Cannes: plataforma de lançamento e espelho da criatividade mundial
O passado, o presente e o futuro do cinema se encontram na 76ª edição do maior e mais importante festival do mundo dedicado ao filme
A 76ª edição do principal festival de cinema do mundo está rolando em Cannes, na Riviera Francesa. Desde terça-feira, 16/5, e até seu encerramento, no sábado, 27/5, passarão pelas telas do Palácio dos Festivais 70 trabalhos cinematográficos disputando a atenção da imprensa e do mundo, mas, principalmente, os prêmios dados por quatro grupos de jurados, sendo que o principal, o de longas, é encabeçado pelo sueco Ruben Ostlundm, ele mesmo ganhador duas vezes da Palma de Ouro, a principal honra do evento, a última tendo sido ano passado, por Triângulo da Tristeza.
É um ano pleno em significados. Pela primeira vez, em toda sua história, Cannes é presidido por uma mulher: Iris Knobloch, de origem alemã e com farta experiência em Hollywood e na Europa – ela presidiu a Warner/Media na França, em Benelux, Áustria, Suíça e Alemanha. E a atual iteração do encontro sublinha a importância da obra cinematográfica feita para cinemas, após uma grande crescimento do alcance e do peso das plataformas de streaming.
Poderia até ser esperado que o festival alterasse a regra que exige o compromisso de exibição em salas francesas de exibição para que um filme possa participar de Cannes. O que prejudica diretamente a gigante Netflix. Mas Iris não capitulou. "Claro que pensei sobre o assunto”, disse ela à revista Variety, “Mas o debate mudou completamente. Ficou no passado a discussão que colocava o streaming e os cinemas um contra o outro. O público e os filmes estão de volta aos cinemas. E a seleção (de filmes) deste ano espelha essa nova era”, concluiu, lembrando que players do streaming, como Apple e Amazon, estão investindo pesado em filmes para seus catálogos, mas para serem exibidos também – e primeiro – em cinemas.
E Cannes não serve apenas de plataforma de lançamento de filmes prontos. É também um grande mercado, onde são levantados fundos para a realização de um filme, onde são negociados os direitos de distribuição dos títulos que passarão mundo afora, onde projetos começam a tornar-se realidade, com a contratação de uma grande estrela ou de um diretor de renome em quem ancorar aquele investimento.
A Globo Filmes, por exemplo, levou a Cannes 11 novos filmes, em busca de interessados para sua venda ou distribuição internacional, inclusive filmes ainda em preparação, como o documentário sobre Elza Soares que Eryk Rocha dirigirá, ou O Outro Lado do Céu, de Gabriel Mascaró, diretor do premiado Boi Neon, sobre uma Brasil imaginário onde as pessoas com mais de 80 anos de idade são confinadas a uma colônia para ajudar na recuperação econômica do país.
O festival espelha, ainda, a criatividade de realizadores mundo afora. A octanagem dos representantes da comunidade cinematográfica a desfilar em Cannes com suas novas produções sublinha a continuada importância do festival. Esse ano estarão lá mestres (muitos deles habituês da Croisette) como Pedro Almodóvar, Wim Wenders, Ken Loach, Nanni Moretti e Marco Bellochio.
E o teor de controvérsia, sempre um ingrediente incontornável em Cannes, se faz devidamente representado, seja pela presença de Johnny Depp, estrelando o filme que abriu o festival, Jeanne du Barry, após o ator ter passado por um conturbado julgamento por agressão a sua ex-esposa, seja pelas cenas do filme Homecoming, da diretora Catherine Corsini, que incluiriam menores de idade fazendo sexo, ou seja pelo quiprocó causado quando possivelmente centenas de pessoas com ingresso para a premiere mundial do novo curta de Almodóvar, Extraña Forma de Vida, estrelado por Ethan Hawke e Pedro Pascal, foram barradas do Théâtre Claude Debussy por excesso de lotação – dentre elas, Janet Yang, presidente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, aquela mesma, que dá o Oscar –, depois de penarem por uma hora debaixo de uma tempestade.
