Cinquentenário do hip-hop celebra a revolução cultural que nasceu no Bronx e conquistou o mundo, uma batida por vez
Hoje uma indústria e um estilo de vida que movimentam dezenas de bilhões de dólares, o hip-hop tem raízes em uma festa caseira, organizada em 11 de agosto de 1973. Mas quem são os pais da criança?
Todo 11 de agosto é comemorado nos Estados Unidos o Dia Nacional do Hip-Hop. Mas este ano a data tem peso bem mais significativo, pois marca o cinquentenário do nascimento do gênero musical que abriu clareiras no cenário pop e engatilhou uma revolução na cultura negra – não só americana, mas mundial.
O hip-hop abriu a porteira para uma enxurrada de novos artistas musicais – de Kurtis Blow, Salt-n-Pepa e LL Cool J a NWA, Public Enemy e Ice-T; de Tupac Shakur, Wu-Tang Clan, Queen Latifah, A Tribe Called Quest e Lil Wayne a Beastie Boys, Nicki Minaj, Snoop Dogg, De La Soul, Missy Elliot e The Roots – e influenciou de maneira profunda o trabalho de astros pop e rock que já tinham carreiras estabelecidas – como The Clash e Blondie, por exemplo, dois dos primeiros a incorporar o novo gênero, e mais adiante, Aerosmith, que injetou um gás na carreira duetando com o Run-DMC. Espalhou-se por gerações e décadas, dando origem hoje a algumas das manifestações musicais mais criativas e influentes de seu tempo – Kendrick Lamar, Eminem, Tyler, The Creator, Childish Gambino e Jay-Z são exemplos. Por aqui, deu origem a nomes como Rappin’ Hood, Racionais MC's, Emicida, Mano Brown, MV Bill, Planet Hemp, Xamã, Anitta, e toda a leva recente de astros de trap.
Hoje, o hip-hop movimenta dezenas de bilhões de dólares, inclusive através da associação com patrocinadores de peso, de Apple e Adidas a Louis Vuitton – Shawn Carter, ou Jay-Z, como o conhecemos, vale, sozinho, 2.5 bilhões de dólares. E o gênero ocupa lugar de destaque na preferência do público, especialmente em seu berço original, os Estados Unidos. Como mostramos aqui, em setembro de 2022, uma pesquisa feita em março daquele ano pela CBS News/YouGov apontava que, embora 32% dos americanos preferissem o rock – perante o pop (15%), o hip-hop ou o rap (14%), o country/western (12%), o R&B e soul (7%) e o jazz (4%) –, os que tinham menos de 30 anos elegiam o pop, em primeiro lugar, e o hip-hop, em segundo, como seu gênero musical favorito. E a maioria dos respondentes com idades entre 18 e 29 anos disse gostar mais de hip-hop.
E pensar que tudo começou numa festa.
Em 1973, um DJ nascido na Jamaica, Clive Campbell (ou Kool Herc, como tornou-se conhecido), ajudou a irmã a angariar fundos para comprar roupas e material para ir à escola organizando uma festa num salão do edifício onde moravam, no número 1520 da Sedgwick Avenue, no South Bronx, região de Nova York. Durante a festa, ele manipulava o toca-discos para repetir trechos de música, criando, assim, montagens musicais ao vivo, a partir de gravações de “Give It Up Or Turnit A Loose”, de James Brown, ou de "Apache”, da Incredible Bongo Band. Enquanto isso, um amigo, Coke La Rock, improvisava falas e poesias ritmadas sobre a música, adicionando uma forma primitiva de rapping. Ali, naquela festa animada, numa noite quente de 11 de agosto, teria nascido o hip-hop.
Não que o que Herc e La Rock fizeram na festa de 50 anos atrás já tivesse sido batizado de hip-hop logo na largada, nem que o gênero já nascesse 100% codificado. O próprio termo "hip-hop" seria cunhado somente anos mais tarde, em 1978, por Keith Cowboy e DJ Lovebug Starski, integrantes do grupo Grandmaster Flash and the Furious Five, quando os dois utilizavam em seus raps rimados a repetição das palavras “hip” (moderno) e “hop" (pulo) – convidando o público a saltar, a dançar – e, logo em seguida, nos improvisos que assinariam o super hit “Rapper's Delight”, da Sugarhill Gang, que inaugurou, oficialmente, o relacionamento do hip-hop com a indústria fonográfica, e iniciou a gigantesca popularização do gênero, mundo afora.
