Hitler versus Bambi
Centenário da obra de literatura que inspirou o desenho animado de Walt Disney traz de volta à tona a escuridão e a crítica à perseguição de minorias contidas no original
Quando apresentou ao mundo o longa de animação Bambi, em 1942, Walt Disney vendeu-o como uma “grande história de amor”, estrelada por um filhote de veado fofo e apresentada em “technicolor multiplano” – processo revolucionário que adicionava maior profundidade às imagens do filme.
Disney deixou de fora da divulgação detalhes importantes, que dariam toda uma outra perspectiva à produção: destinado a crianças, o filme adaptava uma obra do escritor austro-húngaro Felix Salten, escrita como uma alegoria anti-fascista.
Se no filme os caçadores saem para matar animais, no livro de Salten eles servem para representar aqueles que caçavam judeus.
Bambi, o desenho animado, fez muita criança se apaixonar por aquele filhote adorável, e chorar, também – afinal, o jovem protagonista perde a mãe, assassinada a tiros, logo no inicio da história, o que traumatizou muitos pequenos. Mas Bambi: Uma Vida Na Floresta, publicado inicialmente em capítulos no jornal vienense Neue Freie Presse, em 1922, antes de virar livro, no ano seguinte, lançado pela editora alemã Ullstein Verlag, era dirigido a um público adulto. Se no filme Bambi conta com o apoio, a companhia e as brincadeiras do coelho Tambor, no livro o protagonista perde a mãe e o primo Gobo (a quem Tambor substituiu), Bambi também é baleado, é salvo por um cervo adulto que pode ser seu pai – até que o adulto também morre e Bambi termina a história sozinho.
O jornal inglês The Guardian aproveitou a comemoração dos 100 anos da obra de Felix para ressaltar as diferenças entre os livros – na verdade, saíram dois volumes focados em Bambi – e a versão romantizada da Disney para o personagem, justo aquela que perdura até hoje.
Salten, o autor, chegou a lutar contra uma versão infantilizada de sua história quando o livro Os Filhos de Bambi, o segundo da série estrelada pelo personagem, foi traduzido para o inglês, em 1939, com bem menos violência que no original. A ponto de escrever para sua editora nos Estados Unidos, suplicando "de maneira urgente, para, independentemente da suavização (da história), não divulgarem ou lançarem meu trabalho como sendo um livro para crianças”.
Pode-se apenas imaginar o que Felix de fato achou do desenho animado, de 1942, no qual Disney ignorou as questões históricas e políticas dos livros para americanizar e "domesticar” a história de Bambi, mudando, inclusive, a espécie animal do personagem, que passou a ser um veado-mula, originário da Califórnia. O autor assistiu ao filme em Zurique, três anos antes de morrer, e emitiu uma frase diplomática, ciente de que nada mais poderia fazer para alterar o curso do longa. "É um filme muito bem feito”, declarou.
Por sua vez, os nazistas de Hitler, como seria de se esperar, detestaram os livros de Salten, por considerá-los “propaganda judaica”, e, em 1935, se encarregaram de bani-los e queimá-los em fogueiras. Salten e a esposa, que moravam na Áustria, acharam prudente sair dali e, não muito depois, mudaram-se para a Suíça, de onde nunca mais saíram.
"É bem evidente que o ato de caçar e o tratamento dado a animais (nos livros de Salten) são uma alegoria da situação em que se encontravam os judeus naquela época”, disse ao The Guardian Jack Zipes, tradutor de uma reedição dos livros, lançada ano passado pela Princeton University Press. Para Jack, o final original da história de Bambi, confirme escrito por Felix, “tem um significado muito profundo: a forma como lidamos com nossa solidão e com a vida numa situação brutal”.
"Minha interpretação", prosseguiu Zipes, “e outros autores e críticos também perceberam isso, é que na verdade Bambi não era sobre animais, mas sobre judeus e outros grupos minoritários".
Ainda que prevaleça a imagem doce do imaginário das crianças, Bambi está prestes a passar por uma repaginada que pouco ou nada tem a ver com a criação de Salten, mas que também o distancia da visão de Disney e o empurra para um caminho semelhante ao traçado recentemente para o Ursinho Pooh no longa trash e sanguinolento Blood and Honey, cujo mesmo produtor, o britânico Scott Jeffrey, lançará, numa data futura, Bambi: O Acerto de Contas, um filme de terror.
