'Cenas perdidas' de 'E o Vento Levou' revelam guerra nos bastidores pela forma como falaria das atrocidades da escravidão
Artigo de historiador americano traz à tona a queda de braço travada entre roteiristas e o produtor pela alma do filme que acabaria ganhando de 10 prêmios Oscar
Um dos mais celebrados clássicos do cinema, E o Vento Levou ganhou 10 Oscars em 1940, inclusive o de Melhor Filme, pela maneira épica e espetacular como retratou as consequências da Guerra Civil americana através da saga de uma mulher rica e mimada do sul do país – Scarlett O’Hara (interpretada por Vivien Leigh) –, cujo império de cultivo de algodão é destruído em meio aos combates, enquanto ela se envolve com um playboy, Rhett Butler (Clark Gable), que pode ser sua saída da repentina pobreza.
Embora o filme seja lembrado como uma história de coragem e resiliência, por outro lado ele traz em si uma série de questões profundas e controversas sobre racismo e escravidão – que refletem a época em que Margaret Mitchell escreveu o também premiado livro no qual a produção se baseia –, que até hoje ele carrega junto com seu legado artístico.
A ponto de dois anos atrás a HBO retirar o filme de seu catálogo para só voltar a exibi-lo precedido de um mini-especial discutindo seu contexto histórico.
Com esse objetivo, Jacqueline Stewart, então professora de estudos cinematográficos da Universidade de Chicago e hoje diretora e presidente do Museu da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, apresentou um vídeo explicando que, embora E o Vento Levou "mostrasse uma imagem romântica e idílica do sul dos Estados Unidos pré-Guerra Civil “, o filme também mostrava a plantação de algodão como um “mundo de graça e beleza, sem reconhecer as brutalidades do sistema de escravidão no qual se baseava”, apesar de “falar diretamente sobre as desigualdades raciais que persistem na mídia e na sociedade hoje”.
Mesmo reconhecendo "o inegável significado cultural do filme", Stewart ressaltava "as ofensas e os estereótipos" perpetuados por ele ao longo de oito décadas.
No entanto, hoje se sabe que o filme poderia ter sido muito mais ofensivo e estereotipado, caso tivessem outro desenlace os embates travados pelo produtor David O. Selznick com a mais de dezena de roteiristas que empregou para dar forma final à história contada no longa.
Uma versão do roteiro – com 301 páginas – comprada três anos atrás em leilão pelo pesquisador americano David Kimel, por 15 mil dólares, revela uma série de “cenas perdidas” que, caso fossem incluídas na versão final do filme, alterariam radicalmente sua visão do mundo que apresentava, especialmente no que diz respeito à escravidão e a relações raciais.
Conforme revelou Kimel no longo e informativo texto escrito para a newsletter The Ankler, algumas das cenas contidas no que ele batizou de Roteiro Arco-Íris (por ser composto de páginas de diferentes cores, representando as inúmeras revisões por que passou), chegaram até a ser filmadas – visto que existem fotos tiradas no set comprovando isso – e possivelmente teriam feito parte do copião projetado de surpresa, em setembro de 1939, para o público que havia comprado ingressos para ver outros filmes anunciados para aquele dia no Fox Theatre, em Riverside, na Califórnia. Sem aviso prévio, estavam participando de uma exibição-teste de E o Vento Levou. E sua reação pode muito bem ter influenciado o resultado final.
Nas cenas escritas mas cortadas – as assim-chamadas Cenas Perdidas – chama a atenção a forma como são apresentados os horrores da escravidão e do racismo, bem mais enfatizados nessa versão antiga do roteiro. Um dos muitos roteiristas contratados, por exemplo, deu a um personagem negro um nome inspirado no termo derrogatório criado pela autora do livro. Nasce, assim, o Negro Gorila, “atarracado e quadrado, com ombros e peito parecidos com os de um gorila”.
Selznick esperava poder utilizar livremente, ao longo do filme, a expressão “nigger" – o equivalente a crioulo, em português, e igualmente ofensiva. Ela seria usada pelos “negros melhores” dentre os personagens. Chegou até a consultar “líderes negros” sobre a questão e ouviu de seu assistente a resposta de que “crioulos não gostam de ser chamados de crioulos”.
