Filme mineiro busca o Oscar e torna-se um marco da história do cinema brasileiro
A Academia Brasileira de Cinema e Artes Visuais fez história no início dessa semana ao selecionar para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro Marte Um, produção independente de Minas Gerais.
Lançado no Festival de Sundance, nos Estados Unidos, e ganhador de quatro prêmios no Festival de Gramado, Marte Um será o primeiro filme brasileiro dirigido por um negro a entrar na disputa por uma indicação a um Oscar.
A escolha é especialmente significativa por ocorrer num momento em que as artes, em geral, e o cinema, em especial, têm sofrido em meio à intensa guerra cultural promovida pelo atual governo e seus apoiadores, quando políticas inclusivas e diversidade são consideradas anátema. E Marte Um, é bom ressaltar, foi financiado em parte com recursos obtidos através de um edital afirmativo, voltado para realizadores negros, e mostra um universo de personagens negros.
Escrito e dirigido pelo jovem realizador mineiro Gabriel Martins – fazendo aqui seu primeiro longa individual – e produzido pela Plástico Filmes, de Contagem, na periferia de Belo Horizonte, o filme segue a trajetória de Deivinho, garoto da mesma região, considerado pelo pai um astro em potencial do futebol – e, portanto, a chance de melhoria da vida da família – , cujo sonho, na verdade, está bem distante dos gramados: o menino quer ser astrônomo e integrar uma missão colonizadora em Marte, em 2030.
"O filme trata de afeto e de esperança, da possibilidade de seguir sonhando em meio a tantas dificuldades econômicas e políticas”, disse a ABCAV, em nota, ao anunciar sua decisão. Os mesmos termos foram usados pelo diretor Cacá Diegues, para quem Marte Um é um filme “que irradia afeto”.
“Vivemos um momento de muito cinismo, de muita individualidade, em que acordamos sentindo ódio”, disse Gabriel Martins ao O Globo. “Abrimos as páginas do jornal e vemos a Amazônia pegando fogo, a guerra na Ucrânia, perda de direitos. Ficamos num sentimento de tristeza e revolta que muitas vezes nos faz desacreditar do ser humano”.
Para o diretor, “Marte Um vem para reivindicar um sentimento de amor pela vida, pelo sonho. Temos que tentar nos agarrar em algo para levantar da cama. Reivindicar este sentimento de poder sonhar é muito importante para os dias de hoje”.
Gabriel enfatizou, na mesma entrevista, a importância da chamada pública que ajudou a financiar seu filme. “Editais como este nos ajudam a criar um panorama de maior representatividade e contempla uma demanda de reparação. Hoje, conseguimos olhar para trás e entender que mesmo com o cinema brasileiro tendo uma história muito bonita, essa história também é muito elitista, machista e racista”.
E mais …
– Quem se interessa por jornalismo musical vai se deliciar com o livro de memórias de Jann Wenner – ex-publisher e fundador, junto com o Ralph J. Gleason, da revista Rolling Stone – e com o documentário Melody Makers. No primeiro, Jann vai contando a história da revista ( que começou em 1967, numa pequena gráfica em São Francisco, e tornou-se a maior autoridade da área até os anos 1980) através de seus encontros com personagens que escreveram a historia do rock e, em muitos casos, tornaram-se seus amigos pessoais – John Lennon, Mick Jagger, Pete Townshend, Bruce Springsteen e Bono. Não tem os mesmos bastidores e a mesma picância de Sticky Fingers: The Life and Times of Jann Wenner and Rolling Stone Magazine, biografia não autorizada do mesmo editor, mas é um espelho de uma carreira jornalística que mudou profundamente a imprensa musical e serviu de indicador de tendências e caixa de ressonância da cultura rock. Já o documentário enfoca os anos de atividade do Melody Maker, o primeiro de uma série de jornais semanais de música ingleses, que circulou de 1926 a 2000, que é costurado por divertidos depoimentos de seus antigos jornalistas, editores e fotógrafos e ilustrado pelos cliques históricos que enfeitaram suas páginas.
