Celebrações e indagações nos 80 anos de Jimi Hendrix
A música do guitarrista redefiniu o uso de seu instrumento e ajudou a revolucionar o pop e o rock. Mas o que viria depois, se continuasse vivo?
“Jovino devia ter uns 14 anos quando entrou numa cabine da seção de discos da filial Cinelândia da Mesbla – rede de lojas de departamentos famosa nas décadas de 1960 e 1970 – para escutar o LP que pretendia comprar. Naquele tempo o cliente podia 'testar' o produto, por assim dizer, antes de decidir se o levava para casa ou não.
A vendedora, zelosa, suspeitando que aquele jovem cabeludo tinha intenções de dar-lhe um calote, afanando o disco ao primeiro descuido, ficou de olhos vivos e orelhas em pé, colada nele. Por isso, acudiu logo, no segundo em que Jovino pousou a agulha no início do álbum. 'Ei! Está defeituoso', ela decretou, ao ouvir sair da cabine uma sinfonia de microfonias variadas, fraseados de guitarra em velocidade alterada artificialmente e vagidos eletrônicos lancinantes. 'Espera aí que vou trocar’.
A vendedora voltou com outro exemplar de Electric Ladyland. Jovino pôs o disco para tocar e os mesmos sons, é lógico, se repetiram.
Antes que a mulher chamasse o gerente da loja para reclamar da má qualidade dos discos que o fabricante havia entregue, Jovino sorriu e a acalmou: ‘Pode deixar, é assim mesmo. Vou levar o disco’.
A vendedora não entendeu lhufas. Mal sabia que acabara de ter sido apresentada a Jimi Hendrix”.
Esse caso verdadeiro abriu um texto meu para a edição nº 59 da revista Bizz, de junho de 1990, como parte da comemoração dos 30 anos desde que o ex-paraquedista de Seattle começou a jornada que revolucionaria o uso da guitarra, a música pop e o rock.
E hoje, três décadas mais tarde, estamos celebrando os 80 anos de nascimento de Hendrix. Não poderia ser diferente: ele redefiniu o uso de seu instrumento e ajudou a revolucionar o pop e o rock. Tudo isso num brevíssimo espaço de tempo.
De carreira meteórica, ultra-concentrada e curtíssima, Jimi construiu uma discografia e um histórico de shows – muitos deles registrados em áudio, somente, ou também em vídeo, ou filme – monumentais, dentro de apenas quatro anos.
De 1967 a 1970, quando morreu, Jimi lançou meros três álbuns de estúdio e um disco ao vivo. E foram, basicamente, esses os sons sobre os quais se criou a reputação de Hendrix: o experimentalismo no estúdio que adicionava à guitarra possibilidades até então impensadas, o psicodelismo elevado à enésima potência, o veneno em riffs eletrizantes turbinados por distorções cheias de marra, o blues elétrico profundo.
E estamos falando aqui somente do Jimi guitarrista, o que nem de longe é pouco. Também nesses discos conheceu-se a capacidade e a versatilidade de Hendrix como compositor – capaz de ir do blues rasgado de “Voodoo Chile (A Slight Return)” ao rock cósmico de “Burning Of The Midnight Lamp” e ao lirismo de “Little Wing” e "Bold As Love”.
No palco, enquanto isso, ele era capaz de ser o showman absoluto, exibido e carismático, com alegria e tesão, disposto a tocar a guitarra com os dentes e a atear fogo a seu instrumento. Embora a genialidade e o sentimento de alguns de seus melhores solos em shows tenham vindo de momentos em que ele estava tocando parado, concentrado. Quer um exemplo? “Machine Gun”, faixa do ao vivo Band of Gypsys, gravado na passagem de ano de 1969 para 1970. É absolutamente extasiante.
“(Jimi) sempre nos levava em uma viagem a partes desconhecidas do universo”, descreveu Steve Hackett, ex-guitarrista do Genesis, à revista Classic Rock. "A forma dele tocar extrapola os limites da experiência terrestre”.
A quantidade de material que Jimi deixou inacabado em incontáveis fitas de áudio onde preparava novas músicas ou mesmo apenas improvisava – ele costumava gravar tudo que fazia no estúdio – serviu de base para a conclusão de projetos em andamento quando ele morreu (com The Cry of Love, lançado em 1971, sendo, disparado, o melhor acabado de todos), e para numerosos pacotes de raridades, muitas delas de qualidade e valor duvidosos.
Além disso, até hoje shows antigos não param de ser resgatados e editados na íntegra, caso do recém-lançado Live At The Los Angeles Forum, gravado quatro meses antes da apresentação icônica de Jimi no Festival de Woodstock.
