O almoço com Slash que gerou uma crise diplomática entre EUA, Inglaterra e Brasil
Era para ser uma entrevista para a revista Bizz. Virou (também) matéria para a revista inglesa Vox. A gravadora não gostou. E a coisa ferveu.
O rock é capaz de provocar crises internacionais. E o caso que envolveu Guns N’ Roses, Brasil e Reino Unido, no início da década de 1990, é prova disso. Eu que o diga: fui o pivô da crise.
Novembro de 1990 era um período de imensa expectativa: um dos maiores nomes do rock de todo o mundo e a maior atração do Rock in Rio do ano seguinte, o Guns N’ Roses estava para aterrisar no Brasil antes de lançar seu terceiro álbum, ainda sem título, mas que logo se revelaria ser o primeiro volume da dobradinha Use Your Illusion, do qual sairiam alguns dos maiores sucessos da banda: o cover de “Live and Let Die” e as baladonas “November Rain” e “Don't Cry”. Seriam o primeiro disco e os primeiros shows com Matt Sorum, rapinado do The Cult para substituir Steve Adler na bateria.
Ou seja, não só o Brasil estava ligado no que se passava com a banda naquele momento, por conta do festival, mas todo o planeta suplicava por migalhas de informação que fossem sobre o álbum que o grupo vinha gravando há tanto tempo, cercado do maior segredo.
Nessa hora surgiu a oportunidade de fazer uma entrevista exclusiva com Slash para a revista Bizz.
A representante da Geffen Records marcou um almoço com o guitarrista no Hamburger Hamlet de West Hollywood, uma lanchonete chique muito usada por artistas de música e de cinema – e estrategicamente localizada do outro lado da rua do escritório da gravadora.
No decorrer da hora de entrevista, Slash – entre tragos de Marlboro (ainda se podia fumar em restaurantes), goles de Jack Daniel’s duplo com Coca-Cola e garfadas protocolares numa Caesars’ Salad – evitou dar detalhes do novo disco – “pode ser um álbum duplo” (e foi) "ou triplo, na hora você verá" (acabaram saindo dois álbuns duplos num mesmo ano) –, mas foi generoso ao falar do estágio atual da banda e da troca da guarda na bateria. E revelou, de todo modo, o suficiente para saciar a curiosidade de fãs e jornalistas sobre o disco que estava por vir.
Preparada e enviada a matéria para a Bizz, nasceu uma ideia de jerico: por que não tentar vender essa matéria também para uma outra publicação, de algum outro país? Decerto alguém mais se interessaria. O assunto era quentérrimo.
Naquele mesmo mês de novembro havia saído a primeira edição de uma nova publicação mensal inglesa de música, a revista Vox, formato grandão, quatro cores, publicada pela mesma editora do semanal – e seminal – New Musical Express, ou NME. Pretendia competir com a Q, publicada pela editora rival EMAP, que vinha brilhando sozinha no segmento desde 1986. Valia, no mínimo, uma investida.
E deu certo a tentativa. A Vox topou! Foi aí que começou a crise.
A regra é clara: um representante de uma publicação ou de um país – que era o caso – recebe acesso a um determinado artista, com exclusividade (ou mesmo não), mas com a anuência tácita de que só escreverá aquela matéria para a publicação e para o país que representa oficialmente. Muitas vezes, o jornalista precisa segurar a matéria até o fim de um “embargo” temporário imposto pelo estúdio ou pela gravadora. Dessa forma, a divulgação e o marketing mantêm o controle sobre o que sai publicado, onde e quando.
Isso acontece até hoje. E faz sentido: em cada país (e estamos falando de artistas, filmes e discos de alcance internacional) existem prioridades especificas e relacionamentos profissionais cuidadosamente costurados, que devem ser respeitados. Não levei isso em conta. Ao contatar a Vox e vender uma entrevista exclusiva com Slash, enchi os olhos da revista e alimentei minha ambição profissional – mas desrespeitei um acordo entre damas e cavalheiros e frustrei os planos da gravadora do Guns N’ Roses.