– Depois de nove anos fechado para obras de recuperação e restauro que custaram cerca de 235 milhões de reais, foi reaberto o Museu do Ipiranga, em São Paulo. Com sua área ampliada de 6.400 m² para cerca de 13.400 m², o espaço cultural é “uma providencial lição do vigor dos brasileiros” e “certamente o melhor museu do país, tanto na instalação quanto no propósito”, segundo Elio Gaspari, em sua coluna na Folha de S. Paulo.
– Enquanto isso, será erguida em Barcelona a maior biblioteca pública da Espanha. O projeto existe desde 1997 mas sua construção, orçada em 55 milhões de euros (maior investimento numa biblioteca pública espanhola em 125 anos), deve começar em 2023, com inauguração prevista para 2027. O novo edifício abrigará em torno de 600 mil coleções, espalhadas por 16 mil m².
– A relação entre Pablo Picasso e Lee Miller – fotógrafa e correspondente de guerra americana – é o assunto da exposição que está em cartaz na Newlands House Gallery, em Petworth, West Sussex, na Inglaterra, até 8 de janeiro.
Ela registrou a vida e o trabalho do pintor e escultor com uma intimidade que nenhum outro fotógrafo teve, acumulando mais de mil imagens clicadas ao longo de 40 anos.
– Uma das grandes atrações da The Armory Show, importante feira internacional de arte que abre hoje em Nova York, não é uma obra ou um artista, em especial, mas a moldura criada pela empresa Danvas: na verdade, um monitor de vídeo de alta definição para exibir arte digital e NFTs, os arquivos não fungíveis e colecionáveis popularizados recentemente. Mas os monitores da Danvas não são para qualquer um: cada unidade custa quase 35 mil dólares.
– A semana do Bicentenário da Independência também incluiu outra data comemorativa: os 100 anos do rádio no Brasil. Em sete de setembro de 1922, a Rádio Sociedade – fundada no Rio de Janeiro por Edgard Roquette-Pinto – transmitiu um discurso de Epitácio Pessoa, então presidente da república. O FAROL selecionou alguns exemplos atuais de programação de rádio para ilustrar a evolução e do meio e sua diversidade. Do Brasil, o Ronca Ronca, comandado pelo “inoxidável” Maurício Valladares. Da Inglaterra, a BBC Radio London. Da França, a Radio France. E dos Estados Unidos, a KCRW, de Los Angeles.
P&R – Pergunte a José Emilio Rondeau. Ele responde!
“Qual foi o melhor show que você já viu?”– Dante, São Paulo-SP
Pois é. Volta e meia me perguntam: qual foi o melhor show de rock que você já viu?
Não é fácil responder e requer muita meditação. Mas uma certeza eu tenho: entre os três melhores está o do Midnight Oil, no Hollywood Palladium, em abril de 1988.
Inaugurado em 1940, o Palladium é um teatro construído em estilo art deco, com capacidade para cerca de quatro mil pessoas. Em sua longa história, abrigou encontros políticos – já passaram por lá Robert Kennedy e Martin Luther King – e shows suculentos – Jimi Hendrix, em 1969; os Rolling Stones, em 1972, já imaginou?
Agora, transporte-se para 1988, quando o grupo australiano Midnight Oil excursionava pelos Estados Unidos, promovendo o álbum Diesel and Dust, do qual saiu o super hit “Beds Are Burning”.
Eternamente na iminência de tornar-se, para todos os efeitos, a Melhor Banda de Rock do Mundo, o Oil criou naquela noite fria de abril uma verdadeira epifania rock and roll.
Naquelas quase duas horas, num Palladium superlotado, eles deram um show visceral, arrebatador, passional, energético, irresistível, curativo, que confirmava, em letras garrafais, o poder de transformação e de mobilização do rock.
“Sometimes” fechou o show, com o vocalista Peter Garrett – um azougue gigante e careca – zunindo de um canto para o outro do palco, volta e meia sacudindo o canguru empalhado que fazia parte do cenário, interpretando com todas as suas forças e toda a convicção a letra da música, um hino rock à resistência, custe o que custar: “Tem vezes que você é levado até o paredão. Mas você não cede!”.
