Fome eterna de criar
Diretores octogenários – e até entrados em seus 90's – mantêm acesa a inquietude artística e a fome de jogo, contrariando seus limites e mesmo a passagem do tempo
Dirigir filmes é um ofício para maratonistas.
São meses, anos (por vezes, décadas) mergulhado num projeto (ou vários, ao mesmo tempo), da primeira ideia à produção, passando pela seleção de elenco e equipe, por pré-produção, filmagem e pós-produção, até se chegar ao lançamento do resultado final e fazer sua divulgação.
Tarefa para jovens cheios de energia, correto? A princípio, sim, predominantemente.
Mas existe um time de cineastas octogenários – alguns até já passados dos 90 anos – dispostos a não largar o osso enquanto tenham vontade, histórias para contar e capacidade física para transformá-las em filmes.
Que o digam Francis Ford Coppola e Ridley Scott. Ambos estão em cartaz com seus novos filmes – respectivamente, Megalopolis e Gladiador II –, ainda que suas idades indiquem o caminho para uma aposentadoria merecida: 85, no caso de Francis, e quase 87, no de Ridley.
Podemos gastar horas e caracteres discutindo as diferenças entre o produzido no auge de suas carreiras e o que está agora nos cinemas. Seriam filmes que poderiam estar dentre os melhores já feitos por esses realizadores? Os dois deveriam já ter pendurado as chuteiras e cedido seu espaço a novas gerações? Ou talvez o mais valioso seja saudar a capacidade de craques assim continuarem se desafiando? Afinal, Akira Kurosawa e Jean-Luc Godard esticaram suas carreiras até o final da vida.
Vejamos: Scott já estaria preparando não um nem dois, mas sete projetos para os próximos três anos, como declarou ao The Hollywood Reporter. Estes incluem o roteiro de Gladiador III e uma cinebio dos Bee Gees. Francis, por sua vez, mergulhou na produção de dois novos filmes: um, focado em três gerações de uma família ítalo-americana, chamado Distant Vision, e outro, passado em algum lugar na Inglaterra.
Como os dois, há um bom número de cineastas de muita idade ainda na ativa e com fome de jogo – e de vida. Vide Martin Scorsese, com quase 83 anos. Depois de ter lançado o celebrado Assassinato da Lua das Flores, Martin dirigiu um comercial de perfume da Chanel e estaria se preparando para rodar uma dupla de filmes: A Vida de Jesus, baseado no livro de Shūsaku Endō, o mesmo autor de outra publicação transformada em filme por Martin, Silêncio (de 2016); e uma cinebio de Frank Sinatra, com Leonardo DiCaprio no papel principal. Também interessado em Cristo, o também americano Terrence Malik (80) encadeou diferentes episódios da vida de Jesus em The Last Planet, longa que ainda está para sair, com Ben Kingsley e Mathias Schoenaerts no elenco.
O holandês Paul Verhoeven (86), acostumado a projetos polêmicos – vide Showgirls e Instinto Selvagem – , anunciou sua disposição de filmar um thriller erótico, Young Sinner, sobre o jovem funcionário de um poderoso senador americano que se envolve com uma rede de intrigas internacionais. Brian De Palma, enquanto isso, aos 84 anos trabalha na pré-produção de um thriller, também, mas policial – Sweet Vengeance, inspirado em dois assassinatos reais –, ao mesmo tempo que desenvolve outro filme, este de terror, passado em Hollywood, Catch and Kill.
Terry Gilliam (83), sempre metido em projetos arrojados, desafiadores, escalou Johnny Depp, Jeff Bridges, Jason Momoa e Adam Lambert para estrelar seu The Carnival at the End of Days, comédia de humor negro em que Deus resolve dar cabo da humanidade. O único que se opõe ao plano é Satanás, que tenta convencer Deus de que dois jovens que encontrou são os novos Adão e Eva.
Mestres franceses – Jean-Jacques Annaud (81), Claude Lelouch (87) –, espanhóis – Jaime Chávarri (81) –, alemães – Volker Schöndorff (85) –, japoneses – Yoji Yamada (93) – e italianos – Marco Bellochio (85), Liliana Cavani (91) – são também exemplos de longevidade criativa.
