Dá para separar a arte do artista?
A 80ª edição do Festival de Cinema de Veneza exibirá os novos filmes de três cineastas acusados de predação sexual. Como a imprensa e a crítica devem se comportar nessa hora?
A revista The Hollywood Reporter levantou a bola: como a imprensa deve cobrir o 80º Festival de Cinema de Veneza, que movimenta o pequeno e pacato vilarejo do Lido até 9 de setembro, diante da presença na seleção oficial de filmes de três cineastas acusados de predação sexual, Roman Polanski, Woody Allen e Luc Besson?
Com 90 anos de idade, o diretor franco-polonês Polanski participa fora de competição com seu The Palace, comédia que se passa num hotel suíço na virada do milênio, trazendo no elenco John Cleese, Mickey Rourke e Fanny Ardant. Woody, aos 87 anos, também mostra fora de competição o filme de suspense Coup de Chance, sua primeira produção francesa, estrelada por Niels Schneider e Lou de Laâge. E Besson está na competição por prêmios do festival com Dogman, drama sobre um rapaz que só consegue achar refúgio para seus problemas junto aos cachorros.
O que fazer? Escreve-se sobre os filmes – mas ignora-se o contexto maior, envolvendo seus realizadores? Fala-se das duas coisas? Enfatiza-se os casos em que estão envolvidos? Ou enterra-se o assunto no miolo das matérias sobre o festival, para não chamar muita atenção para ele?
Polanski foi acusado em 1977 pelo estupro de uma menina de 13 anos de idade, na casa de Jack Nicholson, em Los Angeles. Negociou com a promotoria para ter uma pena mais branda, mas antes que saísse o veredito para seu caso fugiu para a França, onde não há acordo de extradição com os Estados Unidos. A menina, Samantha Geimer, veio a público muito tempo depois para lamentar o tratamento dado a Roman, uma vez que ela sabia muito bem o que estava fazendo – só ignorava o fato de que ele poderia ser preso por aquele ato. Já adulta, ela lançou um livro a respeito do caso e veio a posar numa foto abraçada com Polanski, sorrindo.
Woody chegou a ser inocentado, na década de 1990, das acusações feitas por Mia Farrow, sua ex-esposa, de ter molestado uma das filhas adotivas do casal, Dylan, quando ela era uma criança de sete anos de idade. Mas perdeu a guarda da filha.
Enquanto isso, Besson escapou, em 2018, de acusações de importunação e estupro, por insuficiência de provas.
Woody e Besson comparecerão a Veneza para divulgar seus filmes. Mas Polanski, não.
Questionado, o diretor artístico do festival, Alberto Barbera, argumenta que é preciso “separar a arte do artista. Não posso ser juiz do homem, sou um diretor de festival: julgo a qualidade dos filmes”.
Mas será que a presença de filmes dos três cineastas mancha o festival? E, por outra, o fato de dois deles terem sido inocentados pela justiça pesa a favor deles?
“Só o fato de ter esses homens nesses festivais parece uma celebração dos criminosos”, diz Ursula Le Menn, ativista do grupo feminista francês Osez Le Féminisme que propôs um boicote ao último Festival de Cannes, por causa da presença de Johnny Depp naquele evento, promovendo seu novo filme, Jeanne du Barry. Ela também acredita que o simples fato de escrever sobre os filmes de Polanski, Besson e Allen transforma os repórteres culturais em testemunhas da defesa dos três, por estarem, assim, seguindo a linha de raciocínio de Barbera: a arte e o artista são duas coisas diferentes.
Alberto reafirmou sua posição, em entrevista publicada em O Globo. “Convidamos Roman há três anos e ele ganhou o Grande Prêmio do Júri. Por que deveríamos ter dúvidas em convidá-lo agora (a participar do festival)? Nada mudou, o debate não mudou. Estamos presos nesta situação inútil, que não faz sentido. Roman admitiu que estava errado. A vítima o perdoou. Por que continuamos atacando um mestre de 90 anos?”.
“Devemos aprender a distinguir entre o comportamento do artista e a própria arte. Caso contrário, teríamos que reconsiderar a arte dos séculos passados”, resumiu.
Já Andrew Knight, professor da London School of Journalism entrevistado pelo THR, considera desequilibrado, antes de mais nada, misturar dois homens inocentados com um condenado. “Você estaria implicando que as acusações aos três homens se equivalem – e repetindo alegações que sempre foram negadas”. Para Knight, só seria aceitável citar numa matéria jornalística a respeito de Veneza as acusações aos três diretores caso acontecessem protestos ou ameaças de violência contra o festival.