Só que a associação do termo hip-hop a um gênero musical e a um estilo de vida aconteceria somente depois, em 1982, quando Afrika Bambaataa – outro DJ pioneiro, também do Bronx – explicou, numa entrevista à revista cultural East Village Eye, que hip-hop era "um termo amplamente inclusivo, usado para definir uma subcultura de rapping, break-dancing, criação de graffiti e moda de rua”.
É importante lembrar que antes de Coke La Rock outros artistas já utilizavam formas do que viria a ser conhecido como rapping – Gil Scott-Heron, Anthony “DJ Hollywood” Holloway ou The Last Poets, nos anos 1960 e 1970, são alguns dos principais. E há mesmo quem conteste a “paternidade" de Kool Herc em relação ao hip-hop. A combinação de discos e a edição de canções ao vivo teria sido implementada e aperfeiçoada anos depois da noite-marco na Sedgwick Avenue por um DJ mais jovem, que, aliás, frequentava as festas de Herc: Joseph Saddler, futuramente conhecido como Grandmaster Flash.
Seja como for, o cinquentenário do hip-hop está sendo comemorado em grande estilo, e já há algum tempo, a começar pela última cerimônia de entrega dos prêmios Grammy, em fevereiro, quando um número espetacular, com 15 minutos de duração, reuniu no palco da Cripto.com Arena, em Los Angeles, alguns dos principais representantes do gênero.
Em Nova York, uma nova exposição imersiva, Hip Hop Til Infinity, descrita como "uma mixtape visual” em celebração aos padrinhos e às madrinhas do gênero, foi montada num prédio no sul de Manhattan antes ocupado por um banco, o Hall Des Lumières.
O YouTube preparou playlists que funcionam como uma espécie de cápsulas do tempo do hip-hop, com vídeos estrelados por um elenco de artistas que inclui Dr. Dre, Run-DMC, MC Lyte, Drake e Biggie, mais vídeos apenas de faixas instrumentais para qualquer um soltar seu MC interior, tudo parte do projeto Fifty Deep. Além disso, a plataforma de vídeos realizará no Yankee Stadium, hoje, 11 de agosto, o evento Hip Hop Live, transmitindo, via streaming, um show que reunirá Wiz Khalifa, Snoop Dogg, Lil’ Kim, Trina, Lupe Fiasco, Fat Joe, Common, Nas e vários outros artistas de hip-hop.
A própria prefeitura de Nova York organizou um calendário de festas de rua ligadas ao cinquentenário, a 5X5 Block Party Series, argumentando que “a transformação do hip-hop num fenômeno mundial é prova da criatividade, da inovação e da paixão da cidade de Nova York”. Tudo culminará com uma festa amanhã, sábado, 12 de agosto – num endereço bastante conhecido de quem acompanha o hip-hop desde seu nascimento: o número 1520 da Sedgwick Avenue, no South Bronx.
Playlist ‘50 anos de hip-hop em 50 faixas’
Influências, pioneiros, transformadores e grandes astros que definem o gênero
Arte digital feita a partir de pinturas de indígenas brasileiras. Novo museu homenageia Louis Armstrong. Óperas contra a mudança climática? Deepfakes musicais autorizados, gerados por Inteligência Artificial? E a despedida de William Friedkin, Aracy Balabanian, Robbie Robertson e Aderbal Freire-Filho.
– Um artista turco-americano – Refik Anadol – e duas indígenas brasileiras – as irmãs Yawanawá Nawashahu e Mukashahu – criaram, juntos, uma coleção de arte digital que une elementos de povos originários com dados meteorológicos da Amazônia. Os mil vídeos da coleção – batizada de Winds of Yawanawá – consistem de animações de pinturas feitas pelas irmãs e foram expostos pela primeira vez no In Resonance, evento de design realizado em 13 de julho na ilha grega de Mykonos. Agora, as obras estão sendo comercializadas sob a forma de NFT’s pelo valor mínimo de cerca de 28 mil reais, cada.