Dito e feito: não demorou muito até a representante da Geffen Records me ligar, tonta, mas diplomática, assim que foi contatada pelos ingleses em busca de fotos para ilustrar a matéria com Slash. Ela propunha que eu cancelasse tudo com a Vox, em troca de uma exclusiva com Axl Rose – uma tentativa fútil e vazia, tanto ela quanto eu sabíamos que isso nunca aconteceria. Não explicou, mas decerto tinha feito alguma combinação com outra revista inglesa para dar a ela a primeira exclusiva com o GN'R para quando o novo disco estivesse para sair. E a inesperada matéria na Vox desmontava essa estratégia.
Mas não havia como voltar atrás, a essa altura – e a matéria saiu. Na Bizz e na Vox (onde publicaram meu nome errado, um pequeno castigo – merecido, pela “traquinagem" – dos deuses do jornalismo) e mereceu apenas uma chamada de capa. A atração principal acabou sendo Harriett Wheeler, vocalista da banda Sundays, de Bristol, na Inglaterra, sucesso retumbante na época com o single "Here's Where The Story Ends".
Passado o calor do momento, o episódio não teve maiores desdobramentos: a vida da Geffen e do Guns N’ Roses seguiu em frente, sem grandes prejuízos por causa do que aconteceu. Meu relacionamento com a Vox acabou ali mesmo, e a própria revista deixou de existir alguns anos depois, quando sua editora preferiu investir em outro título – que, aliás, completa este mês 30 anos de existência: a revista Mojo.
E ensinou lições: se fosse eu o prejudicado, teria ficado uma fera.
José Emilio Rondeau
Obras do Museu Internacional de Arte Naïf voltam ao Cosme Velho. Pocket shows para rádio americana testam a autenticidade dos artistas pop. Revista homenageia Angeli. Joan Baez e Paul Simon ganham documentários. E os contadores de histórias de Marrakech correm risco de extinção.
– Parte do acervo do Museu Internacional de Arte Naïf – criado pelo joalheiro francês Lucien Finkelstein, em 1995, e fechado em 2017, por falta de recursos – voltou, ainda que temporariamente, para o mesmo bairro carioca onde esteve exposto durante 40 anos. A Galeria Z42 reúne numa exposição montada no Cosme Velho – na Zona Sul do Rio de Janeiro – 120 telas de artistas de 38 países (como África do Sul, Bangladesh, Tanzânia, Portugal e Índia) que fazem parte da coleção do MIAN. A mostra está aberta ao público, até 11 de novembro, num prédio que já foi sede da embaixada da Jordânia e residência do embaixador Japão. E há planos para a exibição de um outro segmento da coleção no Mato Grosso do Sul, no primeiro semestre de 2024.
– Há 15 anos no ar, o programa Tiny Desk Concerts, veiculado nos Estados Unidos pela rede pública nacional de rádio, tornou-se uma espécie de herdeiro da série Unplugged, da MTV, ao mesmo tempo que virou prova inconteste de talento musical e carisma para as grandes estrelas do pop. A partir de uma fórmula simples – pocket shows “crus", desprovidos de adereços, grandes recursos visuais e com todo o som a cargo dos funcionários da rádio, realizados num ambiente que lembra uma biblioteca despojada – , o programa vem atraindo grandes nomes do pop para apresentações onde demonstram seu real valor. Por ali passaram desde Harry Styles e Tom Jones a Taylor Swift e Adele, a artistas não necessariamente ligados ao pop, como o violoncelista Yo Yo Ma e a Australian Chamber Orchestra. Por seus contornos, o programa – com episódios também filmados e disponibilizados no YouTube – acabou funcionando como um “batismo de autenticidade", conforme descreveu o The New York Times.