Enquanto isso, Jo Livingstone, crítica britânica também citada pelo THR, pensa ser danosa e inútil a proposta de se banir ou boicotar filmes feitos por “homens monstruosos”, uma vez que a cobertura jornalística cultural deve se ater à cultura sendo apresentada, aos filmes em si.
“Não vi os (novos) filmes de Polanski, Allen ou Besson”, prossegue Jo, “mas pelos trailers e clipes disponíveis online nenhum parece ser muito sensacional. Portanto, a discussão talvez tenha que ser sobre a razão de um festival como o de Veneza decidir celebrar diretores que caíram em desgraça (em graus diferentes), quando está claro que (nenhum de seus novos filmes) se compara aos melhores trabalhos que já fizeram”.
Ela conclui: “Não me importa o que o diretor fez. Se o filme for uma porcaria, por que dar espaço jornalístico a ele?”.
Os diários de Amy Winehouse. Hologramas "conversam” com visitantes em museus que documentam o antissemitismo e a violência racial. Curitiba organiza a sétima Bienal dos Quadrinhos. Carlos Santana recebe o tratamento rockdoc. As fotos de Evandro Teixeira documentam as ditaduras do Chile e do Brasil. E os diamantes dos Rolling Stones vão rolar.
– Amy Winehouse faria 40 anos no próximo 14 de setembro. Os pais da cantora-compositora britânica, morta em 2011, decidiram marcar a data do aniversário com o lançamento de um livro, Amy Winehouse: In Her Words, recheado de fotos de família, poesias, letras e passagens dos diários da artista quando bem jovem. “Queremos que o mundo conheça a verdadeira Amy”, explica o pai dela, Mitch, hoje com 72 anos. De especial interesse para os fãs são os trechos dos diários onde Winehouse revela suas ânsias e traça seus planos para o futuro. "Às vezes fico pensando se existe um cara tão louco quanto eu, que ame os Beatles e que saiba mais sobre John Lennon do que eu sei”, ela revela. Depois, ela lista suas "Ambições da Fama”. Dentre elas, conhecer Liz Taylor e Paul Newman, ser amiga de Sarah Jessica Parker, Stella McCartney e Eddie Izzard, colaborar com Missy Elliott e Timbaland … e fazer um filme ao lado de Steve Buscemi.
– Museus dos Estados Unidos dedicados a documentar o antissemitismo ou a violência racial começaram a usar hologramas, Inteligência Artificial e Realidade Virtual para que os visitantes “conversem" com sobreviventes do Holocausto ou com representantes de povos escravizados. Alguns exemplos são o Museu do Holocausto e Centro de Educação do Illinois, na cidade de Skokie, e o Museu do Legado : Da Escravização Ao Encarceramento em Massa, em Montgomery, no Alabama. Em teoria, chega a ser um processo simples: um técnico do museu alimenta um computador com perguntas e respostas sobre temas variados, ligados aos assuntos levantados pelo museu, e um sistema de IA cria a resposta, amparado na base de dados do museu, sob a forma de um áudio reproduzindo a voz humana e de uma imagem em movimento daquele humano respondendo. Caso o sistema não tenha resposta a alguma das perguntas feitas pelo público, o “humano" do holograma responde que não sabe, e a IA cuida de buscar uma resposta para ser validada e utilizada futuramente.
– Acontece, entre 7 e 10 de setembro, no Museu Municipal de Arte (MuMA), a sétima edição da Bienal de Quadrinhos de Curitiba. Mais de 40 artistas, do Brasil e do mundo, comparecerão para participar de atividades como palestras, oficinas, debates e sessões de autógrafos. O tema do evento é Resistências, Existências: Quadrinhos e Corpos Plurais. A letrista Lilian Mitsunaga, responsável pelo letreiramento das edições brasileiras dos quadrinhos da Disney e criadora de fontes para edições brasileiras de obras de Will Eisner e Craig Thompson, será a grande homenageada desta edição, que receberá, ainda, atrações como a quadrinista argentina Maria Luque (A Mão do Pintor), a ilustradora e cartunista sueca Joanna Rubin Dranger, e Walkir Fernandes, fundador do Dogzilla Studio e codiretor de arte na série O Menino Maluquinho, da Netflix.
