Choque e extremos: a arte radical e "desconfortável" de Florentina Holzinger
Os espetáculos montados pela diretora e coreógrafa austríaca testam os limites do que seus artistas e a platéia conseguem suportar. E lotam teatros na Europa, nos Estados Unidos e até na China
Freiras nuas fazem manobras de patins em pistas de skate. Uma mulher é “fisgada”com um gancho usado por açougueiros para pendurar suas carnes – e é içada do palco. Outra mulher se masturba com energia, até atingir o clímax, enquanto o resto do elenco – também feminino – cria uma pintura feita de sangue e fezes.
Estes são alguns exemplos de cenas dos espetáculos criados e apresentados pela coreógrafa e diretora austríaca Florentina Holzinger, de 38 anos. Ela é hoje um dos maiores destaques das artes cênicas europeias, graças a um trabalho que mistura audácia sem freios e apetite por elementos chocantes. Seu elenco só de mulheres sabe que passará a maior parte da apresentação sem roupas – senão o tempo inteiro – e que será exigido dele um sacrifício físico extremo.
O trabalho mais recente de Florentina é uma ópera – a primeira de sua carreira: Sancta, a das freiras de patins. Nesta interpretação singular de Sancta Susanna, a ópera de um ato criada pelo compositor expressionista alemão Paul Hindemith, a companhia de Holzinger, junto a cantoras líricas e a uma orquestra, estrela uma história de tentação, celibato e pecado deslanchada quando uma freira arranca o pano que cobre Jesus num enorme crucifixo, despindo-o.
Apresentada originalmente em Viena, a ópera irá circular por Alemanha, Itália, Bélgica, Noruega, Suécia, Estados Unidos e até China, o que atesta o interesse por Florentina mundo afora. No entanto, há quem duvide dos talentos dramáticos de Holzinger e enxergue no trabalho dela apenas “uma cornucópia de acrobacias com o objetivo de se tornar o assunto da cidade”, como decretou certa vez o semanário Die Zeit, de Hamburgo.
“Florentina deixa todo mundo desconfortável e tornou-se uma estrela da dança e da performance na Europa testando os limites do que seus artistas e a platéia são capazes de suportar”, descreveu o The New York Times quando Holzinger estava para estrear em Berlim Ophelia’s Got Talent, em 2022, um espetáculo que girava em torno de mitos e narrativas envolvendo Hamlet, mulheres e água – sereias, inclusive. Outra montagem de Florentina, A Divine Comedy, levava aos palcos helicópteros, dos quais as artistas eram penduradas pelos dentes. Há um momento de Sancta onde uma das artistas é transformada no badalo humano de um enorme sino.
Numa entrevista para o site da Art Basel, a importante feira de arte, às vésperas de se apresentar em Viena, maio passado, a diretora explicou que “é bom sacudir as pessoas um pouco. A nudez é uma constante. Mas para mim a nudez não é o importante, o que interessa (no caso de Sancta) é a repressão sexual na igreja, um espaço sagrado onde estamos cercados de corpos nus. Para muitos artistas da Renascença a religião era um álibi para fazer pinturas eróticas. Artistas como Michelangelo queriam pintar sacanagens e eram pagos pelo Papa para fazê-lo”.
Há, ainda, o aspecto prático de trabalhar com um elenco sem roupas e um palco praticamente nu o tempo inteiro. “Até mesmo o nosso set tem que ser essencialmente funcional e permitir que os corpos no palco façam algo específico. A moda me entedia e a decoração ocupa espaço", argumenta Holzinger.
Além disso, “considero libertador mostrar o corpo em ação e não apenas como algo privado ou sexualizado”, ela pondera. “Conosco, o corpo também é muitas vezes mecânico, e quanto mais estrutura você vê, mais direto ele é como meio. Além disso, o dançarino há muito é considerado ‘o melhor’, aquele que oferece a melhor superfície de projeção erótica, a maior atratividade sexual, de acordo com os padrões”.
Mas quanto aos elementos de choque de seu trabalho? Qual seria sua função? “Queremos seduzir nosso público de forma que ele pense”, Holzinger conclui. “O entretenimento é uma maneira extremamente boa de estimular os cérebros das pessoas.”
Finalmente, Barcelona abraça Dom Quixote De La Mancha. Festival de Glastonbury ganha aplicativo. Os jornais anunciaram: "Bowie vai cantar em Glasto!". Mas era mentira. Só que ele cantou. E uma casa de leilões para os fãs de rock.
