"Eu sou a 'vermelha'!"
A roteirista Norma Barzman viveu décadas no exílio, depois que sua ligação com o Partido Comunista a levou à Lista Negra em Hollywood. Mas ela não deixou a indústria de cinema esquecer o mal que fez
No início dos anos 2000, Norma Barzman estava sob os holofotes por seu envolvimento com o Partido Comunista americano. De novo.
Mais de meio século antes, ela e o marido – Ben Barzman, roteirista como ela, bem mais conhecido, autor dos scripts de clássicos como El Cid – entraram na mira da ala mais conservadora do Congresso americano, quando o início da Guerra Fria demonizou os “vermelhos”. Por isso, os dois – membros do PC – passaram a integrar a Lista Negra de Hollywood, junto com diversos outros roteiristas, diretores, atores e técnicos ativistas ou simpatizantes, perderam acesso a qualquer tipo de trabalho na mesma indústria que haviam ajudado a nutrir, e precisaram sair do país para sobreviver e sustentar os filhos.
Os anos vividos na Europa – de 1949 a 1976 – podem ter afastado os Barzman de amigos e familiares nos Estados Unidos, mas, por outro lado, os aproximou de uma comunidade criativa que incluía de Pablo Picasso a Yves Montand. Sofia Loren tornou-se uma amiga. E a maioria dos sete filhos dos Barzman, depois de crescidos, fincou raiz por lá.
Toda essa experiência de vida alimentou o livro que Norma lançaria em 2003, The Red and The Blacklist. “Eu sou a vermelha (red)”, ela dizia, com uma gargalhada, ao se referir ao título do livro. E a confecção do livro serviu de assunto para as inúmeras entrevistas e palestras que ela e seus colegas de geração e profissão passaram a dar, a partir de 1999, para manter vivo o assunto, e relembrar o preço que precisaram pagar por sua convicção política.
Norma estava com 80 anos e se postou na entrada do Dorothy Chandler Pavilion, junto com um de seus netos, para protestar contra uma homenagem que o Oscar faria naquela noite ao diretor Elia Kazan – "um rato”, como dizia o cartaz que ela carregava na entrada do tapete vermelho, por ter dedurado colegas afiliados ao Partido Comunista.
Por causa desses esforços, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dignou-se a montar uma exibição sobre a Lista Negra de Hollywood. E, graças à dedicação de Norma e seus colegas, organizou-se também uma mostra de filmes censurados na época da “caça aos comunistas”.
“Tenho muito orgulho de meus anos como Comunista”, ela declarou à agência Associated Press. “Não éramos agentes soviéticos, mas éramos um pouco tolos, idealistas e entusiasmados, e acreditávamos haver uma chance de tornar o mundo melhor”. Ainda assim, em 1968 ela e Ben abandonaram o PC, depois que a União Soviética invadiu a Checoslováquia.
Naquele momento de ebulição em Hollywood em torno do assunto – a virada dos anos 1990 para os 2000 – meu caminho cruzou com o de Norma.
Fui entrevistá-la sobre a Lista Negra e o trabalho que ela e seus colegas estavam fazendo – e nos demos muito bem.
Norma lembrava demais uma contemporânea dela – Evelyn DeWolfe, carioca transplantada para Los Angeles nos anos 1940, onde construiu uma brilhante carreira em jornalismo (as matérias que escreveu para a revista Life, resultado de suas viagens pelo mundo com o marido, o fotógrafo Leonard Nadel, são históricas), e onde iniciamos uma amizade profunda, que durou até a morte dela, pouco tempo atrás, aos 99 anos.
Assim como Evie, Norma tinha personalidade, talento, um enorme senso de humor, fome de viver, generosidade, e amor pelo que fazia. No caso, roteiros, cinema, contar histórias. E, assim como Evie, tinha trabalhado como jornalista: foi a primeira repórter mulher do The Los Angeles Times, onde Evie, mais tarde, também trabalharia. Já mais velha, Norma escrevia uma coluna sobre a vida do idoso para o hoje extinto The Los Angeles Herald Examiner.
Aproveitei o convívio para me aconselhar com Norma. Estava escrevendo o roteiro do que viria a ser 1972 – o filme que dirigiria em 2002, lançado em 2007 – e pedi que ela, fera do ofício, lesse o que tinha feito até ali. Norma topou e recebeu uma cópia do script (ainda em fluxo) em inglês. Não demorou muito até me avisar que estava pronta para compartilhar suas observações.
