Mais nada a provar
Aos 85 anos, Francis Ford Coppola dividiu opiniões com um filme cuja feitura ocupou quase a metade de sua existência. Essa novidade "loucamente cativante" já não seria motivo suficiente de celebração?
Os oito minutos de aplausos que fecharam a premiere de gala de Megalopolis no Palácio dos Festivais, em Cannes, culminaram, dias atrás, uma longa e controvertida jornada para o projeto de seu realizador – Francis Ford Coppola, um dos diretores mais visionários de todo o cinema.
Foram 40 anos de idas e vindas, 300 versões diferentes do roteiro, interrupções, tropeços e recomeços, alimentados por 120 milhões de dólares saídos do bolso do próprio cineasta, até o filme chegar às telas.
Os relatos que precederam a primeira projeção oficial de Megalopolis e as resenhas que saíram imediatamente depois puseram em xeque a qualidade do filme e a própria capacidade de Coppola ainda conseguir fazer filmes com o impacto, a profundidade e o significado de suas obras-primas – dentre elas, Apocalypse Now e O Poderoso Chefão. Ou com coerência.
“Esse cara já fez filmes antes?”, teria indagado uma pessoa da equipe técnica que estava no set de filmagem do novo longa de Francis, citada pelo jornal The Guardian, segundo a qual diretor passaria horas a fio trancado em seu escritório, fumando maconha, enquanto todos esperavam para saber o que fariam naquele dia.
“Uma confusão complacente e gloriosa”, descreveu a revista Time, depois da sessão em Cannes de Megalopolis, enquanto para a Rolling Stone Coppola criou um filme “intransigente, de intelectualidade ímpar, descaradamente romântico, amplamente satírico, mas notavelmente sincero” e o site Vulture declarou ter visto uma “obra doida de pedra”.
Com efeitos visuais considerados demodês demais, afetação exagerada nas representações, trechos falados em latim e recursos desconcertantes – vai das tantas, uma pessoa munida de um microfone caminha pela plateia, vai até a tela e começa a dialogar com o personagem de Adam Driver –, Megalopolis não pode ser considerado um filme corriqueiro ou fácil. Mesmo assim, sua existência, em si, é motivo de celebração: por ser desafiador e pela discussão sobre as possibilidades e os limites do cinema que provoca, estimulada por um dos mestres do ofício.
O próprio fato de Francis ainda ter gás e tesão para se desafiar como cineasta – arriscando-se, de bom grado, a andar na corda bamba, apostando tudo num filme que ocupou quase metade de sua existência – já não seria motivo de celebração? A essa altura, aos 85 anos, Coppola teria mais algo a provar?
Francis faz parte de uma geração de cineastas que avançam pelo tempo sem perder a fome de jogo, realizando filmes (e outros projetos audiovisuais) que atiçam seu público e excitam e desafiam seus próprios talentos, artistas intrépidos e movidos pelo espírito da aventura e da descoberta.
A exemplo de gigantes do cinema que esticaram a carreira até o final da vida – como Akira Kurosawa ou Jean-Luc Godard –, Coppola e alguns de seus contemporâneos não mostram sinal algum de diminuir seu ritmo de trabalho, muito menos de ter vontade de descansar, ou de buscar caminhos mais fáceis.
Aos 81 anos, logo após ter lançado Assassinato da Lua das Flores, um projeto arrojado, com mais de três horas de duração, Martin Scorsese dirigiu um comercial de perfume da Chanel de apenas um minuto, estrelado por Timothée Chalamet, e estaria se preparando para uma nova dupla de filmes não exatamente simples: A Vida de Jesus, baseado no livro de Shūsaku Endō, o mesmo autor de outra publicação transformada em filme por Martin, Silêncio (de 2016); e uma cinebio de Frank Sinatra, com Leonardo DiCaprio no papel principal.
David Cronenberg, com a mesma idade de Scorsese, também levou para Cannes seu filme mais recente – o igualmente controvertido The Shrouds, tido como “caótico” pela Folha de S. Paulo.
Realizar, no final da vida produtiva, um filme qualificado como “loucamente cativante” e dono de “uma singularidade de tirar o fôlego e às vezes exasperante” pela revista The New Yorker não é para qualquer um. E o fato de Coppola – representando sua geração – ter chegado aqui com a criatividade a mil – houve um momento em que Megalopolis poderia ter sido um projeto para ser exibido em partes nos cinemas, ao longo de quatro noites – atesta sua energia e seu espírito indomável.
