Este disco legendário do The Who poderia ter ficado perdido na poeira do tempo. Ainda bem que Pete Townshend nunca desistiu dele
Pensado em 1970, gravado no ano seguinte e nunca concluído, o mítico 'Life House' surge agora sob a forma de demos, ensaios, versões incompletas – e até um show-teste para meia dúzia de gatos pingados
Em 1970, Pete Townshend resolveu criar uma nova ópera-rock para substituir o “núcleo-Tommy” nos shows de sua banda, The Who. E mergulhou num projeto ainda mais ambicioso que a história de um rapaz cego, surdo e mudo que é um craque no pinball e vira líder de um culto.
O projeto – batizado de Life House – consumiu meses de trabalho árduo, tentativas, angústia e frustração a tal nível que Pete chegou a contemplar o suicídio. E acabaria nunca sendo concluído.
Ninguém parecia compreender o conceito do novo projeto – que incluiria um álbum e um filme de longa-metragem misturando ficção e documentário – ou mesmo querer se envolver com ele: uma ópera-rock de ficção-científica sobre um planeta dominado por tiranos fascistas, onde a música é proibida, e cujo meio-ambiente está combalido pela poluição extrema – a salvação só seria possível através do rock and roll.
Tentar detalhar Life House para seus colegas de banda teria sido "o mesmo que explicar energia atômica para homens da caverna", Pete diria na época. E o empresário/produtor do Who, Kit Lambert, que sempre apoiou o guitarrista, não queria dar ouvidos a Townshend, e preferia se ocupar de seu passatempo favorito do momento, a heroína.
Embora Townshend diga que bolou todo o conceito da nova ópera-rock durante um único fim de semana, na casa do sogro, os temas de Life House, muitos premonitórios, eram de difícil compreensão para aquele início da década de 1970. Pete fala de um mundo onde existe uma Rede muito semelhante ao que viria a ser a internet. Prevê algo parecido com realidade virtual e o lockdown motivado recentemente pela pandemia do COVID. E o estrago causado ao planeta pela poluição antecipava em décadas o que vivemos hoje, em meio à crise climática.
Apesar desses obstáculos, Pete liderou o Who na gravação das faixas para o novo disco e chegou a partir para uma estratégia inédita: realizou uma espécie de “oficina" das músicas numa série de shows no Young Vic Theatre, em Londres, na esperança de ouvir da plateia suas reações ao novo material. Só que o público – reduzido a alguns adolescentes matando aula – queria apenas ouvir as músicas antigas do Who. Inclusive, trechos de Tommy.
"A ideia era tornar a banda e o público partes importantes do processo de composição”, explicou Townshend recentemente, ao jornal The Times, "usando a mim mesmo como um computador que absorveria as informações que eles me passariam, de uma forma parecida com o funcionamento dos algoritmos, hoje em dia. Mas nada aconteceu".
Pete fez de tudo para preservar as ideias e o conceito que havia criado, mas Life House acabou dando lugar a um álbum mais convencional, o genial Who’s Next, uma das obra-primas de Townshend e do grupo, para o qual o produtor Glyn Johns recuperou e ordenou de forma coerente várias músicas do projeto original – algumas delas, ironicamente, marcas-registradas de todos os shows do Who, dali por diante, vide "Baba O’Riley" e "Won’t Get Fooled Again". Mas, destituídas do contexto do projeto original, ainda que dotadas de uma potência própria que as imortalizaria no repertório da banda, eram de certa forma incompreensíveis.
Como se isso fizesse tanta diferença assim. São músicas de dimensões épicas que acabaram inaugurando o estilo espetacular de shows de rock para estádios abertos.
Algumas das gravações que ficaram guardadas na gaveta acabaram entrando em discos futuros: "Pure and Easy” abriu o primeiro álbum solo de Pete Townshend, Who Came First, em 1972; e "Naked Eye” e “Too Much of Anything", por sua vez, estão na compilação Odds and Sods, de 1974. Mas Life House nunca saiu.
Através dos anos, o projeto, como um todo, emergiu, parcialmente, em compilações (Music from Lifehouse, de 2018) e até shows solo de Pete Townshend. Mas só agora o escopo completo de Life House vem à tona, sob a forma de um mega-caixote comemorativo dos 50 anos (com certo atraso) de Who’s Next, com 10 CD’s contendo 155 faixas, das quais 89 inéditas, mais um livro de 100 páginas documentando a jornada empreendida por Townshend na tentativa de concretizar o álbum, e uma graphic novel que dá uma ideia do que poderia ter sido o filme.
O álbum Life House, propriamente dito, nunca existiu – e não faz parte do caixote. Mas esse novo conteúdo proporciona uma panorâmica do processo criativo de Townshend e dos rascunhos executados durante a busca pelo formato ideal do disco.
