O Brasil fica sem o Tremendão
O pop perdeu um pioneiro que ajudou a inventar o rock em "brasileiro", ajudou a criar clássicos perenes, soube observar e comentar seu tempo – e celebrou o amor
Os últimos 60 anos não teriam sido os mesmos sem Erasmo Carlos.
A música que criou – em parceria com Roberto Carlos ou individualmente – faz parte da trilha-sonora e do tecido cultural das vidas de milhões.
O tijucano, fã de Elvis Presley e da música negra que vinha dos Estados Unidos, uniu-se ao capixaba Roberto (apresentado a ele por um certo Tião Maia, depois conhecido como Tim), que estava em busca de alguém capaz de traduzir para o português “Hound Dog”, sucesso do Rei original.
A partir daquele encontro, os dois Carlos enxergaram uma afinidade e, juntos, ajudaram a inventar a então chamada “música jovem”, tornando-se as figuras de proa da Jovem Guarda, o grupo que traduziu para o “brasileiro" o pop e o rock trazidos da Europa e dos Estados Unidos nos meados da década de 1960. Nascia ali o iê-iê-iê, rapidamente popularizado através de programas semanais de TV e de filmes para o cinema, conquistando a garotada e mesmo adultos.
Erasmo – já conhecido pelo Brasil simplesmente pelo nome, não era mais preciso sobrenome – virou, assim, um outro personagem: o alto, imponente Tremendão, todo costeletas, couro e anéis.
Apesar de inicialmente dirigido a um público juvenil, o repertório da dupla Roberto/Erasmo inclui clássicos eternos, gravados por um ou pelo outro – ou por uma diversidade de intérpretes – que hoje são praticamente parte de nosso DNA, indo de rocks considerados pesados para a época – “Quero Que Vá Tudo Para o Inferno” – a hits românticos que viraram standards, clássicos – “Detalhes”, “Sua Estupidez”, “Sentado À Beira do Caminho".
A criatividade e a assinatura artística das composições da dupla – assim como sua qualidade e sua consistência – criaram uma marca forte e de enorme sucesso. Mesmo quando gravada por outro artista que não eles, ficava claro que era uma música de Roberto e Erasmo.
Solo, na medida em que amadurecia como homem e artista, Erasmo mostrou uma versatilidade ainda maior, mantendo o pé firmemente fincado no rock (“Filho Único”) mas espalhando-se por soul music e samba-rock (“Grilos”, “De Noite Na Cama”), observador do seu tempo e do seu entorno (“Coqueiro Verde”, “Maria Joana”). E sem nunca trair seu faro infalível para o pop (“Close”, “Superstar”).
Não tinha a mesma voz de Roberto, nem o apelo do parceiro junto ao público feminino, mas construiu uma carreira sólida e respeitada por seus pares, contemporâneos e pelas gerações que o sucederam, em parte também por sua personalidade – um gentil gigante com muito senso de humor e dono de um coração enorme, que não cansava de celebrar o amor.
Sempre aberto a colaborações, Erasmo duetou com uma farta variedade de artistas e em diferentes estilos, indo de Marisa Monte, Rita Lee e Nara Leão a Renato Russo, Zeca Pagodinho, Lulu Santos e A Cor do Som.
Em 2013, a alma rock inspirou um álbum de final de carreira excepcional, Rock ’n' Roll, onde, já setentão, cercou-se de músicos mais jovens (como João Barone, na bateria, e Dadi, no baixo) e, produzido pelo craque Liminha e por Léo Esteves, filho de Erasmo, lembrou ao mundo (e talvez a si mesmo) sua paixão original.
Colaborações com novas gerações continuaram a acontecer: ele gravou com Emicida (“Termos e Condições”) e Marcelo Camelo (“Sol da Barra”).
E, ao contrário de tanto de seus pares – especialmente, Roberto – Erasmo ganhou cinebio própria, com Chay Suede o representando em Minha Fama de Mau, de 2019.
Ele lançou este ano uma espécie de volta ao começo, O Futuro Pertence À … Jovem Guarda, álbum recheado de regravações de músicas icônicas daquele período. O disco – produzido com extremo bom gosto e elegância pelo pernambucano Pupillo, ex-baterista do Nação Zumbi – acabou rendendo a Erasmo um Grammy Latino , na categoria Melhor Álbum de Rock ou de Música Alternativa em Língua Portuguesa, dado meros dias atrás.
Erasmo fechou, assim, todo um ciclo artístico e pessoal com um disco de sonoridade século 21, que acabou funcionando como uma conclusão lógica de sua carreira, onde suas composições e os temas que inspirou lá atrás, seis décadas antes, abrem as portas para um novo público conhecer e entender melhor como tudo começou.