“Fiquei muito decepcionada”, disse, logo ao abrir a porta de sua casa, em West Hollywood. “Pensei que fosse ler uma história política, sobre a ditadura brasileira, e você me traz uma história de rock ’n' roll!”. Foi a primeira, mas não a última vez que se fez esse comentário sobre o filme – que sempre se pretendeu uma fantasia rock, uma comédia romântica, ambientada num tempo em que, sim, a ditadura comia solta, mas a ditadura não era o assunto, muito menos a alma da história sendo contada. Era o pano de fundo.
Norma devolveu páginas e páginas riscadas de alto a baixo, com a palavra “bullshit” (cascata, porcaria) bem destacada em cada uma. Não pelo teor, mas pelo roteiro, em si. Eram trechos sem sentido, mal escritos, sem razão de ser, forçações de barra. Quando anotava alterações, Norma dava aula. Usava verbos de forma a enfatizar e clarificar a ação: depois da canetada dela, uma personagem não mais “ficava chateada”, mas “desmontava”. Bem mais forte, bem mais visual, mil vezes melhor.
O roteiro de 1972 poderia ter ficado melhor do que resultou, no final, mas pós-Norma ganhou um vigor e um pique que não tinha antes.
Nos vimos algumas vezes mais, antes de meu retorno ao Brasil – ela acabou se mudando para um apartamento menor, em Beverly Hills, onde eu levava café brasileiro em pó de presente, quando ia visitá-la – e cheguei a conviver um pouco com sua filha, a cineasta Luli Barzman, baseada em Paris, quando ela me procurou no Rio de Janeiro, não muito tempo depois, onde veio acertar um documentário sobre a coreógrafa Lia Rodrigues e seu trabalho no complexo da Maré.
Norma também lançou um livro de memórias pessoais de seu tempo no exílio, The End of Romance: A Memoir of Love, Sex, and the Mystery of the Violin, onde revelava um caso amoroso ocorrido em meio a sua vida de casada. A publicação enraiveceu os filhos, mas ela nunca se arrependeu.
Tudo isso é pretexto para celebrar a alma vivaz e inquieta de Norma, que morreu no final do ano passado, aos 103 anos. Assim como Evie, ela fez parte de uma geração desbravadora, destemida, talentosíssima, ungida com aquele ingrediente intangível, mas facilmente compreensível e tão desejável: a joie de vivre. A alegria de viver.
Os artistas que vão às ruas para registrar a paisagem urbana. Brasileiro também escreve livros de terror. Quem se aventura a dirigir o British Museum? Um milhão de dólares para construir o melhor equipamento de som do mundo. The Smile no escurinho do cinema (mas aqui, só em São Paulo). André 3000 em IMAX. Começa a 24ª Mostra de Tiradentes. E a vida de Audrey Hepburn vira 'graphic novel'.
– Já ouviu falar dos urban sketchers? São artistas que registram, de forma sintética, a paisagem urbana. O movimento, fundado em 2007 pelo artista visual espanhol Gabriel Campanario, é formado por arquitetos e urbanistas — os primeiros a integrar os grupos —, mais designers, tatuadores, quadrinistas e aposentados de diversas profissões, que sempre gostaram de desenhar, e tem adeptos no Brasil, como mostra a matéria de Sheila Kaplan para o Valor Econômico. Dentre eles, Francisco Leocádio – arquiteto, cenógrafo e professor de desenho da Escola de Belas Artes da UFRJ. “A premissa”, segundo ele, é “testemunhar o tempo e o lugar onde você está”.
– Brasileiro também escreve livros de terror. É o que demonstra uma leva de lançamentos neste começo do ano literário. Os novos títulos se distinguem por trazer histórias de terror ancoradas na realidade do país – do integralismo e a ditadura militar (A Febre, de Marcelo Ferroni) ao cangaço (misturado a vampiros em Gótico Nordestino, de Cristhiano Aguiar) e à recente pandemia. E um deles, Tênebra, reúne ficção macabra escrita por autores clássicos, como Machado de Assis e Olavo Bilac.
– Quer dirigir o histórico British Museum, em Londres? O salário é tentador – cerca de R$ 1.3 milhão por ano, ou mais de 100 mil mensais. Mas a pessoa a ser selecionada vai encarar uma tarefa hercúlea: recuperar o prestígio da instituição, depois de um escândalo envolvendo roubo do acervo (um dos curadores teria afanado nada menos que 1.500 peças), tourear uma série de pedidos de restituição de itens hoje em seu acervo, e garantir recursos para uma reforma. Ainda se interessa? O Museu está recebendo currículos até 26 de janeiro.
