"O Mágico de Oz", quase noventão, transformado para a sala de exibição mais futurista do século 21
Inteligência Artificial e muita engenhosidade restauraram e expandiram (literalmente) um clássico adorado do cinema. Mas fica a dúvida: deve-se mexer assim com marcos da nossa história cultural?
“Não estamos mais em Kansas”, exclamaria Dorothy para seu cãozinho Toto se assistisse a uma projeção na Esfera de Las Vegas da nova versão de O Mágico de Oz , que estreará ali na última semana de agosto.
O clássico de 1939 reaparecerá para uma plateia diária de quase 18 mil pessoas não apenas restaurado e tinindo como se fosse novo, em imagens de super resolução aperfeiçoada, 16K, nos quase 15 mil metros quadrados de tela da Esfera, com altura correspondente a 20 andares. A nova cópia do filme ganhou cenas “expandidas”, de tamanho mais amplo – o original era em formato 4.3, de um retângulo– que não apenas acrescentam detalhes aos cenários mas também aos personagens, “revelando” partes do corpo, objetos e ângulos que não existiam no original, através do uso de ferramentas de Inteligência Artificial.
O trabalho – sob a produção de Jane Rosenthal, profissional experiente e sócia de Robert De Niro na Tribeca Enterprises, e também curadora de conteúdo da Esfera – resultou de uma parceria envolvendo a Warner Bros, o estúdio Magnopus e os departamentos Cloud e Deep Mind do Google, e se beneficiou do acesso a material de arquivo referente ao filme – roteiro, fotos de cena, ilustrações, diagramas de cenários e até um manual do sistema Technicolor, utilizado na filmagem de O Mágico de Oz e de E o Vento Levou, que detalhava inclusive o tipo de lentes empregadas na câmera – para ampliar o raio de ação dos personagens e sua própria visibilidade na gigantesca e envolvente tela da Esfera.
“Quase 90% do filme foi (retocado) com Inteligência Artificial”, revelou ao jornalão The Wall Street Journal Ravi Rajamani, diretor de engenharia de IA do Google Cloud.
Tais recursos permitiram, por exemplo, “revelar” as pernas de Judy Garland numa cena onde Dorothy foge do tornado que se aproxima de sua casa – quando antes o enquadramento só mostrava a atriz do alto da coxa para cima. Também fizeram com que o Tio Henry passasse a figurar numa cena onde, originalmente, não aparecia.


“Foi muito, muito, muito grandioso e muito, muito difícil” trabalhar nessa nova versão de O Mágico de Oz, confidenciou Steven Hickson, diretor de pesquisa de IA do Google DeepMind. “Em algumas cenas o nariz do Espantalho tem algo como (apenas) 10 pixels”, detalha, “o que representa um enorme desafio tecnológico”.
E as maravilhas prometidas para esta recriação incluem atrações ainda não reveladas – elementos sensoriais, como vento, calor, cheiros.
É um desdobramento considerável no perfil da Esfera. Apesar de inaugurado com um filme do cineasta Darren Aronofsky feito especialmente para aquele espaço – Postcard from Earth, audiovisual combinando linguagem de documentário e de filmes narrativos, que o diretor descreveu ao The Hollywood Reporter como sendo uma “jornada de ficção-científica que mergulha no nosso futuro, enquanto nossos descendentes refletem a respeito do lar que compartilhamos” –, inicialmente o novo espaço serviu como plataforma de expansão das possibilidades dos shows de música, ao oferecer um cenário de 360 graus para os artistas darem vida a imagens gigantescas que engolem a plateia (e os músicos no palco também, até certo ponto), via projeções de uma resolução inédita e com a potência cristalina de 164 mil caixas de som.
Agora, no entanto, a versão atualizada de O Mágico de Oz abre um outro caminho: assim como caixotes comemorativos atualizam a sonoridade de discos clássicos e dissecam sua feitura, a Esfera pode estar propondo para daqui por diante reedições de filmes clássicos com imagem e som turbinados e cenas adicionais, produzidas com recursos de IA.
Abre, também, uma Caixa de Pandora.
Não é a primeira vez que um clássico do cinema passa por uma “reforma”. George Lucas atualizou cenas de Guerra nas Estrelas para criar “Edições Especiais” do filme com o uso de tecnologias digitais de manipulação de imagens que não existiam quando rodou o original. Steven Spielberg modificou uma sequência de E.T.-O Extraterrestre para eliminar armas de fogo do filme. Mas o caso da adaptação de O Mágico de Oz para o ambiente state-of-the-art da Esfera de Las Vegas é totalmente outro: estamos falando de modificações feitas em um filme realizado 86 anos atrás, sem a participação de autores, diretor, produtores e atores envolvidos naquela produção de outro século. E o assunto esquenta ainda mais em meio às atuais discussões sobre os prós e contras do emprego de Inteligência Artificial para se criar “representações” de atores famosos, vivos ou mortos, sem sua ciência ou autorização. Seria um caso irrevogável de “nada será como antes”?
