Carnaval, versão catalã
As cidades da Catalunha, no nordeste da Espanha, marcam o calendário carnavalesco com particularidades, variações, colorido local – e uma certa picância
É Carnaval no Brasil. Mas também é Carnaval na Catalunha, o naco do noroeste da Espanha que engloba desde os Pirineus até as cidades da Costa Brava, banhadas pelo Mediterrâneo.
Mas se no hemisfério sul o Carnaval se manifesta basicamente através de fantasias, desfiles de escolas de samba, blocos e bailes, nesse território espanhol a festa inclui atividades de rua bem diversas, desde “batalhas" de caramelos a oficinas de máscaras e contação de histórias para crianças.
Assim como no Brasil, cada recanto da região tem particularidades e variações, manifestadas através de diferentes eventos e até calendários (os mais “fominhas", como a cidade medieval de Tarragona, já começaram a festa uma semana atrás, transformando a praça Corsini, onde fica o Mercado da Cidade, QG da folia, na “Praça da Devassidão”).
Se na praieira Sitges – onde todo outubro acontece o Festival de Cinema dedicado aos filmes fantásticos –cada ano o Carnaval, um dos mais famosos de toda a Catalunha, engloba desfiles de grupos fantasiados, inclusive de crianças, com carros de som e alegóricos, na cidade de Lleida a grande atração é a Cursa dels Llits, uma disputa de originalidade e funcionalidade entre veículos improvisados a partir de camas.
Barcelona, por sua vez, terá mais de 60 eventos diferentes este Carnaval, de desfiles a espetáculos de fantoches e oficinas de culinária, culminando como o Enterro da Sardinha, cerimônia divertida onde a imagem de um peixe enorme é queimada para simbolizar o fim aos excessos do período e o início da purificadora Quaresma, enquanto no pequeno povoado de Vilanova i la Geltrú a grande atração é a “batalha de caramelos”, durante a qual cada casal participante “dispara" nada menos que 15 quilos da bala.
Bailes infantis animam cidades como Manresa e desfiles de crianças enchem as ruas de Breda, enquanto são esperadas mais de cinco mil pessoas para o animado desfile de Carnaval de El Vendrell.
Há manifestações mais pitorescas. Que tal o içamento da figura de um burro até chegar ao campanário da Torre de les Hores, na cidade de Solsona?
Mas talvez nenhuma manifestação carnavalesca seja mais picante que a tradição do Gran Pullassu, em Torelló, situada no centro da Catalunha. É quando centenas de pessoas se reúnem, fantasiadas, para um ritual de masturbação coletiva de um membro gigantesco.
O universo bate-bolas também é das mulheres. Músicos em silêncio contra a Inteligência Artificial. Shakespeare + Radiohead. Uma história oral do punk rock Basco. Gene Hackman é encontrado morto. O cinquentenário dos quadrinhos revolucionários da revista francesa Metal Hurlant.

– E já que o clima é de carnaval, vale destacar o crescimento no Rio de Janeiro de grupos de bate-bolas formados por mulheres. Ainda que historicamente a maioria esmagadora desses grupos – parte fundamental da essência do carnaval de rua da cidade e desde 2012 considerados patrimônio cultural – seja masculina, o contingente feminino vem crescendo substancialmente. Mapeamento da Secretaria Municipal de Cultura do Rio registrou em 2022 nada menos que 23 turmas femininas de bate-bolas, mais duas LGBTQIA+. De lá para cá, os números vem crescendo. Alguns exemplos: o Empoderadas, de Nilópolis, na Baixada Fluminense, grupo fundado há três anos pela trancista Emilly Santos, de 31 anos, que conquistou uma data oficial para desfilar na Avenida Mirandela, mesmo lugar onde a Beija-Flor faz seus ensaios; ou a Incomparáveis de Irajá, criada por Beatriz Martins, composta por 18 integrantes, com idades entre 13 e 48 anos. Este ano, o grupo homenageará Xica da Silva.
– Alguns músicos estão usando o silêncio para combater o uso de seu trabalho para treinar ferramentas de Inteligência Artificial. Mais de mil artistas – dentre eles Kate Bush, Cat Stevens, Damon Albarn, Tori Amos, Hans Zimmer e Annie Lennox – lançaram esta semana um álbum contendo nada além do silêncio da ambiência de estúdios e palcos para protestar contra mudanças pretendidas na lei de direitos autorais do Reino Unido que permitiriam que companhias de IA treinassem suas plataformas com material protegido por copyright – mas sem sequer pedir permissão prévia. No caso, os artistas precisariam entrar em contato com as companhias para pedir que seu material seja excluído dos “treinos”. Outro grupo de artistas, incluindo Paul McCartney, Elton John, Dua Lipa, Andrew Lloyd Webber e Ed Sheeran, publicou no jornal inglês The Times uma carta aberta, denunciando o que consideram uma reforma “inútil e contraproducente”.