– Barcelona acolheu Dom Quixote de La Mancha durante o verão de 1610 e é a única cidade a figurar no romance escrito por Miguel de Cervantes. No entanto, a capital catalã não tem enfatizado seu vínculo com o autor e tampouco com sua criação famosa. Mas isto vai mudar. No final de julho, os diretores dos diferentes Institutos Cervantes do mundo anunciarão ter escolhido Barcelona para realizar a reunião anual da Rede Cervantina de municípios na Espanha. Assim, o grupo passa a ser integrado por 33 cidades, ao todo. Há anos especialistas e acadêmicos se mobilizam para que Barcelona tenha o papel merecido dentro do imaginário de Cervantes. “Poderia ser dado mais cuidado à passagem de Cervantes e Dom Quixote pela cidade”, reclama Guillermo Serés, professor de Literatura Espanhola da Universidade Autônoma de Barcelona (UAB) e membro correspondente da Real Academia Espanhola (RAE). Afinal, Cervantes morou ali e o próprio Dom Quixote se refere a ela no livro como “abrigo para estrangeiros, hospital para os pobres, pátria dos valentes, vingança para os ofendidos e correspondência agradável de amizades firmes, e única em localização e beleza”.
– O Festival de Glastonbury, na Inglaterra, tem agora um aplicativo para chamar de seu. Veteraníssimo do formato de música pop e rock apresentados ao ar livre, num ambiente rural, Glasto chega a sua 54ª edição – de 26 a 30 de junho – disponibilizando uma versão nova de app que permite a criação de playlists no Spotify, mapas para ajudar a encontrar palcos, o lugar onde o carro ficou estacionado e a localização da tenda para dormir, mais informações sobre os artigos que podem ser comprados no terreno, de comida a roupas.
– E por falar em Glastonbury, vieram à tona só agora os bastidores da apresentação de David Bowie naquele festival, em 2000. O artista não tinha interesse algum em participar do evento, mas Alan Edwards, seu divulgador, achava que aparecer num palco tão prestigioso seria importante para Bowie, chamuscado pela maré baixa de sua carreira naquele período. A organização do festival tampouco queria que David participasse. Temia que ele fizesse um set “difícil”, algo parecido com o repertório do projeto Tin Machine, uma das fases mais “exigentes” da carreira do artista. Com isso em mente, Alan soltou um “balão de ensaio”. Plantou na imprensa a notícia (falsa) de que David “poderia” fazer parte do lineup de Glastonbury em 2000. Aquilo gerou tanto debate e tanta especulação que no dia seguinte a produção confirmou que, sim, Bowie se apresentaria em Glastonbury. David ficou uma fera com Alan, mas, ao mesmo tempo, grato. Sua ida a Glasto acabou sendo um triunfo: para ele e para o festival.
– Fervilha no Brasil uma crise entre as livrarias e as editoras. Tudo porque os sites e as redes sociais das editoras vendem seu produto com descontos que acabam atraindo os clientes que normalmente comprariam livros em lojas. A situação é tal que a Associação Nacional de Livrarias pressiona as editoras diretamente. Seu presidente, Alexandre Martins Fontes, fez um discurso na semana passada, durante o Encontro de Editores, Livreiros, Distribuidores e Gráficos, dizendo que “as editoras estão oferecendo descontos que, se os livreiros oferecerem, fecham as portas”.
– A ANALOGr é uma casa de leilões que fala direto com o coração dos fãs de rock. Localizada em Glendale, na Grande Los Angeles, ela oferece itens que vão da bateria usada pelo Radiohead na gravação do álbum OK Computer, em 1997, a uma das motos Harley Davidson da coleção de Elvis Presley, mais várias das guitarras de Eddie Van Halen e microfones que pertenceram ao kit de equipamentos do Nirvana e de Stevie Wonder. Agora, pretende leiloar um lote relacionado ao Grateful Dead, um dos grupos mais emblemáticos do rock americano. Dentre os itens, uma maquete do equipamento de som gigantesco criado especialmente para os shows do GD, descrito como a Parede de Som.
PLAYLIST FAROL 87
As meninas do Fanny regravam Beatles. A nova do MC5. A volta dos Estranhos Românticos. Mk.gee passeia por sonoridades anos 1980. Michael Berkeley + Neil Tennant + David Gilmour. O blues seminal de Skip James. Ronnie Wood regrava Stones. Nick Lowe faz as pazes com o rock. Rita Lee inédita. E o adeus a Françoise Hardy.