– Ken Fritz resolveu construir em sua casa o melhor equipamento de som possível, para se deleitar com seus discos de jazz e música clássica. Começou o projeto nos anos 1980 e enterrou na empreitada um milhão de dólares – sem contar a mão de obra gratuita de amigos e filhos. Ken morreu em 2022, de complicações decorrentes de esclerose lateral amiotrófica, doença do sistema nervoso que enfraquece os músculos e afeta as funções físicas. Mas a fantástica saga de sua aparelhagem (e o destino dela, após sua morte) foi contada pelo diário The Washington Post.
– O The Smile – grupo de Thom Yorke, Jonny Greenwood e Tom Skinner – vai lançar seu novo álbum, Wall of Eyes, com uma exibição, em cinemas independentes de 12 cidades ao redor do mundo, do videoclipe realizado em película de 35 mm por Paul Thomas Anderson (diretor de clássicos como Magnólia, Sangue Negro e Boogie Nights) para a faixa “Friend of a Friend”, mais uma audição do disco na íntegra, com som surround. Os brasileiros poderão participar do evento em São Paulo, na segunda-feira, 22/1, às 20h, no Cine Cortina (R. Araújo, 62 - República). Se já não esgotaram, os ingressos estão disponíveis na plataforma de vendas SYMPLA.
– Enquanto isso, André 3000 fará na terça-feira, 23/1, uma audição de seu novo álbum, New Blue Sun, em cinemas nos Estados Unidos dotados de equipamento IMAX, acompanhada de visuais produzidos por Bradford Young, diretor de fotografia do ficção-científica A Chegada. Imediatamente depois, haverá bate-papo com André e o diretor do evento, Terence Nance, o mesmo da série Random Acts of Flyness, exibida pela HBO Max.
– O ano no audiovisual brasileiro começa hoje, 19/1, com a 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Serão exibidos 145 filmes produzidos em 20 diferentes estados. Também haverá debates, oficinas, laboratórios e bate-papos após as sessões. Tudo com entrada gratuita em diversos espaços na cidade histórica mineira. Quem não puder ir conseguirá assistir a pelo menos parte da programação – 43 longas, três médias e 99 curtas – acessando o site da mostra ou a plataforma Itaú Cultural Play.
– E por falar em cinema, a vida de uma das maiores estrelas da telona, Audrey Hepburn, virou graphic novel. Escrito pela suíça Eileen Hofer e desenhado pelo francês Cristopher, o livro de 320 páginas contou com a colaboração de Luca Dotti, filho caçula da icônica atriz, e cobre desde a infância de Audrey a seu trabalho humanitário na UNICEF.
PLAYLIST FAROL 66
A festa do Black Keys. Jeymes Samuel, D'Angelo e Jay Z, juntos, em nome do cinema. Os Garotin + Caetano Veloso. Faye Webster + Lil Yatchy. O indie rock arrojado de Mebutô. O art-rock de Bodega. O Lemon Twigs com jeito de 14 Bis. As histórias de dor e sofrimento de Marika Hackman. E o adeus ao guitarrista Pedro Lima.
The Black Keys – “Beautiful People (Stay High)”– Lembram que contamos aqui, na semana passada, que vinha aí um “disco de festa” do BK? Pois ele começou a chegar, com uma faixa para lá de animada, da qual participa Beck.
Jeymes Samuel, D'Angelo, Jay Z – “I Want You Forever”– Uma colaboração a seis mãos de altíssimo quilate, feita para a trilha do filme The Book of Clarence, no qual um malandro resolve fingir ser capaz de realizar os mesmos milagres de Jesus (ambos negros, aqui) e acaba preso pelo trambique. Mas se safará – se entregar Jesus às autoridades.
Os Garotin, Caetano Veloso – “Nossa Resenha”– A mescla de samba, soul e R&B do trio carioca formado por Cupertino, Anchieta e Léo Guima cativou o Velho Baiano a ponto dele gravar com eles o novo single do grupo.
Faye Webster – “Lego Ring”– Uma combinação inusitada que acaba funcionando muito bem, onde o folk indie de Faye (cheio de dissonância e distorção) junta-se à voz quase desencarnada do rapper Lil Yachty, que foi seu colega de escola em Atlanta, nos Estados Unidos.