– O casamento de uma das obras-primas de Shakespeare com a música do Radiohead. É assim a montagem de Hamlet Hail to the Thief, feita pela Royal Shakespeare Company, que combina um dos clássicos do bardo inglês com a música do álbum Hail to the Thief, lançado pelo Radiohead em 2003. O próprio vocalista e compositor do grupo, Thom Yorke, está encarregado de re-trabalhar e orquestrar as faixas do álbum, que serão tocadas por 20 músicos no palco. A estreia está marcada para a última semana de abril, no Aviva Studios, em Manchester, na Inglaterra. Depois, o espetáculo será levado para o Royal Shakespeare Theatre, em Stratford-upon-Avon, berço do autor.
– O jornalista espanhol Javier Corral Jerry espalhou por 842 páginas seu parrudo livro sobre o punk rock praticado no País Basco durante a década de 1980, História Oral del Rock Radical Vasco, título emprestado do nome do selo de discos que abrigava artistas como Eskorbuto, Basura e Hertzainak. “Foi o movimento musical mais popular e mais forte surgido (naquela região, situada na fronteira da Espanha com a França)”, disse Javier ao diário El País. “Pode-se dizer que passou a fazer parte do folclore basco”.
– O cinema perdeu esta semana um de seus mais celebrados atores, Gene Hackman, ganhador do Oscar por seu Jimmy “Popeye" Doyle, de Operação França, e pelo xerife brutal e sádico Little Bill Daggett, de Os Imperdoáveis, e conhecido por tantos outros papéis inesquecíveis, em filmes como Mississippi em Chamas, A Firma e A Conversação. Aposentado das telas desde Alce Daí, Sr. Presidente, lançado em 2004, Gene vinha se dedicando a escrever livros. Hackman e sua esposa, a pianista clássica Betsy Arakawa, foram encontrados mortos em sua casa, na cidade de Santa Fe, nos Estados Unidos, junto com um de seus cachorros de estimação. Gene tinha 95 anos. O caso está sendo investigado pela polícia local.
– Lançada em janeiro de 1975, na França, por Jean-Pierre Dionnet, Philippe Druillet, Mœbius e Bernard Farkas, a revista Métal Hurlant tornou-se um marco revolucionário num país que já era bastante afeito aos quadrinhos: em vez das aventuras em capítulos que enchiam as folhas de semanários destinados ao público infanto-juvenil, títulos como Pilote e Tintin, ali estava uma revista em quadrinhos mensal para adultos, repleta de sexo, robôs, cenários oníricos, violência e paisagens de outros planetas. Virou um enorme sucesso, influenciou gerações de artistas, escritores e cineastas, deu origem a uma publicação destinada às mulheres e toda feita por elas – Ah! Nana, fechada depois de somente nove números –, ganhou versão americana – Heavy Metal, da qual nasceu um longa de animação bem mais ou menos – e fechou as portas em 1987. Após um renascimento em 2021, com periodicidade trimestral e formato robusto – 300 e tantas páginas – e uma campanha de financiamento coletivo que angariou mais de 700 mil euros, a Metal Hurlant conseguiu chegar a seu cinquentenário, com uma edição especial lançada em fevereiro com duas capas, feita por 37 artistas das novas gerações. Quem quiser adquirir a edição comemorativa é só clicar aqui.

PLAYLIST FAROL 110
O indie pop de Perfume Genius. O pós-punk galês de Adwaith. O pop-punk madrilhenho de shego. O vozeirão de Ledisi. Black Keys, dançante. Dustin Wong, experimental. A guitarra brasileira de Roberto Barreto e Manoel Cordeiro + Pupillo. Pink Floyd em Pompéia, remixado. E o adeus a Bill Fay e Roberta Flack.
Perfume Genius – “No Front Teeth”– O americano Mike Hadreas alistou a neozelandesa Aldous Harding para compartilhar uma das faixas neo-psicodélicas do novo álbum de seu projeto de indie pop, Glory, uma produção do incontornável Blake Mills.
Adwaith – “MWY”– Trio feminino galês, cantando em sua língua natal, fazendo em seu terceiro álbum, Solas, um pós-punk com ecos de The Cure, mas definitivamente ancorado no século 21.
shego – “Curso Avanzado de Perra”– Outro trio feminino – este, madrilenho – apresenta fervilhante energia pop-punk em seu segundo álbum, No lo volveré a hacer.
Ledisi – “BLKWMN”– Com seu vozeirão, a cantora de jazz e soul, natural de Nova Orleans, homenageia aqui a força e a resiliência da mulher negra com uma voz e uma interpretação que trazem à lembrança tanto Nina Simone quanto Shirley Bassey.
The Black Keys – “The Night Before”– Enquanto não sai o 13º álbum da dupla americana, No Rain No Flowers, aqui está mais um novo single, dançante, contagiante, impulsionado por uma dobradinha matadora de baixo e bateria.