Ali, naquele momento, naquela noite, no Hollywood Palladium, o Midnight Oil foi A Melhor Banda de Rock do Mundo.
Coda: no final daquele mesmo ano, em dezembro, vi também no Palladium Keith Richards e seus X-Pensive Winos lançando o álbum Talk Is Cheap. Mas isso já é papo para outra conversa.
A tempo: não conhece Midnight Oil, nem “Sometimes”? Você pode ter uma ideia do poder de furacão dessa música e da potência da banda nesse clipe aqui.
E você, tem alguma pergunta a fazer, alguma dúvida a tirar? Escreva para jer.farol@gmail.com.
PLAYLIST FAROL 3
A volta de Björk. Afro-MPB de Recife. Alt-folk sussurrado. O blues meio invertido que vem da Suécia. E um clássico dos Beatles remixado.
A seleção comentada da semana já está no ar.
Björk – “Atopos” – A primeira amostra do novo álbum, Fossora, que sai no final do mês, é inspirada em Barthes, embalada por um naipe de clarinetes baixos e ancorada numa forte batida eletrônica para falar de união e harmonia.
Margo Price – “Been To The Mountain”– A cantora-compositora de Nashville, conhecida por sua sonoridade alt-country, aproxima-se mais do rock, puro e simples, em seu novo single.
Valerie June – “Pink Moon” – Das oito músicas que a cantora do Tennessee escolheu para seu álbum de versões – Under Cover –, a deste clássico de Nick Drake é o destaque.
Isadora Melo – “Não Ando Bem” – Recifense que vem transitando há anos também pela televisão e pelo teatro, Isadora produziu, ela mesma, seu segundo álbum, Anagrama, um achado de afro-MPB de alto quilate, onde estreia também como compositora, cercada por um trio afiado, montado com Rafael Marques (guitarra), Lucas dos Prazeres (percussão) e Henrique Albino (flauta e sax).
Bien et Toi – “Rainbow Tables”– Com vocais dobrados e intimistas de Biig Piig, o produtor nova-iorquino Gianluca Buccellati, colaborador de gente como Arlo Parks e Lana Del Rey, lança seu primeiro disco como artista solo, criando um pop sofisticado, encharcado de soul.
Luke Sital-Singh – “ All Night Stand”– Britânico transplantado para a Califórnia, Luke faz em seu quarto álbum, Dressing Like A Stranger, um folk sussurrado para refletir a dificuldade de adaptação a um novo país, a uma nova vida.
Weils – “To Apeiron”– "Uma banda de blues fora da média, que faz um blues meio invertido … sem as notas do blues”. É assim que se define o projeto sueco formado pela dupla Jonas Teglund e Isak Sundström, que na verdade, demonstra mais afinidade com Kraftwerk e Pink Floyd do que com Son House ou Muddy Waters. Esta faixa de 23 minutos viajandona é um dos cinco “atos” do álbum Fugue State.
Buzzcocks – “Senses Out Of Control”– O segundo single dos ícones do punk britânico – e inspiração por aqui de bandas como o Camisa de Vênus – sem a participação do fundador, frontman e vocalista Pete Shelley, morto em 2018, traz agora o guitarrista Steve Diggle à frente da banda, com vigor intacto, e abre o primeiro álbum do grupo em oito anos.
Run Logan Run – “Silver Afternoon”– Vem de Bristol, na Inglaterra, a dupla formada pelo baterista Matt Brown e o saxofonista Andrew Neil Hayes, aqui cercada por um noneto e a vocalista Annie Gardiner para uma viagem sonora arrojada, de contornos épicos, com quase 10 minutos de duração.
The Beatles – “Taxman”– Sai no final de outubro a reedição especial de Revolver – o álbum de 1966 que marcou o início de um período fértil de experimentação e evolução acelerada dos Beatles no estúdio – , com as 14 faixas do disco original remixadas por Giles Martin e o engenheiro de som Sam Okell em estéreo e Dolby Atmos, mais um tesouro de material inédito, como demos, versões alternativas ou incompletas das músicas que compõem o disco original. A primeira amostra é a nova remixagem deste clássico de George Harrison.
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