Agora, Bambi não será uma alegoria anti-fascista ou uma criatura doce e apaixonante – mas uma máquina de matar.
Um projeto australiano recupera formas tradicionais de fotografar. O Lollapalooza agita São Paulo. A maior estudiosa de literatura erótica brasileira. A Apple faz a festa dos fãs de música clássica. E Little Richard encabeça uma nova leva de rockdocs.
E mais ….
– Nessa época de fotografia digital, quando foi a última vez que você usou um rolo de filme Tri-X ASA 400? Qual seria o resultado? Esse foi o ponto de partida para o fotógrafo Renato Repetto, de Brisbane, na Austrália, ao criar o Projeto 400TX. Ele fez circular entre alguns dos mais conhecidos fotógrafos australianos uma única câmera Nikon F2 35mm SLR, com 50 anos de uso, equipada com lente 55mm f/2.8 e um único rolo do filme fotográfico em preto e branco, Tri-X, com 36 poses. O resultado sublinha as qualidades da fotografia feita com equipamento analógico – e os cuidados que se toma quando se é restrito a um número limitado de cliques. Como era, antigamente.
– O fim de semana é da décima edição brasileira do Lollapalooza, festival de música que acontece de hoje a domingo no Autódromo de Interlagos, na capital paulista. Estrelado por atrações como Billie Eilish, Drake, Rosalía, Tame Impala e Lil Nas X, o palco do Lolla será ocupado também por Jane's Addiction, banda liderada por um dos fundadores do festival, o vocalista Perry Farrell, que se reuniu este ano após um hiato de 10 anos.
– Considerada a maior estudiosa da literatura erótica brasileira, Eliana Robert Moraes, professora na USP, vem reunindo em antologias o melhor do assunto. Dois de seus livros foram lançados recentemente – Seleta Erótica de Mário de Andrade e O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022) – e este ano sai, aqui e em Portugal, A parte maldita brasileira, recheado com textos de especialistas em pornografia, como Nelson Rodrigues, Reinaldo Moraes e Hilda Hist. "Tachar uma fantasia de 'errada’ pressupõe que existe uma ‘correta’”, diz Eliana. "E muitas vezes é a 'errada' que rende a melhor literatura. Se não pudermos nem escrever sobre as fantasias que realmente não podemos praticar, onde vamos colocar nossos demônios?”.
– Os fãs de música clássica terão, a partir de terça-feira, 28/3, um espaço para chamar de seu no ecossistema Apple: o aplicativo Apple Music Classical, criado depois que o gigante do Vale do Silício adquiriu o Primephonic, serviço holandês de streaming. No novo app – independente do já conhecido Apple Music – os usuários conseguirão fazer buscas por compositor, obra, maestro e até número de catálogo da gravação. Além disso, poderão optar por qualidades diferentes de reprodução do som, sendo que um punhado de gravações já será disponibilizado também no formato imersivo Spatial Audio, exclusivo da Apple.
– Sai em abril, nos Estados Unidos, o documentário Little Richard: I Am Everything, sobre aquele que Elvis Presley considerava o verdadeiro Rei do Rock & Roll. Costurado a partir de registros de época e entrevistas com o criador de clássicos como “Long Tall Sally” e “Tutti Frutti” ao longo de sua carreira, o doc, dirigido por Lisa Cortés, traz depoimentos de uma variedade de artistas – como Mick Jagger, Paul McCartney e John Waters – para contextualizar a importância musical e cultural de Richard e seu peso para a consciência queer. Muito embora por vezes Little Richard viesse a reprimir sua homosexualidade – chegou a tornar-se pastor e ensaiou um afastamento do rock. Que, felizmente, não deu certo. Enquanto isso, outro rockdoc – o excelente Stop Making Sense, de 1994, que registra o Talking Heads ao vivo e no topo de sua forma, sob a direção do craque Jonathan Demme – será relançado no final do ano, em versão 4K. A trilha do filme também sairá de novo, agora em versão super deluxe, remixado para o formato Dolby Atmos, e trazendo duas gravações inéditas: “Cities” e “Big Business/I Zimbra”. No trailer do relançamento, David Byrne vai a uma lavanderia retirar o terno gigante que foi marca-registrada da turnê enfocada pelo documentário de Demme. Para arrematar, vem aí o primeiro documentário autorizado sobre o Devo, o quinteto de art-rock que saiu de Ohio, nos Estados Unidos, para surfar o aluvião punk/new wave do final da década de 1970, com hits de MTV como “Whip It!”. Dirigido pelo mesmo Chris Smith que realizou o ótimo Fyre Festival: Fiasco no Caribe, o doc Devo ainda está em produção – utilizará material inédito de arquivo, bem como novas entrevistas – , sem previsão de lançamento.