“Pegamos um filme que é adorado e o recriamos”, admite Thomas Kurian, CEO do Google Cloud, “de uma forma que (inicialmente) só seria possível se voltássemos no tempo para refazer o filme usando as câmeras usadas pela Esfera”.
Entretanto, por mais que as conquistas tecnológicas obtidas nessa empreitada possam empolgar os entusiastas da evolução das novas tecnologias, como reagirão os fãs do filme original a essa iteração tão radicalmente diferente? Como os historiadores do cinema receberão essa versão expandida de um filme considerado um dos melhores de todos os tempos da forma que ele é e sempre foi? Pode-se, deve-se mexer de maneira tão profunda num objeto cultural, como descreveu Kurian, tão adorado? Seria a IA, aqui, a mocinha da história – ou a Bruxa Má do Oeste?
“A arte de se contar histórias – que é a ideia de se transferir uma experiência de uma pessoa para outra – sempre foi impulsionada por avanços tecnológicos”, pondera Mark Grossman, CEO da Magnopus. “Uma nova tecnologia e uma nova ferramenta permitem que uma história seja contada de uma nova maneira. Tivemos a época das maquetes, das miniaturas, dos efeitos especiais, e agora entramos em uma nova era onde equipes de artistas trabalham com IA para dar a continuidade ao que fizeram os cineastas ao longo dos últimos 100 anos".
“A chave para tudo isso que estamos fazendo com IA era manter a integridade da intenção dos realizadores originais”, argumenta Jane Rosenthal no vídeo de apresentação do projeto. “(Esse filme) é parte de nossa história cultural, você não pode simplesmente pegá-lo e fazer o que bem entender com ele”.
A literatura perde Mario Vargas Llosa. Celulares ligados durante a sessão de cinema? Nigéria abre centro de história e cultura iorubá. Documentário perfila Quino, criador de Mafalda. Plataforma digital difunde diversidade da arte amazônica. Os bastidores da gravação do novo videoclipe caleidoscópico do OK Go.
– A literatura perdeu esta semana o peruano Mario Vargas Llosa, gigante das letras que escreveu livros como Conversas no Catedral, A Casa Verde, Pantaleão e as visitadoras e Tia Júlia e o escrevinhador, ganhador do Nobel de Literatura de 2010, autor de inúmeros ensaios, peças de teatro, poesias, e colaborador de jornais espanhóis, como o La Vanguardia e o El País. Mario também mergulhou na política, chegando a disputar a presidência do Peru (foi derrotado por Fujimori, em 1990) e a abraçar causas polêmicas (era contra a independência da Catalunha, o que não caiu bem em uma de suas cidades adotivas, Barcelona). Seu último romance, Dedico a você meu silêncio, saiu no Brasil ano passado. “Somos nós, latino-americanos, sonhadores por essência e temos dificuldades para separar a realidade da ficção. Talvez por isso tenhamos artistas tão extraordinários — músicos, poetas, pintores e escritores — e, ao mesmo tempo, líderes tão ruins e medíocres", resumiu Vargas Llosa, pouco antes de ser agraciado com o Prêmio Nobel. No diário carioca Correio da Manhã a jornalista Olga de Mello listou os cinco livros fundamentais para se compreender Mario, que morreu aos 89 anos.
– Os cinemas estão cansados de pedir ao público para desligar os celulares antes de começar a sessão. Só que agora os produtores de um determinado filme vão convidar todo mundo a fazer justamente o oposto, durante a projeção! Sai em junho o novo filme encabeçado pela boneca matadora M3GAN e a produtora Blumhouse preparou um “esquenta” inusitado: vai relançar o primeiro filme nos cinemas e para isso criou, com a ajuda da META, um aplicativo que permite que o público interaja com a protagonista malvadona enquanto o filme passa na tela, trocando mensagens com ela, e ganhando acesso a curiosidades sobre a produção.
– Lagos, a maior cidade da Nigéria, ganhou um centro de história e cultura iorubá que desafia “o modelo eurocêntrico” dos museus, cujo design utiliza areia e cascalho no piso para reproduzir o solo das aldeias, e que “celebra, em vez de objetificar” a cultura, conforme explica o arquiteto Seun Oduwole, responsável pelo projeto. “Queríamos criar um lugar cheio de vida, cor e som, muito diferente de um museu ocidental normal, onde tudo é meio que silencioso”, disse à CNN o Dr. Will Rea, acadêmico britânico nascido na Nigéria, especialista em arte africana e história iorubá, que atua como consultor de curadoria do museu. A língua iorubá é destacada nos textos expostos em todo o museu, com traduções em inglês apresentadas em tamanho menor. Faz parte da missão de se oferecer um museu iorubá “sem precisar pedir desculpas por isso”, conforme explicou Oduwole.