– Grande mestre do jazz, o trompetista e cantor Louis Armstrong ganhou novo espaço museal em Nova York. Inaugurado em julho passado, na região de Queens, o Louis Armstrong Center é, na verdade, um anexo do Louis Armstrong House Museum. Mas, ao contrário do prédio original, que preserva a residência do artista, o novo edifício pretende conectar Louis a fãs, historiadores, artista e à comunidade onde viveu com uma mostra permanente de 60 mil objetos que pertenceram ao músico. Dentre eles, 700 fitas e um trompete folheado a ouro. Tudo distribuído por áreas de exposição, educação e um espaço para shows com 75 lugares.
– Óperas contra a mudança climática? A BBC levantou a bola: várias companhias de ópera, espalhadas pelo mundo inteiro, estão determinadas a trabalhar de maneira mais sustentável, implementando estratégias para reduzir suas emissões de carbono e seu impacto, em geral, no planeta. Uma delas, a Royal Opera House, chegou a se desligar de seu patrocinador, a BP, gigante da indústria petrolífera. Outro exemplo foi dado pela Glyndebourne, histórica casa de ópera na região de East Sussex, que construiu uma turbina de vento numa colina próxima a seu prédio, que, em operação de 2012 a 2022, gerou o equivalente a 102% da eletricidade usada pela companhia naquele período. Essa iniciativa está registrada no documentário The Sustainable Power of Glyndenborne.
– A gravadora Universal Music – a maior do mundo – estaria negociando com o Google para lançar deepfakes musicais autorizados, gerados por Inteligência Artificial. O possível acordo vai na direção oposta à reação inicial das gravadoras em relação ao uso de IA, contrárias ao que representaria a utilização de propriedade artística, industrial e intelectual sem remuneração por isso. No entanto, a ideia da parceria é justamente disponibilizar ferramentas para qualquer um, mediante pagamento, ser capaz de criar seus próprios deepfakes ou mesmo material próprio. Exemplo desse tipo de alquimia digital é um áudio que circula no YouTube, no qual um Johnny Cash criado por IA “canta" “Barbie Girl”, mega sucesso do grupo norueguês Aqua, 26 anos atrás.
– Várias perdas, ao longo da semana, para as artes e a cultura. Diretor de clássicos do cinema, como Operação França e O Exorcista, o diretor americano William Friedkin morreu, aos 87 anos, de complicações decorrentes de uma pneumonia. Robbie Robertson, guitarrista e compositor que ajudou a fundar a seminal The Band – que trabalhou com Bob Dylan durante anos – e colaborou com Martin Scorsese na trilha de vários filmes (inclusive o ainda inédito Assassinos da Lua das Flores), morreu, aos 80 anos. Por aqui, Aracy Balabanian, veterana da televisão que conquistou gerações com personagens marcantes (sua Dona Armênia tornou-se uma de suas assinaturas), sucumbiu a um câncer de pulmão, aos 83 anos. Embora tivesse formação dramática, ganhou projeção maior na comédia, como quando passou anos sendo Cassandra, no sitcom “Sai de Baixo”. E o ator e diretor cearense Aderbal Freire-Filho, um dos maiores nomes do teatro brasileiro, morreu, aos 82 anos, no Rio de Janeiro.
PLAYLIST FAROL47
O rock alternativo idiossincrático do australiano Dippers. Girl Ray vira banda de discoteca imaginária. O folk-pop bem harmonizado de Lily & Madeleine. A dance music inteligente de Yann Tiersen. A leitura de funk, soul e Afrobeat feita pela tailandesa Salin. AURORA revisita Nick Drake. Ed Motta recebe um Steely Dan de frente. Sirens of Lesbos convoca Bootsy Collins. O indie rock do veterano Gaadge. E Joe Jackson mostra quem é O Homem.
Dippers – "Tightening the Tangles“ – Vem do primeiro álbum do grupo australiano, de Melbourne, que antes era conhecido como Thigh Master, esta faixa contagiante de rock alternativo idiossincrático, apoiado na forma peculiar de cantar do líder Matthew Helm – e no que soa como uma esquadrilha de guitarras.