– Angeli, o quadrinista e cartunista que deu vida a personagens icônicos, como Bob Cuspe, os Skrotinhos e Rê Bordosa, se aposentou no ano passado, afetado por uma doença generativa. Agora, seu meio século de atividade preenche a nova edição da revista Expressa, criada para homenagear os cartunistas e quadrinistas brasileiros. A revista promete, “além de uma ampla antologia da sua obra – dos primeiros trabalhos publicados nos anos 1970 até sua aposentadoria, em 2021 – uma montagem inédita de entrevistas e depoimentos do autor, contando em primeira pessoa a sua trajetória. Uma história que passa pelo cartum político dos anos 1970, pela invenção dos quadrinhos comportamentais modernos no Brasil, pela criação da revista Chiclete com Banana e pela reinvenção da charge política no final dos anos 1990".
– Dois novos documentários enfocam gigantes da música americana. As seis décadas de carreira de Paul Simon são o assunto das quatro horas de In Restless Dreams, que estreou no Festival de Cinema de Toronto, na semana passada. Conhecido por trabalhos dedicados a assuntos controversos – como a Cientologia –, o diretor Alex Gibney montou um retrato denso e rico do artista, utilizando entrevistas antigas com colaboradores como Art Garfunkel, com quem Paul fez dupla durante anos, e filmagens atuais, da feitura de seu elogiado álbum Seven Psalms. Enquanto isso, I Am A Noise estreia mês que vem nos Estados Unidos e traça a trajetória da cantora, violonista, compositora e ativista Joan Baez desde os anos 1950 até hoje, mostrando seu envolvimento com a música folk – que a levou a conhecer Bob Dylan, com quem teve um breve mas significativo relacionamento – e com os movimentos sociais de seu país e do mundo.
– O recente terremoto em Marrakech – o maior em toda a história de Marrocos – causou tragédias humanas e físicas imensas. E trouxe à tona questões culturais, também. Os danos provocados pelo sismo no centro histórico de Marrakech – considerado patrimônio da humanidade pela UNESCO – afetam também uma tradição de séculos, envolvendo História e língua: a dos contadores de histórias que operam naquela região. O turismo excessivo já vinha ajudando a reduzir o número de contadores. Hoje, são apenas sete oficialmente reconhecidos, e o número tende a diminuir rapidamente, uma vez que eles já rondam a casa dos 80 anos de idade, não há sucessores dispostos – e os visitantes à cidade estão mais interessados em compras ou atrações pitorescas, que não necessitem conhecer a língua local. Atualmente, por causa dos danos causados pelo terremoto, o local do centro histórico da cidade onde costumam trabalhar, a praça Jemaa el-Fnaa, tornou-se um acampamento para centenas de famílias desabrigadas. "O risco desse patrimônio imaterial desaparecer é real”, diz Hanae Jerjou, curadora do recém-inaugurado Museu de Patrimônio Cultural Imaterial de Marrakech, "especialmente por ser uma tradição passada dos pais para os filhos, que começam bem cedo a ouvir aquelas histórias na praça". No entanto, nem tudo está perdido. Escolas destinadas a ensinar a novas gerações a arte da contação de histórias – ou hikayat, como é chamada – vêm surgindo e o Festival Internacional de Contação de Histórias de Marrakech, evento anual, mantém aceso o interesse pelo assunto.
PLAYLIST FAROL 52
O inebriante Rei de Anjimile. Sylvester quando regravou Billie Holiday. Romy + Beverly Glenn-Copeland. O neo-soul sensual de Bobby Bazini. Jalen Ngonda parece recém-chegado da década de 1970. The Gaslight Anthem + Bruce Springsteen. Bob Dylan no Budokan. Alguns dos tijolos da Life House do The Who. O prog pop de Trevor Rabin . E Jimmy Buffett + Paul McCartney.
Anjimile – “The King“ – Imagens trazidas do Velho Testamento, vocais etéreos e arranjos inspirados em Philip Glass formam a base da inebriante faixa-título do novo álbum do artista americano de avant-folk.