No decorrer da pré-produção, enquanto trocava de roteiristas como quem muda de meias, Selznick se via em meio a uma queda de braço travada entre os Realistas, que preferiam escrever cenas que retratassem com fidelidade a brutalidade da escravidão – para condená-la – e os Românticos, aqueles que optavam por uma visão romantizada da época, amenizando as mesmas questões. Houve um momento, inclusive, em que surgiam na história encapuzados representantes da Ku Klux Klan.
A personagem do filme que mais viria a sofrer nas cenas cortadas era a empregada Prissy, vivida pela atriz Butterfly McQueen. Numa delas, escrita por Sidney Howard (que acabaria recebendo crédito total sobre o roteiro), Scarlett chega a erguer um chicote ao ameaçá-la: “Levante, sua idiota, antes que eu use isso em você”.
Outras cenas cortadas referem-se a aspectos outros, até criavam momentos cômicos – como numa cena, onde Scarlett arrotava. Em outros, criavam subtextos fortes e sombrios: Rhett contracenando com uma arma, num clima claramente suicida.
Riquíssimo em inúmeros outros detalhes e fartamente ilustrado com reproduções de páginas do Roteiro Arco-Íris, o artigo de David Kimel para The Ankler é leitura obrigatória para todos que apreciam a história do cinema e sublinha ironias que possivelmente poucos conhecem.
Com 10 anos de idade, Martin Luther King Jr. cantou junto com o coro de sua igreja – a Ebenezer Baptist Church – na festa de premiere do filme em Atlanta, em dezembro de 1939. E o pequeno menino estava cantando vestido como um dos escravos do filme.
Chris Rock revida. A Royal Academy de Londres recruta violonistas brasileiros. Os livros de James Bond são reeditados sem termos racistas. O Centro Pompidou adquire coleção de NFTs. Belchior ganha documentário.
E mais …
– Amanhã, sábado (4/3), uma semana antes da cerimônia de entrega dos Oscars, Chris Rock falará pela primeira vez sobre a agressão sofrida ano passado, quando Will Smith subiu ao palco do Dolby Theatre e estapeou o comediante, que apresentava a cerimônia. A ‘réplica” será dada sob a forma de Selective Outrage, um especial de standup com duas horas de duração que a Netflix transmitirá ao vivo, direto do Hippodrome Theatre, em Baltimore, com participações (pré-gravadas) de gente como Amy Schumer, Cedric the Entertainer, Ice-T, Jerry Seinfeld, Kevin Hart, Paul McCartney, Sarah Silverman e Wanda Sykes. Desde o ano passado, Rock vinha desenvolvendo material para o show com base no incidente violento de 2022, contando piadas relativas ao caso no decorrer de uma longa turnê pelos Estados Unidos, e agora, finalmente, soltará o verbo. Antes da apresentação de Chris haverá uma espécie de “esquenta", o Show Before The Show, transmitido também ao vivo, mas da Comedy Store, em Los Angeles,
– A Royal Academy – instituição britânica de excelência no ensino de música, fundada em 1822 – veio recrutar talentos brasileiros do violão. Dois dos grandes violonistas brasileiros da atualidade passaram por lá: Fábio Zanon e Plinio Fernandes. Pela primeira vez, a escola montou audições na Escola de Música do Estado de São Paulo, a EMESP, realizadas na segunda-feira passada.
– Os livros de James Bond estão sendo reeditados e serão relançados, a partir de abril, sem expressões consideradas preconceituosas e racistas. A medida coincide com a edição comemorativa dos 70 anos da publicação de Casino Royale, de 1953, o primeiro da série protagonizada pelo agente secreto criado pelo autor Ian Fleming. Segundo o diário inglês The Telegraph, a maioria das alterações se refere à representação de personagens negros.
– O Centre Pompidou, em Paris, adquiriu uma coleção de NFTS e, abriu, assim, uma discussão sobre o mérito artístico e comercial dos tokens digitais não fungíveis. Ao todo, entraram para o acervo do centro 18 projetos de 13 artistas franceses e internacionais. Argumenta-se que a bolha especulativa de tais “colecionáveis”, semelhante ao ocorrido com as cartas Pokémon para crianças, nos anos 1990, terá estourado rapidamente. Marcella Lista, curadora do Pompidou, contra-argumenta: “A nova coleção de mídia foi pensada como uma coleção voltada para o futuro desde o início”.
