acontecido com Robinson McClellan, curador do Morgan Library & Museum, em Nova York. Ao vasculhar uma coleção de memorabilia cultural, Robinson, que também é músico, deu de cara com uma partitura musical manuscrita que pareceu ser da autoria do compositor polonês, mestre da era Romântica. Embora haja espaço para se debater a autenticidade da descoberta, Morgan garante ter achado pistas que atestam ter em mãos um produto genuíno. Entre elas, o papel e a tinta utilizados para criar a partitura (consistentes com o que Chopin costumava usar), a caligrafia, a clave de Fá (desenhada no modo característico do compositor) e os rabiscos aleatórios. Ouça aqui a valsa.
– Os quadrinhos acabam de ganhar um novo formato … para agradar à geração TikTok. Um dos gigantes dos quadrinhos, a DC Comics fez uma parceria com a plataforma digital Global Comix para criar versões “rolantes” de suas revistas, especificamente para serem consumidas através de celulares. Através de um aplicativo, o leitor poderá fazer uma assinatura mensal de oito dólares para acessar mais de 400 títulos da DC e também de suas subsidiárias Vertigo e Wildstorm.
– Clarice Lispector, entrevistadora. É o lado pouco conhecido da celebrada escritora que se revela no novo livro Clarice Lispector Entrevista. São 83 conversas (das quais 35 inéditas em livro) da autora com personalidades como Zagallo, Negrão de Lima (na época, governador da Guanabara), Tom Jobim, Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, a primeira-dama Sarah Kubitschek e Tônia Carrero. Tudo foi publicado originalmente nas revistas Manchete e Fatos & Fotos.
– Com a parte musical e criativa e a genialidade não há como ajudar. Mas quem sonha em soar como o dos Beatles pode adquirir a mesa de som que John, Paul, George e Ringo usaram na gravação de Abbey Road. O console de 24 canais foi construído sob medida, em 1968, para os EMI Studios e, além de ter sido utilizado no álbum que mais tarde rebatizou o lugar, serviu para burilar a sonoridade dos primeiros projetos solo de Lennon, McCartney, Harrison e Starr. A venda da mesa de som – agora restaurada – está sendo organizada pelo site Reverb, especializado em instrumentos musicais e equipamentos de gravação. Agora é ver quanto vai custar essa preciosidade. Numa tentativa anterior de se leiloar o console, pediu-se 1.4 milhão de libras esterlinas por ele. Mas não houve interessados em adquirir a peça apenas por seu valor histórico. Agora, a mesa de som chega plenamente funcional, após sete anos de restauro, e promete a seu futuro comprador o título de dono do estúdio mais famoso do mundo.
– E já que ainda estamos em clima de Halloween, vale dar uma olhada no que andou aprontando Janelle Monáe. A cantora e atriz, que nunca economizou esforços para criar fantasias originais para o período, montou sua própria atração para a temporada, o Monáe Mannor, em Los Angeles, uma casa mal-assombrada com curadoria da artista. E vale revisitar as fantasias que Janelle, sempre criativa, apresentou em anos anteriores.
PLAYLIST FAROL 102
Elephant9 + Terje Rypdal. O hip-hop progressivo de Tyler, The Creator. A nova de Sade Adu. Soccer Mommy apaixonada. Queen remixado. Anthony Moore + Ian McCulloch. O liquidificador de Improvement Movement. Arthur Moreira Lima abraçava os clássicos e a música brasileira. King Crimson “elemental". E o adeus a Phil Lesh. do Grateful Dead.
Elephant9, Terje Rypdal – “John Tinnick”– Gravados ao vivo em Oslo, em 2017, o trio e o guitarrista convidado, todos noruegueses, abrem os trabalhos da playlist em velocidade de cruzeiro, reproduzindo uma sonoridade de rock pesado quase progressivo, aparentado com o do Deep Purple, safra Machine Head.
Tyler, The Creator – “Noid”– E o hip-hop também pode ser progressivo, como demonstrado no novo single do álbum Chromakopia, com rajadas de guitarras e teclados ricocheteando no refrão sampleado de uma gravação do Ngozi Family, de Zâmbia, com um interlúdio cantando por Bonita Smith, a mãe de Tyler.
Sade Adu – “Young Lion”– A primeira gravação da eterna musa desde 2018 é uma faixa em homenagem a seu filho, Izaak, feita para a compilação Transa, que a ONG Red Hot preparou como elemento artístico de conscientização sobre a identidade trans.
Soccer Mommy – “Abigail”– O novo single do projeto de indie pop de Sophie Allison faz parte do recém-lançado álbum Evergreen e é uma canção de amor para uma personagem do jogo eletrônico de RPG Stardew Valley.
Queen – “Keep Yourself Alive” – O álbum de estreia do Queen sempre padeceu de uma sonoridade um tanto opaca, especialmente se comparado a discos espetaculares do grupo, como A Night at the Opera. Agora, ganhou nova remixagem e chega cintilante (acompanhado de material extra de fazer salivar), pronto para ser redescoberto em todo seu esplendor.
Anthony Moore – “Me and Neil Diamond” – Ex-letrista do Pink Floyd pós-Roger Waters e parte do Slapp Happy, grupo de pop experimental, o britânico Anthony escalou Ian McCulloch, do Echo & The Bunnymen, para uma das faixas de sua coletânea de demos gravadas entre 1978 e 1984, Home of the Demo.
Improvement Movement – “Too Far”– Jogue no liquidificador um pouco de Yes, duas doses de Steely Dan e uma pitada de Doobie Brothers. Misture tudo. O resultado é o som deste grupo de Atlanta, nos Estados Unidos, um amálgama que combina “de um tudo” do pop-rock dos anos 1970.
Arthur Moreira Lima – “Odeon”– Um dos predicados do grande pianista carioca, um dos maiores nomes do instrumento, morto dias atrás, aos 84 anos, foi abraçar a música brasileira junto com os clássicos de Brahms e Chopin e levar a combinação país afora. Premiado na Europa nos anos 1960 e 1970, com a possibilidade de ser solista em grandes orquestras, preferiu rodar o Brasil com um piano montado sobre um caminhão e se apresentar em praças. No decorrer da carreira, sempre manteve o interesse pela combinação do erudito com o popular, tendo gravado Villa-Lobos, mas também Dorival Caymmi, e compartilhado discos com Nelson Gonçalves e Ney Matogrosso. Aqui, passeia numa das composições-assinatura de Ernesto Nazareth, mestre do choro.
King Crimson – “Red-2024 Elemental Mix”– A edição comemorativa de 50 anos do álbum no qual brilhou a trinca Robert Fripp/John Wetton/Bill Brufford traz um verdadeiro tesouro de preciosidades. Dentre elas, versões “elementais” das faixas, onde cada instrumento adquire um destaque diferente do disco original, o que mostra novos contornos e detalhes. Atenção para as palhetadas de Wetton no baixo, uma das poderosas armas secretas da faixa.
Grateful Dead – “Dark Star” – O rock perdeu na semana passada Phill Lesh, baixista e compositor que estimulou o Grateful Dead a alçar voos ousados, experimentais, com jams e improvisos longos em que seu instrumento se entrelaçava com as guitarras de Bob Weir e Jerry Garcia. Como neste registro de 1969, feito no Fillmore West, em São Francisco. Phil morreu aos 84 anos.