E não podemos esquecer de Clint Eastwood. Aos 94 anos, mal lançou o novo Jurado nº 2 e logo anunciou que vem trabalhando nos roteiros para dois outros longas. Nessa batida, pode vir a se equiparar ao diretor português Manoel de Oliveira, que lançou seu último filme aos 106 anos.
Quanto mais velho, mais cool? Inteligência Artificial "treinada” por Werner Herzog escreve roteiro. Nova produtora oferece conteúdo audiovisual criado e estrelado por IA. Mais da metade dos brasileiros não lê livros. Um museu para a África chamar de seu.
– Ainda dentro do tema da panela velha que ainda dá bom caldo, ser maduro virou cool no mundo da moda? O público-alvo pode ser jovem, mas muitas marcas estão contratando personalidades do cinema e da música de gerações anteriores para estrelar suas campanhas de publicidade. A LOEWE, por exemplo, escalou Anthony Hopkins (86 anos). A Yves Saint-Laurent foi de Al Pacino (84). A CELINE escolheu Bob Dylan (83). A Ami ficou com Whoopi Goldberg (69). A Prada selecionou Jeff Goldblum (72). E a KITH arregimentou Brian Cox (78), Jerry Seinfeld (70) e Bryan Cranston (68) de uma só tacada. As redes sociais das marcas confirmam o acerto da estratégia. Uma recente série de seis postagens da KITH sobre uma colaboração da marca com a Marvel rendeu uma média de 30 mil likes e 500 comentários, cada. Enquanto isso, uma única postagem estrelando Brian Cox, astro da série Succession, atingiu quase 70 mil likes e 600 comentários. Por sua vez, Bryan Cranston, o Mr. White da série Breaking Bad, ganhou mais de 220 mil likes.
– Não demorou muito – e logo aconteceu. Uma ferramenta de Inteligência Artificial “treinada” a partir de filmes do veterano diretor alemão Werner Herzog escreveu o roteiro de um longa que acabou de estrear: About a Hero, dirigido por Piotr Winiewicz e estrelado por Stephen Fry, Vicky Krieps – e o próprio Herzog, no papel de narrador de um documentário sobre as investigações da morte de uma operária de fábrica. O filme não deixa de ser uma divertida provocação ao próprio cineasta germânico, que comentou, no passado, que “nem daqui a 4.500 anos um computador fará um filme tão bom quanto os meus”.
– Já a recém-criada produtora Promise Advanced Imagination Inc. garante estar pronta para realizar tanto filmes quanto programas de TV utilizando Inteligência Artificial. Será conteúdo estrelado por artistas de carne e osso, mas também virtuais, gerados pela IA. Para tanto, a Promise está desenvolvendo um software todo seu, o MUSE, que diz combinar tecnologia de ponta de IA com o processo criativo, de maneira “colaborativa e segura”, seja lá o que isso queira dizer.
– Mais da metade da população brasileira não lê livros. Nos últimos cinco anos, o país perdeu mais de sete milhões de leitores. Os dados são da pesquisa Retratos da Leitura do Brasil, divulgada esta semana. O quadro é preocupante. Desde 2007, quando a pesquisa começou a ter edições anuais, pela primeira vez a proporção de não-leitores apurada foi maior que a de leitores. A pesquisa foi feita pelo Instituto Pró-Livro com um grupo de 5.5 mil entrevistados em 208 municípios. Coordenadora da pesquisa, a socióloga Zoara Failla aponta diversos fatores para o resultado. Entre eles, a pandemia, que impactou a alfabetização, o letramento e a distribuição de livros; e o aumento do tempo passado diante de uma tela de computador ou de um dispositivo móvel.
– Determinada a neutralizar a ideia de que a África não tem espaço nem capacidade para cuidar de seu patrimônio, a cidade de Benin, no sul da Nigéria, vai ganhar o Museu de Arte da África Ocidental (Mowaa), que abre em maio de 2025. O novo espaço, de ponta, descrito como “um museu para o século 21”, tem consultoria de Shadreck Chirikure, professor de ciência arqueológica na Universidade de Oxford, e abrigará em seus mais de 60 mil metros quadrados salas de exposição, espaço de conservação, um centro de pesquisa e laboratórios.