Polêmica também está sendo causada no festival pela exibição de um novo corte de Calígula, o luxuoso longa histórico/fantasioso/pornô lançado pela Penthouse Films em 1980, estrelado por Malcolm McDowell, Helen Mirren, Peter O’Toole – e uma legião de peladões e peladonas em variadas formas de furiosa e explícita atividade sexual. Cannes verá uma versão totalmente diferente da original, aquela montada pelo diretor, o italiano Tinto Brass. O novo corte é feito a partir de 96 horas de filmagem nunca usados por Tinto. Brass, hoje com 90 anos, renega o filme como está agora. “Não corresponde ao meu projeto original”, ele ralhou, “e a platéia vai ser enganada pelo uso arbitrário do meu nome (nos créditos)”.
Com ou sem tretas, Cannes é vitrine de realizadores, atores e atrizes – e paraíso supremo dos cinéfilos. Ano após ano, centenas de milhares de pessoas – dentre “civis", profissionais do ofício e quase cinco mil jornalistas – invadem a pequena cidade à beira do Mediterrâneo para conhecer, em primeira mão, o que de melhor, mais transgressor, mais inovador, mais clássico, o cinema tem a oferecer. E as opções em 2023 são verdadeiramente apetitosas. Uma pequena amostra:
Martin Scorsese escolheu Cannes para lançar seu novo e (como sempre) esperadíssimo Assassinos da Lua das Flores – estrelado por Leonardo Di Caprio, Robert De Niro, Brendan Fraser e Lily Gladstone – , sobre a investigação, pelo FBI, de assassinatos ocorridos numa comunidade indígena dos Estados Unidos, nos anos 1920, depois que a tribo descobre petróleo em seu território.
O estilo singular de Wes Anderson está de volta, dessa vez em Asteroid City, passado numa cidade americana no deserto, durante a década de 1950, que é visitada por alienígenas. O elenco mistura figurinhas marcadas dos filmes de Wes – Jason Schwartzman, Scarlett Johansson e Tilda Swinton são alguns – com novatos como Tom Hanks e Steve Carrell.
Wim Wenders – venerado por Cannes – mostra seu Perfect Days, sobre um limpador de privadas de Tóquio. E Steve McQueen leva ao festival um documentário com mais de quatro horas de duração sobre os efeitos da ocupação nazista de Amsterdã, Occupied City.
O cinema brasileiro comparece com quatro títulos na programação oficial – Levante, de Lillah Halla; Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho; A flor do buriti, de João Salaviza e Reneé Nader Messora; e o documentário Nelson Pereira dos Santos-Uma Vida de Cinema, de Aida Marques e Ivelise Ferreira– , enquanto Karim Aïnouz, o diretor cearense que fez Madame Satã, O Céu de Suely e Vida Invisível (que rendeu-lhe a principal premiação na mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes de 2019), apresenta seu primeiro filme britânico, com o qual competirá pela Palma de Ouro. Estrelado por Jude Law, no papel do rei Henrique VIII, e Alicia Vikander, como sua sexta e última mulher, Katherine Parr, Firebrand é ambientado no século XVI e gira em torno de intrigas palacianas.
Mas nenhum outro filme provoca frisson de antecipação maior que Indiana Jones e A Relíquia do Destino. A icônica presença de Harrison Ford na premiere de gala do filme em Cannes, encarnando pela última vez um dos personagens que mais marcaram sua carreira, e que vem encarnando há mais de 40 anos, entrará para a história do festival.
“Sempre quis ver (Indiana Jones) numa fase mais madura de sua vida”, disse Ford à revista inglesa Total Film. “Quando ele já tivesse passado do entusiasmo e da capacidade (física) da juventude, limitado pela idade e pela vida universitária. Queria vê-lo envolvido em mais uma aventura inesperada, imprevista”.