Do começo até agora, Francis construiu seu caminho no cinema à sua maneira e colheu os frutos de sua determinação – as filmagens de Apocalypse Now duraram 10 vezes mais que o previsto e transcorreram em clima de trabalho muitas vezes qualificado como desgovernado. Não poderia ter sido diferente com um projeto tão ambicioso quanto Megalopolis. Pior, no entanto, seria não tê-lo feito.
“Tantas pessoas, quando estão para morrer, dizem: ‘Ah, se eu tivesse feito isso ou tivesse feito aquilo’”, Coppola explicou na coletiva de imprensa em Cannes, ao falar daquele que pode até ser seu canto do cisne. “Quando for morrer, vou poder dizer que consegui fazer todos os filmes que quis fazer”. E do jeito que quis.
Obra inédita de Tom Jobim para um balé. Livros novos de Caetano e Chico. A popularidade crescente da comédia stand-up feita em xangainês. Editoras gaúchas afetadas pelas chuvas. E Jean-Luc Godard não podia esperar para rodar a última cena de seu derradeiro filme.
– Água de Meninos, obra inédita de Tom Jobim, composta 60 anos atrás, pode estar prestes a vir à tona. Trata-se da trilha que o ainda jovem compositor e instrumentista carioca criou para um balé, por encomenda de sua contemporânea, a bailarina Dalal Achcar, hoje uma das mais importantes coreógrafas brasileiras. São 30 minutos de música para uma coreografia inspirada por uma viagem de Dalal à Bahia, incorporando elementos de ritmos como baião, samba, capoeira e frevo. A orquestração ficou a cargo de outro mestre, Radamés Gnatalli. Por enquanto, a obra existe apenas numa partitura guardada com todo carinho por Achcar.
– Deixando um pouco de lado a música, Caetano Veloso e Chico Buarque estão para lançar seus novos livros. O do baiano, Cine Subaé-Escritos Sobre Cinema (1960-2003), organizado por Claudio Leal e Rodrigo Sombra, reúne resenhas de filmes escritas por Caetano na década de 1960 para o tabloide O Archote, mais 64 colunas de jornais, 12 entrevistas e 76 depoimentos que expõem o lado cinéfilo do artista, chegando até o ano de 2003. Foi no Cine Teatro Subaé, em Santo Amaro da Purificação, onde Veloso viu os primeiros filmes de sua vida. Já Chico Buarque descreve Bambino a Roma como uma autoficção em que narra o fim da infância, vivida na capital da Itália a partir de 1953.
– A comédia stand-up está servindo de ferramenta de revigoramento do xangainês, dialeto falado em Xangai e nos arredores daquela que é a maior cidade chinesa. A casa noturna SpicyComedy, fundada pela comediante Yang Mengqi, tem lotado com as apresentações em xangainês que oferece duas vezes por mês. É um público superior ao que vai para assistir shows de comédia feita em mandarim ou em inglês. O fenômeno reflete um crescente interesse, por parte do público jovem, pelas culturas e línguas regionais da China. Desde 1956 o uso do mandarim é compulsório nas escolas chinesas, enquanto o inglês é a segunda língua de preferência, por sua universalidade. Ainda que em menor escala, também vem aumentando o uso de dois outros dialetos no país, o sichuanês e o cantonês.
– As editoras gaúchas também foram duramente afetadas pelas chuvas catastróficas que inundaram o Rio Grande do Sul. A tragédia atingiu não apenas os selos independentes mas também as grandes marcas. São estoques perdidos, funcionários desalojados e prejuízos que ainda estão sendo calculados. No depósito da L&PM, grande e tradicionalíssima editora, a altura da água chegou a 1,5 metro. A Libretos, por sua vez, avalia ter perdido cerca de 1.200 livros, com prejuízos superiores a 350 mil reais. Enquanto isso, a Artes e Ofícios espera baixar a água para saber quanto sobrou de seus 107 mil livros estocados. As editoras de fora do estado têm demonstrado solidariedade e alguns comerciantes de São Paulo já estão vendendo publicações de editoras gaúchas sem cobrar a habitual comissão. O Clube de Editores do Rio Grande do Sul se mobilizou em campanha pedindo a livreiros e distribuidores de outros estados que deem destaque a obras de suas editoras, e estimulando o público a comprar seus livros.