PLAYLIST FAROL 105
PJ Harvey regrava Joy Division. Paul Simon + Edie Brickell. Andrew Gabbard incorpora Harry Nilsson. Sopa de Cabra dá carta branca a seus colaboradores. O rock experimental de Squid. George Harrison + The Band. O jazz espiritual de Ganavya. O folk celestial de Merope. E o adeus a Pete Sinfield.
PJ Harvey, Tim Phillips – “Love Will Tear Us Apart”– Uma nova versão da faixa-assinatura do Joy Division, feita por nossa musa perene PJ para a trilha da segunda temporada da série Mal de Família, uma das cinco melhores de 2022, conforme a lista do FAROL daquele ano. É a segunda vez que ela – e, no caso, o parceiro Tim Phillips – contribuem para a série. Os dois gravaram versões de uma música de Leonard Cohen – “Who By Fire” – e de uma canção tradicional americana, “Run On”, para a primeira temporada.
Paul Simon, Edie Brickell – “Bad Dream – Pouco antes da recente eleição americana para presidente, Simon e a esposa, Edie, lançaram este single, num clima blues, aparentemente comentando o quadro que se apresentava. A música fala de um pesadelo, que em nada se parece com “o país que prometi a meus filhos”.
Andrew Gabbard – “Magic Taxi”– Guitarrista do Black Keys, o americano Andrew vem colecionando uma discografia solo considerável. Em seu mais recente, Ramble & Rave On!, recebe um Harry Nilsson de frente.
Sopa de Cabra – “L’amor no cau del cel”– Veterano do rock catalão, o grupo de Girona convocou diferentes colaboradores para seu novo álbum, Ànima, e deu carta branca a cada um para imprimir sua personalidade à faixa da qual participava. Foi o caso, por exemplo, da pianista Clara Peya.
Squid – “Crispy Skin” – Vem da Inglaterra o terceiro álbum do quinteto de rock experimental, Cowards, com uma abertura instrumental que lembra tanto “Baba O’Riley”, do The Who, quanto uma trilha de jogo eletrônico.
George Harrison – “Sunshine Life For Me (Sail Away Raymond)”– Um dos apetitosos petiscos da reedição ampliada de Living In The Material World, álbum lançado pelo ex-Beatle em 1973, é esta versão de uma música que acabou sendo usada num disco de Ringo Starr. Aqui, George se cerca de ninguém menos que quase toda The Band, na época em pleno auge de sua relação com um dos parças de Harrison, Bob Dylan.
Ganavya – “Om Supreme”– Jazz espiritual, na veia de Alice Coltrane, feito pela cantora nova-iorquina para seu novo álbum, Daughter of a Temple, com participação de Vijay Iyer, no piano, e de Immanuel Wilkins, no sax.
Merope – “Namopi”– Björk gosta desta dupla da Lituânia. E dá para entender o porquê. No novo álbum, Véjula, a vocalista e instrumentista Indrė Jurgelevičiūtė e o produtor Bert Cools pintam paisagens sonoras muitas vezes abstratas, mas sempre intrigantes, criando faixas do que os dois chamam de folk celestial.
The Fleshtones– “The Consequences” – Rock de garagem nova-iorquino com pedigree alentado, feito por veteranos que estão na lida desde 1976, ainda com saudável fome de jogo.
Premiata Forneria Marconi– “Celebration”– Britânico, Pete Sinfield bolou as letras, muitas vezes surreais, dos primeiros discos do King Crimson – incluindo a faixa-assinatura “21st Century Schizoid Man” – , aliou-se ao baixista, cantor e compositor Greg Lake quando ele partiu para formar o celebrado trio com o tecladista Keith Emerson e o baterista Carl Palmer, produziu a estreia em disco do Roxy Music, mas não se ateve apenas ao universo progressivo. São dele algumas músicas de sucesso de artistas pop, como Bucks Fizz, Cher e Celine Dion. Em 1973, em plena efervescência prog, Pete apresentou ao mundo o grupo italiano Premiata Forneria Marconi, cujo álbum, Photos of Ghosts, produziu. Sinfield morreu na semana passada, aos 80 anos.