Estão aqui demos, ensaios, versões incompletas – e até mesmo a apresentação no Young Vic e, um ano mais tarde, um show em São Francisco, com o Who tocando as músicas de Who’s Next depois do álbum já lançado. Tudo isso, mais um livro sobre a feitura do disco e uma fartura de material iconográfico.
Ou seja, o caixote encerra o assunto Life House, certo? Nem pensar.
Pete já disse à revista Uncut que está em andamento um documentário sobre Life House, dirigido por Frank Marshall. E há o desejo de se fazer também um filme em animação baseado no projeto.
Mais de meio século depois de sua gênese, Life House ainda pulsa no coração de Townshend.
Mr. Jimmy é obcecado pelo Sr. Page. Co-criador da Rolling Stone é expulso da Fundação Rock and Roll Hall of Fame – que ele criou. O primeiro livro da atriz Millie Bobby Brown causa controvérsia. A escritora Conceição Evaristo recebe o troféu Juca Pato. E as artes perdem o colombiano Fernando Botero.
– Akio Sakurai era um vendedor japonês de quimonos que nutria verdadeira obsessão por Jimmy Page, o fundador, guitarrista e produtor do Led Zeppelin: o jeito dele tocar, de se vestir, Sakurai absorvia tudo aquilo para tentar reproduzir, de uma forma ou de outra, nos mínimos detalhes. Quando chegou aos 50 anos, aquilo extrapolou todos os limites. Akio largou o emprego e tornou-se … Mr. Jimmy, um cover de Jimmy Page que busca reproduzir solos, poses e roupas de palco eternizados em fotos e vídeos do LZ. O próprio Page foi assistir a uma apresentação de Mr. Jimmy e saiu impressionado com a trabalheira que Akio teve para chegar onde chegou. Quer saber mais sobre a figura, hoje morando em Los Angeles? Um documentário sobre ele vem circulando no circuito de festivais desde 2019 e o trailer está online.
– Co-fundador da revista Rolling Stone, Jann Wenner foi expulso da diretoria da Rock and Roll Hall of Fame Foundation – que ajudou a criar – depois de dizer, numa entrevista ao The New York Times, que artistas negros e mulheres não eram "articulados" o bastante para merecer entrar em seu recém-lançado livro de entrevistas, The Masters, onde só aparecem homens brancos, como John Lennon, Bono, Bruce Springsteen, Mick Jagger e Pete Townshend. Literalmente horas depois da expulsão, que aconteceu após uma reunião de emergência que não durou mais de 20 minutos, Jann pediu desculpas “de coração” por suas palavras, argumentando que o livro era uma coleção de entrevistas feitas ao longo dos anos "que me pareceram representar melhor uma ideia do impacto do rock ‘n’ roll no meu mundo; elas não devem ser consideradas representativas da música como um todo e de seus criadores diversos e importantes, mas como reflexo dos pontos altos da minha carreira e das entrevistas que para mim ilustraram a amplitude e a experiência nessa carreira. Eles não refletem meu apreço e admiração por inúmeros artistas totêmicos que mudam o mundo, cujas músicas e ideias eu reverencio e celebrarei e promoverei enquanto eu viver”. No entanto, não há sinal de que sua expulsão será revertida. A queda de Wenner é dramática. Durante mais de 50 anos ele reinou como uma espécie de guardião do rock, à frente da publicação mais poderosa do mundo dedicada àquele universo, e como principal líder do Rock and Roll Hall of Fame – que ele considerava uma espécie de extensão de sua revista.
– Outro livro a causar controvérsia, mas por motivos bem diversos, é Nineteen Steps, estreia de Millie Bobby Brown, a Eleven da série Stranger Things, no mundo literário . É um romance descrito por ela como sendo "uma emocionante história de amor, saudade e perda, inspirada por eventos verdadeiros envolvendo (minha) família durante a Segunda Guerra Mundial”. Mas o lançamento está servindo como ponto de discussão em torno do uso de ghostwriters –profissionais contratados para organizar e tornar interessante de ler os pensamentos e as ideias da pessoa que irá assinar o livro – por famosos sem prática no ofício de escrever. Isso porque, em casos como o de Millie, o ghostwriter, apesar de todo o trabalho que tem, não recebe crédito na capa do livro. A bem da verdade, a própria atriz se encarregou de trazer a público a identidade de sua ghostwriter, a escritora Kathleen McGurl, publicando uma foto das duas juntas, segurando a capa do livro, e agradecendo a ela por tudo que fez. Kathleen escreveu o livro a partir de pesquisa providenciada por Millie, que constantemente fazia anotações, comentários e sugestões a cada nova safra de páginas que recebia. Mas as redes sociais pegaram fogo, mesmo assim, com gente contra e a favor da atriz assinar sozinha o livro.