Sylvester – “God Bless The Child”– Outro artista conhecido por um único nome, Sylvester foi uma das super estrelas da era disco, interpretando com seu inconfundível falsete hits das pistas de dança, como "You Make Me Feel (Mighty Real)” e “Do You Wanna Funk". Aqui está uma das faixas gravadas, de maneira informal, numa sala, em 1970 – portanto, bem antes do sucesso – por Sylvester acompanhado apenas por Peter Mintun, no piano, aprendendo essas canções ou mesmo apenas brincando com elas, para possível inclusão nas apresentações que os dois faziam como integrantes dos Cockettes, grupo de performances artísticas que acabaria inspirando no Brasil os Dzi Croquettes. Do encontro musical saiu esta versão divina de um dos clássicos de Billie Holiday.
Romy – “Mid Air”– Na breve mas potente faixa-título de seu primeiro álbum-solo, a vocalista do xx convidou o vozeirão do legendário cantor-compositor Beverly Glenn-Copeland, promovendo um interessante encontro entre vozes sintetizadas e orgânicas.
Bobby Bazini – “Pearl” – Cantor-compositor franco-canadense, Bazini se aproxima muito de artistas como Michael Kiwanuka e Paolo Nutini, com sua voz rouca e seu neo-soul sensual.
Jalen Ngonda – “Give Me Another Day”– Americano baseado em Londres, em seu álbum de estreia, Come Around and Love Me, Jalen faz um soul e um R&B que parecem pertencer a outro tempo – mais precisamente, a década de 1970.
The Gaslight Anthem – “History Books” – As comparações com o conterrâneo Bruce Springsteen são uma constante na carreira do quarteto de Nova Jersey. Sonoramente, em termos de estilo e de temática. Nada mais natural, portanto, do que convidar o próprio Bruce para duetar na faixa-título do sexto álbum do grupo.
Bob Dylan – “The Man in Me”– Quarenta e cinco anos depois dos primeiros shows que Dylan fez no Japão, será editado em novembro um álbum com a íntegra das duas apresentações dele no Nippon Budokan Hall, em Tóquio – o mesmo palco onde, cerca de uma década antes, os Beatles também tocaram.
The Who – “Love Ain’t For Keeping”– Lançado em 1971, o álbum (e obra-prima) Who’s Next saiu no lugar de um projeto ambicioso que Pete Townshend vinha preparando para a era pós-Tommy do grupo. Life House era para ser um filme, virou uma ópera-rock de ficção-científica sobre um planeta de meio-ambiente combalido e dominado por tiranos – que viria a ser salvo pelo rock and roll. Mas nunca foi concluído e apenas algumas canções sobreviveram da tentativa, como "Pure and Easy”– editada no primeiro álbum-solo de Pete – , "Baba O’Riley”, "Won't Get Fooled Again” e "Behind Blue Eyes”, incluídas em Who's Next. Ao longo das décadas, Townshend tentou resgatar o projeto. Mas nunca conseguiu levá-lo a cabo. Agora, um mega-caixote tenta reconstruir o projeto, mesmo que aos pedaços São 10 CD’s (com mixagem em Dolby Atmos 5.1) contendo 155 faixas, das quais 89 inéditas, mais uma graphic novel que dá uma ideia do que poderia ter sido o filme. Uma das preciosidades do disco é esta mixagem alternativa de "Going Mobile".
Trevor Rabin – “Big Mistakes" – Influente na fase mais pop do Yes (é dele "Owner of a Lonely Heart”), o cantor, compositor e guitarrista sul-africano mantém o coração no rock progressivo, mas antenado no século 21, em seu novo álbum-solo, Rio (título tirado do nome da filha do artista).
Jimmy Buffett – “My Gummie Just Kicked In”– Eternizado pelo hit “Margaritaville", Jimmy construiu sua carreira em cima de uma imagem de doidão, praieiro e desligado, quando, na verdade, sempre foi um músico dedicado, disciplinado, e um empreendedor astuto, dono de cassinos, organizador de viagens por cruzeiro, investidor em jogos eletrônicos e em comunidades para idosos. Apesar de debilitado pelo câncer que tirou sua vida, dias atrás, Buffett deixou pronto um álbum de inéditas, Equal Strain On All Parts, que sai em novembro. Nele, um velho companheiro participa, tocando contrabaixo num rock levinho sobre o barato de se curtir um barato: Paul McCartney.