Girl Ray – “True Love” – O trio indie londrino resolveu dar uma de Beatles e se transformou num outro personagem para gravar seu terceiro álbum, o recém-lançado Prestige, e fez tudo como se fosse a banda de uma discoteca imaginária, de mentirinha. Pode não ter resultado num Sgt Pepper’s, bem longe disso, mas diverte.
Lily & Madeleine – “Rolling Rock”– O duo feminino americano de folk-pop formado pelas irmãs Lily e Madeleine Jurkiewicz lança em outubro seu quinto álbum, Nite Swim, repleto das harmonias angelicais e bem mescladas que sempre caracterizaram sua música.
Yann Tiersen – “Nielenn” – Utilizando uma paleta variada de instrumentos – de sintetizadores vintage a piano e violino – o bretão Yann combina música e seu interesse pela ligação da raça humana com a natureza e faz o que alguém já descreveu como “dance music inteligente”.
Salin – “Si Chomphu”– Salin é uma baterista e produtora tailandesa e usa instrumentos tradicionais para fazer sua leitura de funk, soul e Afrobeat. Ô, mistura boa. Só que a inspiração para a música é austera: a morte de 46 manifestantes e a prisão de outros mais de três mil num protesto, realizado em 1976, contra o então governante da Tailândia, o ditador Thanom Kittikachorn.
AURORA – "Pink Moon”– Uma das 23 faixas de The Endless Coloured Ways, novo tributo a Nick Drake, morto prematuramente aos 26 anos e um dos artistas britânicos de folk-rock mais influentes de sua geração. Todos os artistas convidados para o projeto receberam a recomendação de simplesmente ignorar as gravações originais para reinventar cada canção à sua moda. A norueguesa AURORA, sensação de alt-pop do TikTok por quem Billie Eilish nutre imensa paixão, escolheu para participar justamente uma das canções mais icônicas de Drake.
Ed Motta – “Slumberland” – Cercado da harpa de Cristina Braga e com direção musical de Michel Limma, o cantor, compositor, instrumentista, arranjador e produtor carioca recebe um Steely Dan de frente em mais uma amostra de seu 14º álbum de estúdio, Behind the tea chronicles, que sai em outubro. A faixa teria sido inspirada pela célebre tira de quadrinhos publicada pelo americano Winsor McCay, entre 1905 e 1911, "Little Nemo in Slumberland".
Sirens of Lesbos/Bootsy Collins – “8 Billion”– Para esta faixa de seu novo álbum, Peace, com lançamento marcado para o final do ano, o coletivo suíço convocou ninguém menos que o eternamente viajandão e super funky Bootzilla para uma diatribe cool sobre o isolamento de "oito bilhões de ilhas”.
Gaadge – “Oh Wonder” – Vem de Pittsburgh, nos Estados Unidos, o indie rock deste quarteto com carreira longa – já somados 10 anos em atividade – e sob grande influência das sonoridades dos anos 1990.
Joe Jackson – “I’m The Man” – Vez por outra, as trilhas dos seriados apresentam uma novidade atraente que merece toda atenção. Ou, então, trazem regravações de músicas antigas que as novas gerações não teriam ouvido quando saíram, mas que são descobertas essenciais. É assim que o Silversun Pickups, quarteto angeleno de indie rock, mostrou ao público da série The Lincoln Lawyer, já em sua segunda temporada na Netflix, a versão que fez de uma das canções que catapultaram o britânico Joe Jackson ao sucesso, em 1979. Só que a regravação fica anos-luz distantes da mordida, da energia, da autenticidade e da urgência do original.
Por coincidência, visitei o museu Fotografiska, em NY, e vi a exposição "Hip-Hop - Conscious, Unconscious" em fevereiro, logo depois da morte de David Jolicoeur. A produção teve a delicadeza de colocar um vaso de flores junto aos registros da banda De La Soul, em frente ao teatro Apollo. Além de fotos de pessoas, lugares e objetos relacionados à cultura hip-hop, antes mesmo de reconhecermos sua importância, a mostra contou com ótimos textos de Sacha Jenkins, completando a experiência.