– Era sexta-feira e faltava um último detalhe para concluir a feitura do derradeiro filme de Jean-Luc Godard, Scenários. O legendário diretor francês tinha até segunda-feira, impreterivelmente, para rodar um trecho de um livro de Jean-Paul Sartre para aquele que seria seu último trabalho. E não era possível adiar. Porque Godard sabia que na terça-feira morreria, através de suicídio assistido. A história da busca frenética pelo livro – na Suíça, onde Godard estava, e na França, onde acabou sendo encontrado – é contada por Fabrice Aragno, colaborador de longa data do cineasta e seu assessor técnico, na matéria publicada no diário britânico The Guardian sobre a estreia do filme nesse último Festival de Cannes.
PLAYLIST FAROL 84
João Bosco + Jaques Morelenbaum. Milton Nascimento + Esperanza Spalding. O vigor renovado do Buffalo Tom. O metaverso de Cage The Elephant. Elvis Costello relê Lowell George. A tapeçaria de vozes de Bat For Lashes. O avant-pop de English Teacher. O groove tribal e prog de SML. As imagens sonoras esotéricas de Colin Stetson. E o Café Tacvba volta à ativa para celebrar os imigrantes.
João Bosco – “O Canto Da Terra Por Um Fio”– Uma canção do compositor, cantor e violonista mineiro pela natureza e pelo meio ambiente, parceria com o filho Francisco, apresentada com acompanhamento majestoso de Jaques Morelenbaum. É uma das faixas mais marcantes do recém-lançado novo álbum de João, Boca Cheia de Frutas.
Milton Nascimento, Esperanza Spalding – “Outubro”– A contrabaixista e cantora americana gravou todo um álbum com Milton Nascimento, ano passado. A primeira amostra da colaboração é esta revisita a uma música que Bituca lançou em 1967. O disco – que sai em agosto – traz também participações de artistas como Paul Simon, Dianne Reeves, Maria Gadú, Tim Bernardes e Shabaka Hutchings.
Buffalo Tom – “Autumn Letter” – Em seu décimo álbum, Jump Rope, o veterano representante daquilo que nos anos 1990 se chamava de college rock demonstra vigor renovado, com a voz de Bill Janovitz em momentos esbarrando na vizinhança de Joe Walsh.
Cage The Elephant – “Metaverse”– Em seu sexto álbum, Neon Pill, o sexteto americano de indie rock utiliza um conceito bem em voga para se referir ao jogo de cintura necessário para se lidar com os problemas que vão se superpondo no dia a dia.
Elvis Costello – “Long Distance Love” – Cantor, compositor e mestre da guitarra slide, o californiano Lowell George construiu um repertório variado e poderoso, dentro de sua banda, o Little Feat, solo ou emprestando seus talentos para outros artistas, antes de morrer prematuramente, aos 34 anos, após um infarto. Agora, um álbum em sua homenagem reúne algumas de suas canções – tem de tudo, baladas, rock, funk – , em versões bastante diferentes das originais, emprestando a elas um molho todo especial.
Bat For Lashes – “Home”– A britânica Natasha Khan cria uma tapeçaria de vozes nesta faixa de seu sexto álbum, The Dream of Delphi, inspirado pelo começo (o nascimento de sua filha) e o fim da vida (a morte de seu pai).
English Teacher – “The World’s Biggest Paving Slab” – O avant-pop do quarteto inglês tem seu lado psicodélico, como nesta amostra de seu novo álbum, This Could Be Texas.
SML – “Industry”– O quinteto de Los Angeles mistura jazz e música eletrônica de uma forma que cria um groove ao mesmo tempo tribal e prog nesta faixa de seu álbum de estreia, Small Medium Large.
Colin Stetson – “The love it took to leave you” – Americano baseado em Montreal, no Canadá, o saxofonista – que já trabalhou com artistas de diferentes plumagens rock, de Lou Reed a Bon Iver – cria imagens sonoras esotéricas, abstratas, por vezes cantando por meio de seu instrumento.
Café Tacvba – “La Bas(e)”– Um dos principais nomes do rock mexicano, o quarteto acaba de lançar seu primeiro single em sete anos, colaborando mais uma vez com o premiado produtor Gustavo Santaolalla, agora numa canção que pode ser vista como um hino em defesa dos imigrantes. “Ninguém é ilegal”, diz a música, “o mundo é nosso lar”.