Ela aponta iniciativas semelhantes, como a criação da Resenha Virtual, nos anos 1990, que era apenas em CD-Rom, ou a encomenda da instalação de vídeo e computador Zapping Zone, de Chris Marker, em 1989.
– Apenas Um Coração Selvagem, documentário sobre a vida e a obra de Belchior, está disponível no Curta!. Dirigido por Camilo Cavalcanti e Natália Dias, o filme estreou no festival É Tudo Verdade do ano passado e mostra a trajetória do cantor e compositor nordestino desde a infância. Assista aqui ao trailer.
PLAYLIST FAROL 26
A mescla energética do Fishbone está de volta. Stevie Nicks dueta com Damon Albarn. O bombom sonoro de Steady Holiday. MPB pop franco-carioca com pinta de vintage. A nova do veterano “músico dos músicos” britânicos. O indie pop parrudo de Hannah Jadagu. A mini-ópera do sul-africano Desire Marea. Drugdealer soa como Crosby, Stills & Nash. O disco solo do baterista do Radiohead. E a despedida de Wayne Shorter.
Fishbone – “All We Have is Now”– Estimadíssimos veteranos, pela mescla energética de ska, funk, punk e metal que caracterizou sua trajetória desde 1979, o agora sexteto (saíram dois integrantes) de Los Angeles volta à ativa, estimulado por Fat Mike, do grupo punk NOFX, também da Califórnia.
Gorillaz – “Oil”– Stevie Nicks, do Fleetwood Mac, empresta sua voz inconfundível a esta faixa do oitavo álbum do grupo virtual liderado por Damon Albarn, Cracker Island.
Steady Holiday– “The Balance” – Projeto da angelena Dre Babinski, o SH chega a seu quarto álbum, Newfound Oxygen, antecipado por um irresistível bombom sonoro de alt pop.
João Selva – “Passarinho” – O novo single do carioca João, baseado em Lyon, produzido pelo francês Bruno Patchworks, soa vintage, como se tivesse sido gravado em 1967/68, no Rio de Janeiro, e usa a imagem de pássaros engaiolados para cantar sobre a liberdade.
Andy Fairweather Low – “Got Me a Party” – Cantor e guitarrista galês, em seus 74 anos de vida Andy atingiu o topo da fama pop bem cedo, à frente da banda Amen Corner, mas foi como guitarrista acompanhante que construiu sua carreira, tocando em disco ou em palco com Bob Dylan, George Harrison, Eric Clapton (durante 30 anos), Roger Waters (por 23 anos) e diferentes integrantes do Rolling Stones. Considerado o músico dos músicos, Andy lançou agora seu novo álbum solo, Flang Dang, onde canta e toca todos os instrumentos, exceto a bateria, sempre com vigor de garoto.
Hannah Jadagu – “What You Did” – Texana baseada em Nova York, Hannah faz um indie pop parrudo num single que precede seu primeiro álbum, Aperture, que sai em maio.
Desire Marea – “Be Free” – Artista sul-africano de música eletrônica, Desire criou um canção que soa como uma mini-ópera, com diferentes movimentos, recheada de guitarradas, para enfocar o preconceito contra o amor gay em sua terra-natal.
Drugdealer – “Pictures of You”– Com uma sonoridade seventies que imediatamente lembra "Just A Song Before I Go", de Crosby, Stills & Nash, o projeto de Michael Collins, aqui auxiliado pela voz folk pop de Kate Bollinger, não poderia soar mais californiano.
Philip Selway – “Check For Signs Of Life” – Baterista do Radiohead, Philip lança seu terceiro álbum solo, Strange Dance, rico em texturas e climas.
Weather Report – “Birdland”– O jazz moderno perdeu nesta quarta-feira, 2/3, um gigante: o saxofonista e compositor Wayne Shorter, cuja carreira de mais de meio século incluiu passagens pelas bandas de Art Blakley e Miles Davis e colaborações com artistas como Milton Nascimento, Herbie Hancock, Joni Mitchell e Steely Dan. Autor de músicas que se tornariam clássicos do jazz, como “Blue Nile”, Wayne também liderou seus próprios grupos, dentre os quais se destaca o pioneiro Weather Report, fundado como o tecladista austríaco Josej Zawinul, uma das locomotivas do movimento fusion.