– Os mesmos produtores de Eight Days a Week – sobre a vida dos Beatles na estrada – e o premiado diretor Rudy Valdez – ganhador do Emmy pelo documentário The Sentence – assinam o novo rockdoc sobre o guitarrista Carlos Santana, que retrata a carreira do artista desde que era um músico de rua, aos 14 anos, até sua descoberta pelo empresário Bill Graham, que levou Carlos e sua banda ao festival de Woodstock, chegando aos dias de hoje, quando Santana acumula 10 prêmios Grammy e é conhecido por diferentes gerações pelo toque latino e pela espiritualidade de sua música. Carlos: The Santana Journey estreia 23 de setembro nos cinemas.
– Quase 200 imagens clicadas pelo veterano fotojornalista Evandro Teixeira, documentando diferentes fases da ditadura brasileira – da tomada do Forte de Copacabana, na véspera do golpe militar, à Passeata dos Cem Mil e a missa do estudante Edson Luís, em 1968 – e a comoção do povo chileno durante o enterro do poeta Pablo Neruda, em 1973 – a primeira grande manifestação pública contra o regime do general Augusto Pinochet – , compõem a grande exposição que ocupa três salas do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, até 13 de novembro. "Ele cutucava o poder dos generais com vara curta”, diz Sergio Burgi, curador da mostra, que foi visitada por mais de 10 mil pessoas quando passou por uma temporada no Instituto Moreira Salles, em São Paulo.
– Na quarta-feira, 6 de setembro, o mundo saberá todos os detalhes do segredo que os Rolling Stones há dias vêm revelando aos poucos: o conteúdo de seu primeiro disco de inéditas desde 2005 – e o primeiro lançado depois da morte do baterista Charlie Watts, em 2021. É neste dia que haverá um evento no teatro Hackney Empire, em Londres, para divulgar tudo sugerido ou suspeitado a partir da publicação de um anúncio misterioso, no dia 23 de agosto, no jornal de bairro Hackney Gazette. O anúncio chamava para a inauguração, em setembro, de uma loja de conserto de janelas de vidro, a Hackney Diamonds, utilizando no texto partes de títulos de músicas dos Stones, tipologia de um dos discos antigos da banda e até, perceberam os mais atentos, a famosa língua-logo. “Disfarçada" de pingo de uma letra "i”, mas está lá. Logo a internet pegou fogo com os possíveis desdobramentos do anúncio – Hackney Diamonds seria o nome do novo álbum dos Stones? De uma das músicas do álbum? E o que significaria Hackney Diamonds, afinal? Uma rápida pesquisa mostra que é uma gíria londrina para se referir a vidro quebrado e espalhado pelo chão quando alguém tenta roubar um carro ou arrombar uma janela. Mas a coisa esquentou mesmo quando entrou no ar o site hackneydiamonds.com, onde já se pode ver uma contagem regressiva para o evento do dia 6 de setembro, onde a língua-logo é representada em vidro, e onde se fala de "uma nova era dos Stones”. Projeções da língua de vidro começaram a aparecer em diversas cidades, mundo afora. E fãs mais atentos fuçaram tanto depois disso que encontraram até a informação de que os Stones haviam registrado em sua editora 12 novas músicas, três delas em co-autoria com Andrew Watt, requisitado produtor de artistas como Pearl Jam, Miley Cyrus e Iggy Pop. Seriam elas: "Angry", "Bite My Head Off", "Depending on You", "Dreamy Skies", "Driving Me Too Hard", "Get Close", "Live By the Sword", "Mess it Up", "Morning Joe Cues", "Sweet Sounds of Heaven", "Tell Me Straight" e "Whole Wide World”. E quanto à “nova era dos Stones”, o que isso quer dizer? Uma era sem Charlie Watts, com Steve Jordan na bateria? Uma era em que eles não mais fariam longas turnês, mas residências, temporadas em determinadas cidades? E o que vai acontecer no dia 6 de setembro, exatamente? Os Stones só irão falar sobre o disco e anunciar que ele será lançado em outubro, como já se vem dizendo? Vão tocar, também? As respostas, só mesmo na quarta-feira da semana que vem.