PLAYLIST FAROL 29
Um rapper cai de boca num clássico do Black Sabbath. Indie folk-rock canadense. Uma valsa torta e misteriosa. A Bossa Nova do Oklahoma. Um mergulho contemporâneo na música romântica brasileira. Música criada a partir de instrumentos feitos com ossos e crina de cavalos. A homenagem portuguesa ao argentino Gato Barbieri. Guitarra flangeada e percussão trotante. Uma súplica a Afrodite, a Deusa do Amor. E a alma velha de uma das atrações do último SXSW.
T-Pain – “War Pigs”– A confluência do rock com o rap não é novidade – que o digam Aerosmith e Run-DMC. Mas não deixa de ser refrescante, surpreendente, até, quando um rapper identificado com o uso do auto-tune – aquela ferramenta eletrônica que torna robotizada e artificial qualquer voz – escolhe para abrir seu álbum de covers justamente uma das canções marca-registrada do Black Sabbath. Melhor: o americano T-Pain se esbalda neste cover, como se tivesse nascido para reproduzir o repertório de Ozzy.
Hayden – “On A Beach”– O indie folk-rocker canadense convocou a conterrânea Feist para colaborar nesta faixa dolente e bem-humorada de seu primeiro álbum em oito anos, Are We Good.
Arborist – “Alabaster Skin” – A nova do projeto do irlandês Mark McCambridge é uma valsa torta e cheia de mistério, como se fosse a trilha de um sonho, conduzida por baixo, cordas e uma bateria econômica, faixa do álbum An Endless Sequence of Dead Zeros.
Steve Weichert – “Stranded” – Cantor-compositor americano, Steve descrevia a música que fazia nos anos 1970 como sendo “Bossa Nova do Oklahoma”. De fato, sua música é solar, contendo elementos folk, jazz e country encontrados também na música de outros grandes da época, como Jim Croce, Dan Fogelberg e Bill Withers, como nesta faixa de abertura de seu álbum de estreia, de 1975, que está sendo relançado.
Bárbara Eugênia – “Impossível Acreditar Que Perdi Você” – Niteroiense, Bárbara mergulhou fundo na música romântica brasileira em seu novo álbum, Foi Tudo Culpa do Amor, produzido por Zeca Baleiro. Aqui ela revisita um dos maiores sucessos do ídolo pop Márcio Greyck, uma canção lançada originalmente em 1970 e que fez parte também da trilha-sonora do longa 1972.
Matthew Herbert – “The Horse Has a Voice” – Cercado da London Contemporary Orchestra, o produtor e compositor britânico Matthew Herbert, gravou um álbum inteiro, apropriadamente batizado The Horse, onde usa instrumentos musicais feitos a partir dos ossos e da crina de cavalos – adicionando, aqui e ali, alguns sons emitidos pelo próprio animal. Hermeto Pascoal se amarraria nesse disco.
Pedro Ricardo – “Ode ao Gato” – Multi-instrumentista e DJ português, Pedro homenageia o saxofonista argentino Gato Barbieri nesta faixa de seu álbum de estreia, Soprem Bom Ventos.
LA Priest – “It’s You”– Guitarra flangeada e uma percussão trotante conduzem o contagiante primeiro single do terceiro álbum do projeto do inglês Sam Eastgate, Fase Luna.
Natalie Merchant – “Come On, Aphrodite” – Em seu primeiro álbum em uma década, a ex-vocalista do 10,000 Maniacs suplica a Afrodite, a Deusa do Amor, para que a faça se apaixonar num gospel doce e contagiante que ela canta junto com Abena Koomson-Davis, do coletivo de mulheres Resistance Revival Chorus.
Baby Rose – “Stop The Bleeding”– Uma das atrações do recente festival SXSW, esta cantora americana tem menos de 30 anos, mas a voz dela, única e inconfundível, é de uma alma velha, como nesta amostra dramática de seu novo álbum, Through and Through, que sai em abril.