Mebutô – “Marcha”– O paulistano Rico T. , do Satoru, tirou da cartola um tema instrumental denso, arrojado, para apresentar seu novo projeto de indie rock. A guitarra cria um clima inicial de western spaghetti até ganhar a adesão de teclados e metais para adensar a percussão marcial, cada vez mais urgente. Cria-se um quê de cinematográfico, até que a voz de Paulo Freire nos conclama à importância das marchas de mobilização para se alcançar conquistas sociais. E a música se expande e floresce, a caminho de um clímax arrebatador, aguçando a curiosidade para o que o Mebutô produzirá daqui para a frente.
Bodega – “Tarkovski”– A nova do quinteto nova-iorquina de art-rock soa como se tivesse sido gravada nos anos 1980: super pop, conduzida por uma batida insistente e guitarras psicodélicas.
The Lemon Twigs – “My Golden Years”– Os irmãos Brian e Michael D’Addario mergulham de cabeça no power pop, evocando nesta faixa de seu novo álbum, Everything Harmony, de Beatles e Byrds a Beach Boys e, curiosamente, soando, em determinados momentos, como o 14 Bis.
Marika Hackman – “Hanging”– A cantora-compositora britânica pode até lembrar muito a americana Judee Sill, na emissão da voz e nas melodias. Mas seu foco é em histórias de dor e sofrimento, aterrorizantes, até.
The Vaccines – “Anonymous in Los Feliz" – Os veteranos do indie rock britânico acabam de lançar seu sexto álbum – Pick-Up Full of Pink Carnations – e mostram o quanto a gravação do disco na Califórnia, feita num estúdio nas colinas de Hollywood, deixou marcas. A música que fecha os trabalhos fala de uma amor fugaz, iniciado justamente numa rua de Los Feliz, bairro da região.
A Bolha – “É Só Curtir” – Meu primeiro texto sobre rock publicado em algum lugar no planeta foi um punhado de parágrafos sobre A Bolha que ajudou a inaugurar uma nova seção da primeira encarnação brasileira da Rolling Stone, em 1972. Ali já ficava patenteada minha admiração pelo grupo, que perdura até hoje. Ao vivo, A Bolha oferecia o melhor show de rock do Rio de Janeiro: pesado, feito com aparelhagem de qualidade superior, mas, sobretudo, muitíssimo bem tocado. As versões de músicas de Stones e Humble Pie eram no ponto, refrescantes, e ainda havia o repertório próprio, à altura do que vinha da Europa e dos Estados Unidos (“Sem Nada”, “18h30", “Rosas”). A formação clássica era imbatível – Renato Ladeira (vocais, guitarras e teclados), Pedro Lima (guitarra e vocais), Arnaldo Brandão (baixo e vocais) e Gustavo Schroeter (bateria). Quando escrevi o roteiro para a comédia romântica/fantasia rock ’n’ roll 1972 – filme que também dirigi e que saiu em 2006 – , tasquei A Bolha como personagem da história e parte integral da trilha (produzida por Renato junto com o guitarrista e compositor Cláudio Araújo, outro egresso de um dos grupos de rock cariocas dos anos 1970, O Faia). A Bolha era personagem da época, cabia perfeitamente na trama, e aquilo dava a oportunidade de apresentar o grupo e sua música a novas gerações. De quebra, aconteceu o que nem em sonho imaginava ser possível: a banda se reuniu para novas gravações (com algumas músicas inéditas) e, mais adiante, shows. Uma das novas canções registradas acabou sendo escolhida para a sequência de abertura do filme: uma música que havia mofado na gaveta, depois de censurada por causa da palavra “curtir" na letra, considerada “código” para o uso de drogas. É uma das poucas músicas da Bolha cantadas por Pedro, seu autor. E tem uma mensagem libertadora ("há um novo mundo lá fora, é só abrir”), um alento para o tempo em que nasceu, em meio à ditadura. Nela, Pedro sola com economia mas precisão, escolhendo as melhores notas para montar seu raciocínio. Não era mais aquele garoto que decolava em voos psicodélicos em sua Gibson SG vermelha nos palcos dos clubes do subúrbio ou da Zona Sul, mas um músico mais comedido. A Bolha.02 voltou aos palcos, após o filme e o lançamento de um novo álbum, mas a morte de Renato, em 2015, freou os trabalhos. Arnaldo e Gustavo retomaram suas carreiras individuais. Pedro se recolheu. E essa semana veio a morrer, aos 73 anos, após sérias complicações de saúde. O rock brasileiro perdeu, assim, um de seus guitarristas mais originais.