Martin Scorsese dá ao mundo sua coleção com décadas de gravações em fitas VHS
A partir de 1980, o diretor registrou o que considerava importante daquilo que passava na TV. Criou um acervo sem igual do audiovisual de diferentes épocas. Agora, doou tudo a uma universidade
São mais de 50 caixotes recheados com milhares de fitas VHS, onde estão gravadas mais de 4.400 obras – de longas a documentários, de programas de TV a curtas. Esta é a Martin Scorsese VHS Collection, um verdadeiro tesouro audiovisual que resultou de registros feitos entre a década de 1980 e os anos 2000. Agora, esse material faz parte do acervo da Universidade do Colorado em Boulder, nos Estados Unidos, e está aberto à consulta pública.
O diretor americano doou esse rico acervo para fazer parte das Coleções Raras e Peculiares da universidade. São fitas que ele acumulou ao longo de décadas para guardar programação da TV aberta que era exibida uma única vez e que, por um motivo ou outro, ele pretendia preservar. São clássicos do cinema americano, game shows, filmes de diferentes países, espetáculos musicais e até programas de auditório (num deles, a mãe de Martin, Catherine, é uma das convidadas dos apresentadores). E na leva vieram também comerciais, chamadas e vinhetas que hoje são raridades.
A coleta de toda essa riqueza audiovisual era feita seguindo um processo meticuloso e bem organizado. Toda semana, Scorsese vasculhava as páginas da edição mais recente do TV Guia e assinalava o que gostaria de gravar. A revista, então, era entregue a um assistente encarregado de programar uma série de gravadores de vídeo plugados em seus respectivos monitores. Assim, o assistente conseguiria capturar tudo que havia sido selecionado por Martin.
O material – farto e variado – era compilado e catalogado como fonte de informação e inspiração para Scorsese e como ferramenta para ele orientar seus atores e sua equipe técnica na hora de rodar um filme: uma cena, um enquadramento, uma iluminação.
“Faço isso na maioria dos meus filmes”, Scorsese disse numa entrevista, ano passado, para a plataforma Air Mail. “Para os atores, ajuda quando quero exemplificar uma inflexão, um clima, um determinado estado emocional, uma sugestão do mundo que estamos querendo criar. No caso da equipe, geralmente é para mostrar um corte na edição, um movimento de câmera num ponto específico da história. Não é para copiar, é mais uma sugestão de maneiras como poderíamos contar aquela história”.
O jornal The Guardian lembrou, recentemente, que o relacionamento de Scorsese com a TV, como espectador, vem desde a infância dele. Franzino e asmático, não costumava brincar muito na rua, por uma questão de segurança. Em vez disso, passava horas grudado no aparelho de TV, onde conheceu o trabalho de realizadores que tanto o inspirariam – como Roberto Rossellini, por exemplo. Pela TV, também, aprendeu a fazer cinema. Na década de 1950, havia um programa, Million Dollar Movie, que exibia um mesmo filme duas vezes por dia, durante a semana, e três vezes por dia, na sexta, no sábado e no domingo. Dessa forma, ele podia estudar cuidadosamente a feitura de um filme, ao vê-lo repetidas vezes.
Mas por que doar todo esse material para uma universidade no Colorado, quando as raízes e as principais referências de Scorsese são em Nova York? E, afinal, já não existe o Martin Scorsese Institute of Global Cinematic Arts, parte da New York University, um misto de centro de produção e departamento de estudos de cinema? Para Erin Espelie, professora de cinema na Universidade do Colorado, “em parte foi uma questão de sorte”, explicou numa entrevista à plataforma Axios. “Estávamos no lugar certo, na hora certa”. O diferencial, para ela, que pesou a seu favor, seria o espírito experimental da instituição de Boulder, “assim como nosso interesse em conjugar trabalho de arquivo e ensino”.
“Nossa esperança”, Erin conclui, “é que alunos, estudiosos e membros da nossa comunidade visitarão o arquivo para aprender como Scorsese se apoiava no trabalho de outros para fazer seus filmes; para descobrir que ele era um telespectador voraz; para saber quais filmes e programas ele assistia – e, muitas vezes, compartilhava com seus atores e sua equipe – ; e, de um ponto de vista mais documentarista, o que estava passando na TV naquele período”.
Uma das prioridades, agora, é digitalizar todo esse material. A vida útil de fitas VHS é, em média, de 10 anos. E algumas das fitas do acervo Scorsese são quatro vezes mais velhas que isso. Uma vez danificadas a ponto de não mais poderem ser vistas ou copiadas, as fitas estarão perdidas para sempre. E, junto com elas, desaparecerá um pedaço enorme da história do audiovisual, balizado conforme a preciosa curadoria do mestre Martin Scorsese.