Dustin Wong – “Archangel Michael and the Pacific” – O guitarrista havaiano borra os limites de seu instrumento de tal maneira, nesta faixa de seu novo álbum solo, Gloria, que melodias, percussão e harmonia se misturam e se alternam numa sucessão de improvisos. Experimental, o disco é um tributo a sua avó, falecida aos 96 anos.
Roberto Barreto, Manoel Cordeiro, Pupillo –“BaPaPe“– Outro showcase das seis cordas, aqui juntando dois guitarristas (Roberto e Manoel), que mesclam sons da Bahia (Barreto) e do Pará (Cordeiro) com os de Pernambuco (o baterista/produtor Pupillo).
Pink Floyd – “Echoes-Part 1”– Com a proximidade do relançamento (no final de abril), em formatão IMAX, da versão restaurada do filme com o concerto que o grupo fez em 1971, para câmaras e técnicos, num anfiteatro romano em Pompéia, na Itália, tocando músicas dos discos Meddle e deep cuts de seu repertório anterior, já começam a aparecer as faixas da trilha, remixada pelo craque Steven Wilson.
Bill Fay – “The Healing Day”– Talvez fosse para Bill Fay ter ficado onde estava: uma baixa do rock dos anos 1970 como tantas, largado pela gravadora depois de pouca vendagem, uma promessa que empacou em alguns discos seminais que influenciariam gerações sucessivas de músicos e seriam abraçados apenas pelos antigos, os colecionadores mais atentos, ou o sortudo que os descobrisse por acaso.
Talvez fosse para ele ter restringido sua atividade artística a gravações caseiras, criando o que o artista mesmo chamava de “álbuns imaginários”, enquanto ganhava a vida jardinando, faxinando fábricas ou vendendo peixes.
Mas a vida tinha outros planos para Bill.
Um jovem produtor americano, Joshua Henry, que havia crescido ouvindo os LPs do pai, decidiu resgatar o artista, cercou-o de estímulo, recursos e dos músicos com que Fay mais trabalhou ao longo da vida, e, juntos, gravaram o primeiro álbum de Fay em mais de 40 anos.
Lançado em 2012, Life Is People era um assombro, um disco repleto de meditações e toques zen em celebração à força da vida, músicas ao mesmo tempo sutis, mas de uma profundidade infinita. Com predominância de voz e piano (que Bill precisou reaprender a tocar), mas com instrumentação clássica de rock e cordas usadas de maneira bem econômica.
A maior parte das músicas era nova e absolutamente acachapante, um disco de gente grande que viveu muito, que passou por muito – de bom, de ruim, de devastador, de destruidor – , mas sem um pingo da bile e da raiva que poderia se esperar de um artista brilhante que fora descartado e quase esquecido.
Muito pelo contrário. Através de canções como “Never Ending Happening”, “The Healing Day” e a transcendental “Cosmic Concerto (Life is People)”, Bill Fay fez um álbum de compaixão e de gratidão pela vida – é o disco de sua redenção.
Através de Life is People, Bill foi redescoberto por músicos, público e mídia (é dessa época sua única apresentação em TV, convidado do programa Later … With Jools Holland).
Veio a gravar dois outros álbuns, Who Is The Sender? (2015) e Countless Branches (2020), e preparava um terceiro, para lançamento ainda em 2025, quando morreu em Londres, na semana passada, aos 81 anos. (Texto contendo trechos publicados originalmente no FAROL de 7/10/2022).
Roberta Flack – “The First Time Ever I Saw Your Face”– Numa das cenas-chave da comédia-romântica/fantasia rock ’n’ roll 1972, a protagonista Julia pousava a agulha num LP de Roberta Flack e declamava a letra para o principal personagem masculino do filme, Snoopy, enquanto o disco tocava e a voz da cantora-compositora-pianista cercava tudo com uma das maiores declarações de amor já transformadas em música. O custo proibitivo do licenciamento da faixa impediu que a envolvente gravação entrasse no filme, mas o espírito de Roberta, de certa forma, permaneceu no longa, cuja história se passa no auge da carreira de Flack, o início da década de 1970.
O misto de soul, pop, jazz e folk com o qual ela – de formação clássica, mas com raízes também no blues e na música das igrejas – construiu seu trabalho em discos e shows fez de Roberta presença constante nas rádios e nas paradas, sozinha (“Killing Me Softly”, “Feel Like Making Love”) ou acompanhada (“Where Is The Love”, dueto com Donny Hathaway). Chegou a produzir alguns de seus discos, sob o pseudônimo de Rubina Flake, depois compôs para filmes (é dela a trilha de Bustin’ Loose/ Rompendo Correntes, filme de Richard Pryor lançado em 1981), auxiliou talentos emergentes, como Luther Vandross, e criou um programa de ensino de música com seu nome no Bronx, em Nova York. Roberta morreu na semana passada, aos 88 anos.