Tudo isso enche os olhos e ouvidos de fãs de primeira hora, mas ajuda a manter Jimi Hendrix vivo como marca, também, apresentando-o a novas gerações, quase intocadas pela obra de um artista morto mais de meio século atrás.
Daí a forma como foi montada no Museum of History and Industry, em Seattle, a exposição The Jimi Hendrix 80th Birthday Experience, criada para comemorar, ao longo deste fim-de-semana, o aniversário-marco do artista, nascido em 27 de novembro de 1942.
As atividades incluem desde a exibição do filme Music, Money, Madness…Jimi Hendrix in Maui, documentário sobre a montagem caótica de um show na ilha havaiana, em 1970 – que antes havia gerado Rainbow Bridge, disco e filme místico/maluquete (feito à revelia do artista, que só soube do que estava acontecendo quando chegou lá) –; uma mostra de roupas de palco usadas por Hendrix; a audição, em vinil, dos discos do artista; uma sessão de perguntas e respostas com Janie Hendrix, irmã mais nova de Jimi e atual gestora de seu acervo; e uma oficina de wah-wah, onde qualquer um pode aprender a utilizar um pedal de efeito semelhante ao usado pelo guitarrista.
O legado de Hendrix é potente e existe para ser apreciado em sons e imagens, mas fica sempre o travo de um futuro interrompido. O que teria acontecido com ele, como músico e compositor, caso continuasse vivo?
Quando morreu, Jimi estava anos-luz à frente – em termos de tecnologia (o estúdio que construiu em Nova York, o Electric Lady, era um dos melhores do mundo e é um favorito ainda hoje), em termos de técnica e musicalidade, em termos de composição (algumas das músicas de The Cry of Love, como "Ezy Rider" e "Angel", não perdem para o melhor do repertório de Hendrix). Vinha enfatizando sua herança negra, cercando-se de músicos negros e compondo e gravando músicas que ecoavam sua experiência de juventude, quando acompanhava gente como Little Richard, Curtis Knight, Isley Brothers e Wilson Pickett.
No que resultaria toda essa movimentação? Como soaria hoje, com mais 50 anos de estrada e aprendizado nas costas? O que estaria fazendo e com quem?
Imagine Jimi se nutrindo, década após década, das novas tecnologias e da garotada que veio depois dele e que o inspiraria – e desafiaria – com rap, hip hop, jazz, EDM, ambient, música do mundo inteiro. Pense nas possibilidades.
"Ele continuaria sendo um instrumentista extraordinário e teria se mantido incrivelmente inventivo”, acredita o baterista Mick Fleetwood, um dos fundadores do Fleetwood Mac e contemporâneo de Hendrix. "Ele era um alquimista”.
José Emilio Rondeau
Jimi X 40
Showman, lírico, no veneno, com a alma, de tirar o fôlego
E mais …
Um museu dedicado às fezes. A FLIP de volta ao mundo físico. A aposentadoria iminente de Gary Oldman. As “histórias que você não sabia que precisava ouvir”. Neil Young fala. As imagens criadas por Inteligência Artificial são arte? E o rock perde o guitarrista Wilko Johnson.
– Aberto em Tóquio, no Japão, o Museu do Cocô é exatamente o que você pode imaginar: um espaço de memória dedicado às fezes. Lá, o visitante pode olhar, fotografar, tocar e brincar com diferentes representações de excremento, todas coloridas (fúcsia, amarelo limão, rosa), alegres. “Meu objetivo era fazer como que o cocô deixasse se ser assunto tabu entre os jovens”, explicou ao diário espanhol El País Masaru Kobayashi, criador do museu, que segue os preceitos da estética kawaii, segundo a qual "o terno e sincero harmoniza sem problemas com o grotesco ou brega”. Um aviso na entrada do museu explica que “no topo da mundialmente famosa cultura kawaii está o cocô, matéria quebradiça que desaparece pelo ralo logo após ser trazida a este mundo".
– A 20ª Festa Literária Internacional de Paraty – a FLIP – começou na quarta-feira, 23/11, e vai até domingo, 27. Em sua vigésima edição, o evento retorna às ruas e praças do Centro Histórico, após dois anos em ambiente virtual, e homenageia a escritora e educadora maranhense Maria Firmina dos Reis, pioneira na literatura antiescravista no Brasil.
– Gary Oldman vai se aposentar das telas e dos palcos. O que aconteceria após a conclusão das filmagens da terceira temporada de Slow Horses, a sensacional série de espionagem que ele estrela na Apple +. Pelo menos é o que ele disse ao diário britânico The Times. "Ficaria muito feliz e honrado em me despedir com o papel de Jackson Lamb (seu personagem na série) e pendurar as chuteiras”, disse ao jornal o astro de tal e tal. “Vou fazer 65 anos e os 70 já estão logo ali. Não quero estar na ativa quando chegar aos. 80“. O que ele faria depois de quatro décadas representando? Ele apontou para "outros interesses”, que teria deixado de lado em nome do trabalho, mas não foi específico.