Ziraldo
Um gênio do traço
Com a morte de Ziraldo Alves Pinto, na semana passada, aos 91 anos, o Brasil perdeu seu maior artista gráfico (e um dos maiores do mundo), um gênio de traço elegante mas pop, imediatamente reconhecível, que jogou nas 11 e brilhou em todas: cartunista, quadrinista, cartazista, jornalista, caricaturista, gibizeiro, dramaturgo, criador de clássicos da literatura infantojuvenil.
Saíram da imaginação e da pena de Ziraldo marcos eternos para crianças e jovens de todas as idades – a Turma do Pererê, o Menino Maluquinho, a indefinível cor Flicts – , cartazes para uma fase prolífica do cinema brasileiro, para o Festival Internacional da Canção, para os shows de Jô Soares e para a Feira da Providência; incontáveis charges políticas; personagens como a Supermãe e Jeremias, o Bom; e parte da inventividade e do humor ferino d'O Pasquim, semanário cultural que peitou o regime militar em seu período mais duro e, apesar disso (ou por isso), conquistou centenas de milhares de leitores.
Ao todo, Ziraldo publicou mais de 160 livros, dos quais foram vendidos mais de 14 milhões de exemplares. O Menino Maluquinho ganhou 129 edições.
“Morte e Vida Severina”, em quadrinhos. O birinaite dos famosos. As ‘conversas’ entre Laurie Anderson e Lou Reed. Grupos brasileiros contra a Inteligência Artificial. E Coachella em versão Fortnite.
– A obra do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto acaba de receber o "tratamento quadrinhos". O ilustrador gaúcho Odyr Bernardi transpôs os versos do clássico poema “Morte e Vida Severina”, de 1955, para uma série de ilustrações, ignorando, no processo, as diversas adaptações feitas anteriormente, no cinema, na TV e no teatro. O livro de Odyr não é a primeira vez que o mesmo poema é adaptado para quadrinhos. Houve uma versão feita em 2010, com desenhos de Miguel Falcão, que utilizou figuras conhecidas da política e da literatura como modelo para personagens da história. Odyr, no entanto, optou por uma pintura realista e elegante, o que resultou num trabalho mais próximo do original.
– Dr. Dre e Snoop Dogg são os mais recentes artistas americanos a lançar sua própria marca de bebida alcoólica, o coquetel enlatado Gin & Juice. O drink leva o mesmo título de uma colaboração musical dos dois artistas, de 1994. Outros investidores no ramo do “birinaite dos famosos” incluem Matthew McConaughey (que criou, junto com a esposa, Camila Alves, a tequila Pantalones) e os atores Bryan Cranston e Aaron Paul (parceiros na série Breaking Bad e na marca de mezcal Dos Hombres). Formam, assim, uma confraria que em 2022 já somava 350 marcas de bebidas alcóolicas ligadas a algum nome famoso, disputando um mercado global que vale quase 600 bilhões de dólares.
– Laurie Anderson continua “conversando” e “trabalhando" com o marido, Lou Reed. Apesar dele ter morrido em 2013. Utilizando ferramentas de Inteligência Artificial, a artista multidisciplinar vem travando “diálogos" com o ex-Velvet Underground. Parte desse material está na exposição I’ll Be Your Mirror (não por acaso, titulo de uma das músicas do VU), montada originalmente em Estocolmo e agora em cartaz em Adelaide, na Austrália, onde o público pode ouvir esse novo material musical e “falar" com versões IA tanto de Laurie quanto de Lou. Foi na Austrália, aliás, onde Anderson colaborou com o Machine Learning Institute em experimentos com os primeiros protótipos de ferramentas de IA para uso artístico. Ali, em 2020, ela criou uma versão virtual de Lou que passou a “responder” a Anderson através de falas e poesias. A ponto dela ter ficado “completamente viciada". Apesar de saber que não está se comunicando com uma pessoa já morta, Anderson se convenceu de que uma pessoa tem estilos que podem ser reproduzidos.
– Enquanto isso, no Brasil diferentes entidades ligadas à cultura assinaram documento conjunto com recomendações ao Senado Federal para a regulação do uso da Inteligência Artificial que permitam assegurar os direitos de artistas e criadores. Dentre elas, a Câmara Brasileira do Livro, a Comissão Federal de Direitos Autorais do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira de Imprensa, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão e o GEDAR (representante de autores e roteiristas). O documento pede “uma norma justa e protetora dos titulares de direitos autorais”, que seja capaz de “assegurar o respeito à faculdade exclusiva deles em consentir, controlar e serem compensados”, e propõe a inclusão de dispositivos específicos no Projeto de Lei 2338/2023, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSB-MG).