– Chama-se Quinografia o documentário sobre Joaquín Salvador Lavado Tejón, o Quino, criador da personagem Mafalda, que chega às telas argentinas e espanholas em junho. A produção foi filmada em seis países, emprega quatro idiomas diferentes e apresenta material inédito ou desconhecido de Quino, como esboços, desenhos antigos, cartas e fotografias do arquivo da família. Nem tudo girará em torno de sua criação mais famosa e perene, embora Mafalda, sucesso até na Ásia, esteja bastante presente no longa. “Queríamos nos aprofundar em toda a outra obra de Quino, livros maravilhosos como Mundo Quino, A mí no me grite, Potentes, prepotencias e impotentes e Gente en su sitio, que incluem muitas páginas requintadas e essenciais de humor silencioso”, disse ao diário argentino La Nación a roteirista Mariana Guzzante.
– Com um acervo inicial de 300 filmes, 30 mil músicas e 2.550 livros, acaba de ser lançada a plataforma digital SOMMOS AMAZÔNIA, criada para ajudar a difundir a diversidade da cultura da região amazônica e ampliar o acesso a conteúdos que costumam enfrentar barreiras de distribuição. “Embaixo das copas daquelas árvores existem 30 milhões de pessoas produzindo uma cultura pujante”, garante Alexandre Agra, sócio-fundador e CEO da iniciativa, que permite um mergulho em variantes musicais locais , como o jazz manauara, a guitarrada e o indie amazônico.
– O grupo OK Go, de Chicago, se popularizou tanto por seu pop inteligente quanto por seus videoclipes inventivos e ultra bem sacados, ancorados em coreografias sobre esteiras de ginástica, com guarda-chuvas coloridos ou mostrando os integrantes flutuando num ambiente de gravidade zero, a bordo de um avião em pleno voo. Para o caleidoscópico video de “Love”, o primeiro single de seu quinto álbum, And The Adjacent Possible, o primeiro em 10 anos, o grupo acampou num enorme salão em Budapeste, visitado, com exclusividade, por um dos editores da revista americana Fast Company, que mostra, com exclusividade, os bastidores da complexa filmagem do clipe (assista ao resultado final abaixo).
PLAYLIST FAROL 116
A toada solar de Judit Neddermann. Salif Keita espartano. O groove sombrio de Emma-Jean Thackray. A volta do art-pop do Stereolab. Peter Doherty country & western. The New Pornographers homenageia o derradeiro telefone público. Luke Top investiga a passagem do tempo. Galactic + Irma Thomas. Smut contra a objetificação da mulher. E é aberto o baú de Nick Drake
Judit Neddermann – “la alegria de vivir”– Para abrir a playlist, uma toada leve e solar, construída pela colaboração da cantora catalã com o violonista Pau Figueres, seu conterrâneo, parte do álbum que acabam de lançar, batizado simplesmente com os nomes dos dois.
Salif Keita – “Tassi”– O que era uma faixa pop e dançante em seu disco de 2012, Talé, vira uma meditação de voz e violão na regravação trazida em So Kono, o novo e espartano álbum do veterano e venerado músico de Mali, hoje com 75 anos.
Emma-Jean Thackray – “Maybe Nowhere” – Baixo distorcido e um groove de certa forma sombrio conduzem a faixa do novo álbum da cantora, instrumentista e produtora britânica de jazz-funk, Weirdo, tingido pela luto causado pela morte de seu parceiro, Matthew Gordon, compositor de música eletrônica.
Stereolab –“Aerial Troubles”– Demorou 15 anos até o grupo europeu de art-pop finalizar um novo álbum. Instant Holograms on Metal Film sai no final de maio, reafirmando a sonoridade clássica do grupo.
Peter Doherty – “Felt Better Alive”– O frontman dos Libertines acaba de lançar mais algumas faixas solo, uma delas com pinta de country & western.
The New Pornographers– “Ballad of the Last Payphone”– O novo single do sexteto indie nova-iorquino homenageia o último telefone público de sua cidade, hoje em exposição num museu.
Luke Top – “Sic Transit”– A nova do cantor-compositor californiano investiga a passagem do tempo e a eternidade da música com uma produção com ecos dos anos 1980.
Galactic – “Lady Liberty”– Parceria de altíssimo quilate entre o sexteto e a Primeira Dama de Nova Orleans, Irma Thomas, de 84 anos bem vividos, a primeira a gravar “Time Is On My Side”, sucesso futuro dos Rolling Stones. O single vem do excelente álbum Audience With The Queen, que mistura balanço, soul e visão social.
Smut – “Syd Sweeney”– A primeira amostra do novo álbum do quinteto de Chicago, Tomorrow Comes Crashing, sai quebrando tudo, utilizando como ponto de partida uma referência à atriz americana – sucesso na série Euphoria – para falar da objetificação da mulher na arte.
Nick Drake – “Strange Face”– A feitura de Five Leaves Left, o álbum de estreia do venerado bardo britânico, é dissecada num novo caixote de quatro discos, repleto de rascunhos inéditos, registrados no estúdio Sound Techniques.