PLAYLIST FAROL 50
Obra-prima de Marvin Gaye ganha reedição ampliada no cinquentenário. A mescla de jazz com Índia do Shakti de John McLaughlin. O western spaghetti imaginário de Yumi And The Weather. O pop experimental de Ricardo Dias Gomes. Bebel Gilberto homenageia o pai, João. Black Pumas investe no gospel. The Shivas regrava Shocking Blue. Ferve o sangue de Be Your Own Pet. Blind Boys of Alabama revisitam Stevie Wonder. E Nação Zumbi resgata seu clássico do Manguebeat.
Marvin Gaye – “Let’s Get It On“ – Esta demo da faixa-título de uma das obras-primas de Marvin Gaye – um álbum encharcado de sensualidade – dá uma ideia da delícia que é o mergulho profundo proporcionado pela reedição comemorativa do cinquentenário de Let’s Get It On. Conhecemos, no decorrer dos cinco CD’s que formam o novo caixote, não apenas o trabalho para a realização do disco, mas as explorações musicais diversas de Marvin, através de versões alternativas das músicas que acabariam entrando no disco oficial, e de faixas instrumentais das quais participa o craque Herbie Hancock.
Shakti – “Mohanam”– Lá se foram 46 anos desde o lançamento do primeiro disco gravado pelo grupo formado pelo guitarrista John McLaughlin (junto com o percussionista Zakir Hussain) depois que o inglês deu por encerrada a primeira encarnação de sua Mahavishnu Orchestra. Só agora sai o quarto álbum do Shakti, This Moment, impulsionado pela mescla de jazz com Índia que sempre caracterizou a música do grupo, mas agora com John usando guitarras, em vez de violão.
Yumi And The Weather – “Lead Me Through Hell” – Britânica de Brighton e uma das atuais sensações da rádio BBC 6, Yumi criou o que soa como o tema psicodélico para um western spaghetti imaginário.
Ricardo Dias Gomes – “Real News”– Com um quê de Tropicalista, o carioca Ricardo (que já trabalhou com Caetano Veloso, quando integrou a BandaCê, e faz parte também do grupo Do Amor) é um dos artistas brasileiros de destaque na imprensa britânica de música. Mas, ao contrário de outros conterrâneos elogiados por revistas como Uncut e Mojo – Rogê e Sessa são algumas menções recentes – , Ricardo opta, no recém-lançado single, por cantar em inglês seu pop experimental.
Bebel Gilberto – “Você e Eu”– A cantora homenageia o pai João com um álbum todo dedicado ao repertório gravado por ele, um dos nomes mais importantes da música brasileira. Aqui ela é acompanhada com a sutileza e a delicadeza que as canções exigem pelo produtor e tecladista Thomas Bartlett e pelo violonista Guilherme Monteiro, com percussão corretamente econômica a cargo de Magrus Borges, Kenny Wollesen e Chico Brown.
Black Pumas – “More Than a Love Song” – Amostra do esperadíssimo segundo álbum da dupla de Austin, Chronicles of a Diamond, que sai em outubro, a faixa investe pesado na sonoridade gospel, utilizando uma guitarra distorcida em estilo anos 1970, e é inspirada numa tirada de um velho tio, para quem a vida não era apenas uma canção de amor.
The Shivas – “Love Buzz”– Gravada pela primeira vez, em 1969, pelo Shocking Blue, grupo holandês conhecido mundialmente pelo sucesso “Venus”, esta música foi resgatada pelo Nirvana, 20 anos depois. Agora, ganha nova roupagem através do quarteto de rock alternativo de Portland, nos Estados Unidos, mas mantendo o jeitão vintage.
Be Your Own Pet – “Worship The Whip”– O quarteto de Nashville chega a seu primeiro álbum em 15 anos – Mommy – com uma pinta de New Wave anos 1980, mas a raiva e o sangue fervendo contra o autoritarismo de direita são legitimamente século 21.
Blind Boys of Alabama – “Heaven Help Us All” – A nova de um monumento do gospel que está em atividade – em diferentes iterações – desde 1944 é uma prece inspiradora, gravada originalmente por Stevie Wonder, em 1970, e faz parte de uma coleção de canções registradas ao vivo, sem overdubs, no estúdio.
Nação Zumbi – “Da Lama Ao Caos”– O clássico do grupo pernambucano foi regravado para a trilha do explosivo seriado Cangaço Novo, em cartaz no Amazon Prime Video. A faixa faz parte do Manguefonia, projeto da banda cuja proposta é revisitar as faixas mais significativas do movimento Manguebeat.