– Começa hoje em Indio, na California, o primeiro fim-de-semana do festival Coachella de 2024, no qual se apresentarão artistas como Lana Del Rey, Peso Pluma, Deftones, Ludmilla e Victoria Monét. Mas quem não puder estar lá conseguirá assistir aos shows pelo YouTube ou mesmo participar do festival virtual montado em parceria com a plataforma Fortnite, de jogos eletrônicos. Serão criados palcos digitais onde acontecerão shows diversos, estrelados por artistas que existem apenas sob a forma de animação. A iniciativa busca dar uma turbinada no prestígio do festival – especialmente junto ao público mais jovem – num momento em que a busca por ingressos mostrou-se bem inferior e menos disputada que em anos anteriores.
PLAYLIST FAROL 78
Prince raro e irado. O pop-rock feroz do trio feminino mexicano The Warning. Dois Leons, uma mesma canção – bilíngue. O indie pop da belga Sylvie Kreusch. O folk-pop de Lizzy McAlpine. Andrew Gabbard + Neal Francis. Sofie Royer + Alexander Dexter Jones. A voz imensa da australiana Grace Cummings. A estilosa e contagiante dupla The Courettes. E o adeus a Pauly Fuemana, cantor do maior sucesso pop internacional da Nova Zelândia.
Prince – “United States of Division” – Lançada no Reino Unido, em 2004, como um lado B, a faixa chega agora às plataformas de streaming, trazendo um Prince grilado com a falta de harmonia entre americanos – e entre eles e o resto do mundo. “Todo mundo odeia os americanos”, ele ruge logo de saída, apontando para as repercussões da Guerra do Iraque, que acontecia na época da gravação, mas também mirando nos problemas internos de seu país – como o racismo enraizado –, adornando seus apelos por paz com funk, guitarras rock e fraseados de sintetizador e metais.
The Warning – “SICK” – O trio feminino de irmãs é mexicano, mas canta em inglês também, e faz um pop-rock pesado feroz e melodioso, repleto de ganchos e refrões chiclete.
Carin Leon, Leon Bridges – “It Was Always You”– E aqui o espanhol é misturado com o inglês num dueto dor-de-cotovelo entre dois Leons vizinhos – um, mexicano, e o outro, da Georgia, mas baseado no Texas – , que combina elementos musicais da cultura de cada um dos cantores.
Sylvie Kreusch – “Comic Trip” – De certa forma, o novo single desta artista belga traz à memória “99 Red Balloons”, hit lançado em 1984 pela alemã Nena. Mas o indie pop de Sylvie é mais experimental e definitivamente século 21.
Lizzy McAlpine – “Older”– O folk-pop da americana de Filadélfia consegue ser solar, mas na faixa-título de seu terceiro álbum é meditativo e visceral, especialmente quando ela confronta a passagem do tempo e seus arrependimentos.
Andrew Gabbard, Neal Francis – “Big Belly Boogaloo”– Uma divertida brincadeira de um dos músicos da banda de shows do Black Keys, celebrando os predicados de uma boa barriga de cerveja, com sonoridade de rock anos 1970, trazendo a tiracolo Neal Francis, nos teclados.
Sofie Royer, Alexander Dexter Jones – “Paris is burning” – O pop requintado e cheio de pedigree da vienense Sofie, com ecos até mesmo dos Beatles, ganha aqui a adesão da voz grave do britânico/americano Jones.
Grace Cummings – “Ramona” – Em seu terceiro álbum, a voz imensa da australiana Grace é singular, uma fábrica de emoção, vulnerabilidade, dramaticidade e soul.
The Courettes – “You Woo Me”– A dupla de marido e mulher – Flavia e Martin (ela, brasileira, ex-Autoramas; ele, dinamarquês) – vive num espaço musical entre o rock de garagem e o som R&B dos anos 1960, tudo super estiloso e contagiante.
OMC – “How Bizarre” – Entre 1995 e 1997, o grupo OMC – sigla para Otara Millionaires Club – conseguiu um tento histórico para seu país: seu single “How Bizarre” ultrapassou as fronteiras da Nova Zelândia, onde logo tornou-se um hit, para virar um mega sucesso mundial, primeiro lugar nas paradas de Canadá, Austrália, África do Sul, Irlanda e – a cereja do bolo – os Estados Unidos. No entanto, a mágica nunca mais se repetiu e o grupo pendurou as chuteiras em 2007. Pauly Fuemana, frontman do OMC, morreu na semana passada, aos 60 anos.