A ancestralidade negra alimenta safra literária recente. O Festival C6 ocupa Rio e São Paulo. Arthur Bispo do Rosário, destinado “por Deus" a catalogar e organizar "o caos do mundo”, ganha mostra em Nova York. A continuação de Beetlejuice já está sendo feita. E a playlist de despedida compilada por Ryuichi Sakamoto.
– Resultado de grande produção acadêmica no decorrer dos últimos anos, é generosa a quantidade de novos livros que apresentam a um público mais amplo estudos sobre os orixás – ou profundam a discussão sobre o tema. Segundo O Globo, nunca se falou tanto no protagonismo, na cultura e na ancestralidade negra. O jornal cita quatro livros, em particular, todos lançados recentemente, como Exu: Um Deus Afro-Atlântico no Brasil, do antropólogo e professor Vagner Gonçalves da Silva, produto de 15 anos de pesquisas para se reunir 183 mitos sobre Exu. O livro é considerado um modelo para se falar de religiões afro-brasileiras. Os mais jovens são o público-alvo de outro livro, o recém-lançado Omo-oba, que resgata mitos iorubás através de histórias de príncipes e princesas.
– Este final de semana no Rio de Janeiro e em São Paulo é do festival C6, que leva aos palcos do Vivo Rio e do Parque Ibirapuera, de 18 a 21 de maio, atrações musicais de rock, jazz e MPB, com um lineup que reúne Caetano Veloso, Kraftwerk, The War On Drugs, Black Country, New Road, Weyes Blood, The Comet Is Coming, Tim Bernardes e Jon Baptiste.
– O trabalho de Arthur Bispo do Rosário, artista sergipano que passou meio século vivendo em instituições psiquiátricas, onde criou toda sua obra baseado no que descreveu como a aparição de sete anjos e vozes celestiais, que anunciaram ser ele um enviado de Deus para "julgar os vivos e os mortos”, destinado a catalogar e organizar "o caos do mundo”, em preparação para o Dia do Juízo Final – convicção que rendeu-lhe um diagnóstico de esquizofrenia paranoide –, é objeto de uma exposição na galeria da Americas Society, em Nova York, sua primeira retrospectiva nos Estados Unidos. A mostra, Bispo do Rosário: All Existing Materials on Earth. Bispo do Rosário já teve seu trabalho apresentado na Bienal de Veneza, em 1995, onde foi aclamado como vanguardista. No Brasil, é considerado um dos maiores artistas do país. Ao morrer, aos 80 anos, em 1989, deixou um acervo com mais de mil objetos, entre estandartes, indumentárias, bordados, vitrines, fichários, móveis, esculturas e miniaturas.
– Vem aí a continuação de Beetlejuice-Quando os Fantasmas se Divertem, o filme de 1988 que marcou o início da parceria do astro Michael Keaton com o diretor Tim Burton que desembocaria em dois filmes de Batman. Keaton reassume o papel do protagonista-título, enquanto Burton de novo dirige um elenco que traz de volta a seus papéis originais Wynona Ryder e Catherine O’Hara, junto a novas adições: Jenny Ortega, sensação do seriado Wandinha (também realização de Burton), aqui no papel de filha da personagem de Wynona; Willem Dafoe, como um policial do além; e Monica Bellucci, atual namorada de Tim, vivendo a esposa de Beetlejuice. As filmagens já estariam sendo feitas em Londres, com vistas a um lançamento em setembro de 2024.
– Ryuichi Sakamoto, pianista, compositor e produtor japonês morto no final de março, deixou pronta uma playlist com as músicas que gostaria que fossem tocadas em seu funeral. Agora, seu antigo empresário divulgou a íntegra da playlist de 33 músicas, que abre com "Haloid Xerrox Copy 3 (Paris)", uma faixa de 11 minutos gravada por Alva Noto, compositor alemão e colaborador de Sakamoto na feitura da trilha do filme O Regresso, e inclui de Ennio Morricone e o Bill Evans Trio a David Sylvain, Bach e Debussy. A playlist está disponível no Spotify.