– A escritora Conceição Evaristo tornou-se a primeira mulher preta a receber o Troféu Juca Pato de Intelectual do Ano, concedido pela União Brasileira de Escritores (UBE). Criada em 1962, a premiação já reconheceu nomes como Carlos Drummond de Andrade, Antonio Candido, Aílton Krenak, Milton Hatoum e Lygia Fagundes Telles. O prêmio será entregue a Conceição pelo Padre Júlio Lancelotti, vencedor do ano passado, em novembro, durante o Festival Literário Internacional de Itabira (MG). Autora de livros como Canção Para Ninar Menino Grande, Conceição foi também escolhida em 2019 a Personalidade Literária do Ano pelo Prêmio Jabuti.
– O mundo das artes perdeu na semana passada o artista plástico colombiano Fernando Botero. Conhecido carinhosamente em todo o mundo como o “pintor de gordinhos”, por conta de quadros, desenhos e esculturas retratando pessoas roliças, com bom-humor e tons de surrealismo, ele morreu aos 91 anos. “Minha pintura é sobre temas afetivos, porque a pintura foi fundada sobre temas afetivos”, dizia o artista, um autodidata que iniciou a carreira como ilustrador em um grande jornal, nos anos 1940.
PLAYLIST FAROL 53
Os sintetizadores e as harmonias angelicais de Laura Misch. O folk progressivo de Adeline Hotel. Ethel Caine se inspira no canibalismo. Claudette Soares + Chico Buarque. Cat Power reproduz concerto de Bob Dylan. Anchoress regrava New Order. Clássico de Neil Young ganha versão de Rufus Wainwright. Naima Bock abraça Leonard Cohen. Eric Clapton homenageia Willie Nelson. E a Música Clássica Negra de Yussef Dayes.
Laura Misch – “Portals“ – Passeios divertidos pelo teclado de um sintetizador, percussão orgânico/digital e harmonias angelicais pontuam esta faixa do álbum de estreia da londrina Laura, Sample The Sky, que sai em outubro.
Adeline Hotel – “Hot Fruit”– O projeto de folk progressivo do nova-iorquino Dan Knishkowy tem um som pastoral, com cordas misturadas a flautas, guitarras e violões, em arranjos de momentos por vezes suntuosos.
Ethel Caine – “Famous Last Words”– Misterioso, perturbador, assustador, mesmo, o novo single da americana Ethel é inspirado … num filme de terror sobre canibalismo, Até os Ossos.
Claudette Soares – “Cadê Você (Leila XIV)”– Aos 85 anos, a veteranérrima Claudette gravou com Chico Buarque uma parceria dele com João Donato. Assim, ela comemora os 55 anos de lançamento de Gil-Chico-Veloso, álbum de 1968 em que ela só cantou composições dos três artistas do título.
Cat Power – “She Belongs To Me” – Corajosa, a cantora-compositora Chan Marshall. Tomou para si a tarefa hercúlea de reproduzir no Royal Albert Hall, em Londres, a íntegra do show realizado por Bob Dylan em Manchester – mas eternizado, erroneamente, como tendo acontecido no mesmo RAH –, em 1966, quando alguém da plateia o chamou de “Judas", por estar usando guitarras elétricas e, assim, "traindo" as tradições da música folk. Agora, a apresentação de Cat Power está saindo em disco.
Anchoress – “Bizarre Love Triangle”– Vamos de covers? Pois aqui está uma leva generosa, a começar por esta versão de um clássico do New Order, regravado pela galesa Catherine Anne Davies para seu novo álbum, Versions.
Rufus Wainwright – “Harvest”– Parte de uma longa linhagem musical, que inclui Loudon Wainwright III (pai), Kate McGarrigle (mãe) e Martha Wainwright (irmã), o canadense Rufus mergulhou na música folk, em suas diferentes vertentes, convidando nomes como David Byrne, Van Dyke Parks, Susannah Hoffs e ANOHNI para participar. Aqui, ele regravou a faixa-título do álbum-marco do conterrâneo Neil Young, lançado originalmente em 1972.
Naima Bock – “So Long, Marianne”– Enquanto isso, a britânica Naima abraça delicadamente, com seu folk suave, uma das canções eternas de outro canadense, Leonard Cohen.
Eric Clapton – “Always On My Mind" – E encerrando esta série de versões cover, aqui Eric revisita o repertório de Willie Nelson para homenagear os 90 anos do velho homem do country. Bradley Walker reparte os vocais. Detalhe: um outro guitarrista extremamente conhecido participa da gravação – Ronnie Wood.
Yussef Dayes – “Rust”– Baterista e produtor da cena londrina de jazz moderno, Yussef aprendeu a tocar o instrumento com ninguém menos que o craque Billy Cobham. Agora, fez um álbum de estreia riquíssimo e profundo, Black Classical Music, cercado de bambas como Shabaka Hutchins e, aqui, o guitarrista Tom Misch.