Fanny – “Hey Bulldog”– A compreensão do rock americano dos anos 1970 precisa sempre incluir este quarteto feminino californiano, que brilhou num terreno predominantemente masculino. Lançou álbuns produzidos por craques como Todd Rundgren e Geoff Emerick (engenheiro que havia feito o som dos discos dos Beatles) e abriu caminho para gente como The Runaways e The Bangles com seu rock de apelo pop mas cheio da marra devida. Agora elas podem ser apreciadas de novo com gravações de época, feitas para o programa alemão de TV Beat-Club, entre 1971 e 1972. Demonstração do espírito destemido do grupo, aqui as meninas apresentam sua versão de uma faixa “profunda” de John, Paul, George e Ringo, safra 1968.
MC5 – “Boys Who Play With Matches”– Wayne Kramer, guitarrista da formação original do legendário grupo de Detroit, tinha acabado de gravar Heavy Lifting, um álbum novo (e o primeiro desde 1971), produzido por Bob Ezrin, para mostrar como seria o som do MC5 hoje, com participações de Don Was (no baixo), Tom Morello, Slash e Vernon Reid (nas guitarras), e Abe Laboriel (da banda de Sir Paul). Mas sucumbiu a um câncer de pâncreas, em fevereiro passado, antes que o disco saísse. A primeira amostra está aqui: pesada, desafiadora, apoiada em guitarras cortantes.
Estranhos Românticos – “Doce” – Agora contando com dois novos integrantes – o guitarrista e produtor JR Tostoi e o vocalista alagoano Victor Barros –, o quinteto carioca volta à ativa com guitarras distorcidas a granel, teclados estilo anos 1960, e, claro, romantismo incontido.
Mk.gee – “I Want” – Com um senhor quê de The Blue Line, o cantor-compositor-guitarrista (elogiado por Eric Clapton) é de Nova Jersey e faz em seu álbum de estreia, Two Star & The Dream Police, um passeio por sonoridades anos 1980.
Michael Berkeley – “Zero Hour: Zero Hour”– Dois luminares do mundo pop – o Pet Shop Boy Neil Tennant e David Gilmour – colaboram com letras, vocais e solos de guitarra neste single de Berkeley – compositor clássico que também é membro do parlamento do Reino Unido – , inspirado no conflito ucraniano.
Skip James – “I’m So Glad” – Um dos mestres do blues, Skip tinha uma voz doce e um estilo próprio de dedilhar o violão, introduzindo as músicas com um tema-preâmbulo. Fez escola. Dentre seus pupilos mais aplicados está Eric Clapton (aparecendo pela segunda vez aqui no playlist!), que, com seu Cream, regravou esta canção, lançada originalmente em 1931. Esta versão dos anos 1960, remasterizada, soa cristalina.
Ronnie Wood – “Black Limousine” – Gravado ao vivo no legendário estúdio Electric Ladyland, erguido em Nova York por ninguém menos que Jimi Hendrix, este registro de Woody + amigos (uma tropa que inclui Ian McLagan, do Faces, e Bernard Fowler, voz de apoio dos Stones) traz pérolas como a energética regravação de uma das faixas do álbum Tattoo You, de 1981.
Nick Lowe – “Went To A Party”- O rei do power-pop sagaz está de volta, deixando um pouco de lado a persona de “artista maduro” para se cercar mais uma vez do grupo Los Straitjackets e de novo fazer rock em seu primeiro álbum de inéditas em mais de 12 anos, Indoor Safari.
Rita Lee – “Voando (Nei Blu Dipinto Di Blu”– Começa a ser disponibilizado o material inédito deixado por Rita. Aqui, uma versão, creditada a ela e a Roberto de Carvalho, de um clássico do pop italiano, aclimatado para o Brasil numa cativante levada neo-bossa.
Françoise Hardy – “Tous les garçons et les filles”– A cantora francesa se lançou com este single, em 1962. Graças a ele tornou-se um enorme sucesso pop, com vendas de quatro milhões de discos – e virou um ícone da música jovem europeia e da moda de sua época. Fez filmes e esteve no Brasil para shows no Rio e em São Paulo e, depois, para participar do III Festival Internacional da Canção. Manteve vivo o interesse pela música daqui, ao gravar “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque, e ao chamar a cantora e violonista paulista Tuca para colaborar em um de seus álbuns, o popularíssimo La Question, de 1971, bem sofisticado e o favorito da artista, encerrado com uma versão de “A Transa", de Taiguara, transformada em “Rêve”. Françoise morreu esta semana, aos 80 anos.