PLAYLIST FAROL 37
Janelle Monáe celebra o prazer. As estilingadas de guitarra do Queens of the Stone Age. Os Pretenders convidam à imortalidade. Clapton e Beck juntos no adeus a Jeff. O banjo e a rabeca de Rhiannon Giddens. A novidade favorita de Iggy Pop. Julia Mestre arrepia. ANOHNI resgata the Johnsons. Lanterns on the Lake buscam uma vida melhor, mesmo que seja imaginária. E o pop experimental de Califone.
Janelle Monáe – “Lipstick Lover”– Uma de nossas eternas musas, Janelle vem retomando o lado musical de sua carreira, após um bom tempo dedicado ao trabalho como atriz – e até como autora de livro. Aqui ela chega com sensualidade e pimenta, utilizando um fundo de reggae suave e sensual para celebrar o prazer, numa das faixas de seu novo álbum, The Age of Pleasure, que sai em junho.
Queens of the Stone Age – “Emotion Sickness” – Harmonias vocais típicas de soft rock dos anos 1970, riffs que ecoam Rocket From The Crypt e estilingadas afiadas de guitarra caracterizam a primeira amostra do oitavo álbum do grupo liderado por Josh Homme, in Times New Roman.
Pretenders – “Let the Sun Come In”– Com marra típica, Chrissie Hynde e tropa desafiam a passagem do tempo e convidam à imortalidade no primeiro single de Relentless, o 12º álbum do grupo, com lançamento marcado para setembro.
Eric Clapton – “Moon River” – O novo single de Clapton é uma versão do tema do filme Bonequinha de Luxo, feita com a participação sempre cintilante de Jeff Beck, gravada poucos dias antes do gigante da guitarra falecer, no início do ano.
Rhiannon Giddens – “You're The One”– Banjo e rabeca dão o tom desta faixa do primeiro álbum em que Giddens, uma força do folk e do country blues americanos, que há décadas integra bandas e projetos – Carolina Chocolate Drops, Sankofa Strings e Songs of Our Native Daughters são alguns – e colabora com artistas como Ben Harper e T-Bone Burnett, gravou apenas músicas suas.
Lambrini Girls – “Lads Lads Lads” – A dupla feminina de Brighton é uma das novidades favoritas de Iggy Pop e ruge com guitarras e convicção contra a cultura machista em seu primeiro EP.
Julia Mestre – “Arrepiada"– Integrante de uma das bandas queridinhas do momento, Bala Desejo, Julia lança seu segundo álbum individual, cuja faixa-título conecta o pop sensual anos 1980 de Rita Lee com uma sonoridade século 21, onde sintetizadores, cordas e percussão lo fi convivem em convidativa harmonia.
ANOHNI, Antony and the Johnsons – “It Must Change” – Após mais de 10 anos sem gravar com sua banda, ANOHNI reaparece com seus Johnsons para mostrar o primeiro single de seu sexto álbum, My Back Was a Bridge for You To Cross. Abandonando a sonoridade pesada – por vezes, difícil de suportar – de seus discos solo recentes – e utilizando como inspiração “What's Going On”, clássico do gigante Marvin Gaye sobre a turbulência nos Estados Unidos do início da década de 1970, ANOHNI usa guitarra, cordas e percussão para falar sobre o amor como a base para a resistência num mundo cada vez mais duro.
Lanterns on the Lake – “Real Life” – Impulsionado pela potência da vocalista Hazel Wilde, o quinteto britânico lança um novo single, com Philip Selway, do Radiohead, na bateria, mostrando uma música sobre a busca por uma vida melhor, mesmo que ela seja apenas imaginária – por enquanto.
Califone – “villagers”– O cultuadíssimo projeto de Tim Rutili, músico prolífico de Chicago, com uma ficha corrida de colaborações variadas – como as bandas Red Red Meat e Ugly Casanova–, amplia sua discografia com o álbum que a revista Uncut considera o melhor do mês, construído com apurada sensibilidade pop e um pitadão de experimentalismo, por vezes dado ao meditativo, como na faixa-título, movida a violão e cordas sutis, com uma flauta doce torta impedindo que o arranjo encarete em alguma curva.