– A Rádio Novelo, disponibilizada pelo Instituto Moreira Salles sob a forma de podcasts semanais, se propõe a apresentar “histórias que você não sabia que precisava ouvir”. Toda quinta-feira é lançado um episódio inédito, com "reportagens bem apuradas e uma narrativa imersiva”, apresentado por Branca Vianna, presidente da mesma produtora que realizou Praia dos Ossos, série de podcasts sobre o feminicídio da socialite Ângela Diniz, em 1976. É uma espécie de “revista sonora” composta por "reportagens de impacto para ouvintes que querem se entreter, se informar e compreender o mundo a partir de histórias de interesse público”, explica.
– Neil Young deu longa entrevista ao diário The Los Angeles Times para falar de seu 42º álbum, World Record, produzido por Rick Rubin e gravado com sua banda de fé, Crazy Horse – e sobre os 50 anos de Harvest, clássico de sua discografia que está recebendo tratamento super deluxe em seu relançamento comemorativo e é objeto de um novo documentário, Harvest Time. Aos 77 anos, Neil mantém intacto o espírito combativo – vide seu embate com o Spotify, por causa da desinformação disseminada pelos podcasts um comentarista hospedados serviço de streaming – e a ética hippie. Afinal, o novo álbum fala, em boa parte, da necessidade se proteger o meio ambiente da destruição.
– Cada vez mais é popularizada a criação de imagens através do uso de Inteligência Artificial. Mas é um tipo de trabalho que pode ser considerado arte? É o que quis saber a CNN. Segundo a galeria bitforms, de São Francisco, pode, sim. Tanto que abriu uma mostra – Artificial Imagination, em cartaz até o final de dezembro – com obras feitas por sistemas de IA.
– O rock perdeu Wilko Johnson, guitarrista do Dr. Feelgood – banda britânica, famosa no circuito de pubs da década de 1970 e influente nos anos formativos do punk – e ator bissexto, visto no Brasil em Game of Thrones, como o carrasco mudo Ser Ilyn Payne. Conhecido por seu estilo peculiar de tocar – usando os dedos, em vez de palhetas –, Wilko recebeu em 2013 um diagnóstico de câncer pancreático terminal, mas abriu mão de tratamento quimioterápico e continuou trabalhando, chegando a gravar um álbum com Roger Daltrey, vocalista do The Who, o excelente Going Back Home. Wilko morreu nesta segunda-feira, aos 75 anos.
Lado Z – Nas trincheiras do jornalismo musical, mundo afora, com José Emilio Rondeau
Conversando sobre Jimi com Janie, irmã mais nova dele, em Seattle
Janie Hendrix, uma mulata de pele clara que aparenta ser mais jovem do que é, ri gostoso quando conto a ela sobre as agruras de meu amigo Jovino com a balconista da Mesbla, para quem Electric Ladyland, segundo álbum do irmão mais velho de Janie – Jimi – soava defeituoso.
O caso faz todo sentido do mundo para ela e Janie recorda as anotações que Hendrix fez nas caixas contendo as fitas-mestras daquele mesmo disco: "A quem interessar possa”, escreveu Jimi. “Favor não ajustar. O som é esse mesmo”.
É 1997 e estamos no escritório da Experience Hendrix, a firma encabeçada por Janie para gerir o espólio artístico de Jimi. E o assunto de nossa conversa é justamente o que aconteceria dali por diante com tudo relativo ao artista.
Findo um longo litígio com o produtor Alan Douglas, pela primeira vez em 25 anos a família Hendrix havia adquirido o controle absoluto sobre a obra do artista, incluindo todos os direitos de edição musical, uso de imagem e merchandising.
A ocasião seria marcada pela reedição dos três primeiros LPs de Jimi, em vinil de alta qualidade, com libretos assinados pelo pesquisador John McDermott, mais a exibição na VH1 do documentário The Making of Electric Ladyland, a criação de um site e o lançamento de The First Ray of The New Rising Sun, o disco em que Hendrix estava trabalhando quando morreu, em 1970, cujas faixas já haviam aparecido antes, em álbuns como The Cry of Love, de 1971.
"Jimi era o único músico de seu tempo a ter seu próprio estúdio. O que era extremamente vantajoso”, explica Janie, quando falamos sobre a fartura de material inédito de Hendrix ainda existente. "Ele podia gravar quando e durante quanto tempo quisesse. Ficava no estúdio até 15 horas sem parar, sozinho ou com quem quer que aparecesse. Era onde podia extravasar. E gravava tudo. Tudo!”.
Janie só se chateia quando rebate críticas de que estaria abrindo uma torneira de dinheiro gerada por material que poderia ser considerado de qualidade inferior ao melhor de Hendrix. "Eu já disse isso e quero reforçar: nossa intenção não é meter a mão no bolso do consumidor. Queremos dar ao público a música de Jimi da maneira que ele gostaria que ela fosse ouvida. E embalada nas capas originais, como era sua intenção”.
O que é inegável – e ela sabe disso – é o interesse imorredouro por tudo que Jimi fez. E Janie tem sua explicação para o fascínio que a música de Hendrix continua excrescendo sobre sucessivas novas gerações.
"Nos anos 1960 havia música de todo tipo – pop, rock R&B, jazz – e nenhum desses estilos se misturava”, diz, sorrindo. "Jimi fundiu tudo. Por isso ele dura para sempre: tem um pouco de rock, um pouco de R&B, um pouco de soul, um pouco de jazz, um pouco de funk … Um pouco de tudo. Todo mundo é capaz de apreciar”.
Coda
O escritório da Experience Hendrix, onde conversamos naquele longínquo 1990, ficava a 22 quarteirões da casa onde Jimi nasceu. E na mesma cidade, Seatlle, para onde Jovino, meu amigo, havia se mudado – e onde mora até hoje.
PLAYLIST FAROL 14
Roger Waters revisita um clássico do Pink Floyd. O veterano do punk lança seu primeiro disco solo. Blues-rock psicodélico da Turquia. O bolero cósmico da Noruega. O funk jovem do Brooklyn. A “Fita da Máquina de Escrever” sai em versão oficial. E mais um álbum de Bob Dylan é dissecado.
Roger Waters – “Comfortably Numb 2022” – Todo fã do Pink Floyd que se preze conhece essa música, uma das faixas do álbum The Wall. Só que ela acaba de ganhar uma nova versão, mais sombria, em regravação de Roger Waters, com vocais adicionais feitos por Shanay Johnson.
Don Letts – “Outta Sync” – Você deve conhecer Don Letts da época em que fez parte do Big Audio Dynamite. Pode ter visto alguns dos vídeos que ele dirigiu, como o de "Pass The Dutchie", sucesso do grupo juvenil Musical Youth. Ou talvez já tenha ouvido alguns de seus programas na BBC. Mas só agora, aos 66 anos, Don se prepara para lançar um disco seu. A primeira amostra é este single.
Gaye Su Aykol – "Sen Benim Mağaramsın” – Não é todo dia que se ouve pop da Turquia, muito menos blues-rock psicodélico independente. Pois aqui está sua chance, graças ao quarto álbum da vocalista Gaye, aqui soando muito aparentada com o Black Keys.
Phony Ppl– “to get home”– O jovem quinteto do Brooklyn projeta seu funk adiante, seguindo na tradição de grandes como Earth, Wind & Fire mas mirando no futuro, aqui alavancados pelos vocais doces de Leon Thomas e pela metaleira suingadíssima dos Soul Rebels de Nova Orleans.
A Certain Ratio – “Afro Dizzy” – Veteranos da dance music britânica, o adorado quarteto de Manchester precede seu novo álbum, 1982, com um single compartilhado com o rapper Chunky e a cantora de neo soul Ellen Beth Abdi.
Janis Joplin/Jorma Kaukonen – “Hesitation Blues” – Durante décadas circularam versões pirata de uma gravação feita durante um ensaio em 1964, reunindo Janis e Jorma, guitarrista do Jefferson Airplane, apelidada de "A Fita da Máquina de Escrever", porque o tempo todo consegue-se ouvir alguém datilografando ao fundo. Agora, uma versão de melhor qualidade – embora o datilógrafo permaneça audível – está saindo oficialmente.
Romy – “Strong”– A vocalista do xx juntou forças com o produtor de música eletrônica Fred Again … para criar uma faixa dance romântica e positiva.
Röyksopp/Alison Goldfrapp – “The Night”– O veterano duo norueguês de música eletrônica alimenta seu apetite por colaborações com uma participação da inglesa Goldfrapp em uma das faixas de seu novo álbum, Profound Mysteries III.
Jenny Hval – “Buffy”– O próprio título indica que esta música tem alguma ligação com a caçadora de vampiros da série de TV dos anos 1990. É uma espécie de bolero cósmico feito pela artista norueguesa, que usa a personagem como ponto de partida para falar de esperança.
Bob Dylan – “Love Sick-Version 2”– Versão alternativa da faixa de abertura do álbum Time Out Of Mind, produzido magistralmente por Daniel Lanois e lançado por Dylan em 1997, parte da 17ª (!) edição da série Bootleg, através da qual o disco é dissecado.