As Cinco Séries de 2023
Uma treta de trânsito, o mundo após o fim do mundo, espiões "pangarés", um advogado criminalista da Los Angeles anos 1930 e o fim da saga Shakespeariana da família Roy marcaram o ano na TV
Os canais de streaming se multiplicaram em 2023 – e, com eles, aumentou proporcionalmente a variedade de conteúdo. O que tornou ainda mais difícil conseguir acompanhar o ritmo de produção de séries – novas ou continuações – e selecionar os principais destaques do que ocupou nossa imaginação nos últimos 12 meses de consumo de séries de TV.
Teve muita coisa boa: da ficção-cientifica de Silo à comédia histórica siderada de O Mundo Por Philomena Cunk. Do terror inspirado em Edgar Allan Poe de A Queda da Casa de Usher ao eletrizante mundo da política internacional de A Diplomata.
Mas com bastante critério chegamos aos cinco principais títulos do ano para listar nesta que é a última edição do FAROL em 2023.
Nos reencontramos no futuro: na segunda semana de janeiro de 2024. Até lá!
Treta (Netflix) – Um desentendimento no trânsito desencadeia um duelo interminável entre uma mulher de negócios, mãe e esposa (Ali Wong), e um jovem que tenta, aos trancos e barrancos, se firmar no mundo da construção (Steven Yeun), ambos de ascendência oriental. Numa sucessão de confrontos cada vez mais tensos e violentos, os dois testam seus limites e sua determinação em vencer a contenda, enquanto vão percebendo que o outro não cederá um milímetro sequer. A treta do título passa por momentos surreais e atinge sua conclusão de maneira ainda mais extraordinária, com dois corvos conversando. Tudo fruto da mente criativa do roteirista e diretor coreano Lee Sung Jin, que garante já ter ideias suficientes para mais três temporadas, muito embora Treta tenha sido planejada como série limitada.
The Last of Us (HBO Max) – Quem poderia imaginar que um videogame pós-apocalíptico, povoado por zumbis, poderia dar origem a uma série tão complexa e cheia de humanidade? Ponto para os co-criadores, Craig Mazin e Neil Druckmann. Crédito também deve ser dado a Pedro Pascal e a Bella Ramsey, por vestirem com tantas nuances a pele de seus parceiros de viagem e aventura tão antagônicos – e tão complementares.
Slow Horses (Apple TV+)– A segunda temporada da série sobre um grupo de espiões britânicos “exilados” para um escritório comandado por um veterano azedo, mas incontáveis vezes melhor que todos seus pares incensados e vaidosos juntos, pode não ter contado com o elemento-surpresa de sua primeira safra de episódios, mas manteve a qualidade e o nível das tramas e das interpretações, em especial Gary Oldman, perfeito em cada segundo como o chefe da equipe de “pangarés" que ocupa a arrebentada Slough House, dessa vez envolvida com espiões russos que estavam “adormecidos” na Inglaterra mas agora resolvem agir .
Perry Mason (HBO Max) – A segunda temporada evoluiu imensamente em relação à primeira, livre da necessidade de explicar do zero quem era o protagonista e sua história – tarefa que coube à safra anterior de episódios – e confortável o bastante para desenvolver melhor os personagens coadjuvantes, suas vidas e crises. No entanto, a notícia de que a série havia sido cancelada pela HBO Max deu um banho de água fria em todos os que esperavam uma terceira leva ainda mais afiada. Foi um dos pontos altos da carreira de Matthew Rhys – que encarnava o personagem-título, o advogado que combate políticos e magnatas corruptos e criminosos na Los Angeles dos anos 1930 – e um dos destaques do ano.
Succession (HBO Max) – A saga Shakespeariana da família Roy terminou em tragédia, com todos os protagonistas vivos destruídos, mergulhados em dor, derrota e desespero, após a morte súbita e inesperada do patriarca Logan (um Brian Cox leonino, impecável), com uma conclusão que teve claras conexões com o desenlace de Rei Lear. Textos cheios de farpas, interpretações de tirar o fôlego, conflitos empilhados sobre conflitos e direção magistral posicionaram a temporada final de Succession anos-luz à frente de tudo que se viu esse ano. E deixou a barra da qualidade lá no alto, bem difícil de ser atingida - mais ainda de ser superada.
Kiss para sempre, imortalizado sob a forma de avatares. O imperador romano que era trans. A primeira boy band composta de israelenses e palestinos. As compositoras que mandam no pop brasileiro. E a série Stranger Things vira peça de teatro.
– O Kiss pode ter-se despedido oficialmente dos palcos com um show no Madison Square Garden, no sábado passado. Mas que os fãs fiquem tranquilos, pois as apresentações do grupo não vão parar – só que, agora, a banda será substituída por avatares. Junto com a Industrial Light & Magic – produtora de efeitos visuais fundada por George Lucas nos anos 1970 e ainda hoje à frente do seu tempo – , os fundadores Paul Stanley e Gene Simmons traçaram o caminho para "uma nova era” na trajetória do Kiss, criando versões virtuais dos quatro personagens que integram o quarteto. Depois disso, a sueca Pophouse Entertainment, responsável pelos recentes shows do ABBA em forma de hologramas, se encarregará de produzir os espetáculos, propriamente ditos. O Kiss postou um vídeo que demonstra o processo de criação dos avatares, que permitirão que o grupo – nas palavras de Stanley – “continue vivo, porque o Kiss é maior que nós todos”.
– Um museu inglês resolveu atualizar as informações que dava ao público sobre um imperador romano, ao concluir que, no fim da vida, ele optou por se apresentar como mulher. Ou seja, Marcus Aurelius Antoninus, também conhecido como Elagabalus, passou a ser considerado um imperador trans. Seu reinado foi curto, de apenas quatro anos, até seu assassinato, aos 18 anos. Um cronista daquela época, Cassius Dio, escreveu que Elagabalus casou cinco vezes – quatro, com mulheres. A última, com um ex-escravo e condutor de carruagens. Na ocasião, Marcus Aurelius se apresentou como "esposa, senhora e rainha” e pediu não ser chamado de “senhor, porque sou uma dama”. Diante dessa informação, o North Hertfordshire Museum passará a se referir a Elegabalus usando o pronome “ela”. O museu informou, ainda, que se consultou com a Stonewall, entidade dedicada a beneficências ligadas à comunidade LGBTQIA+, para se assegurar de que suas mostras, sua divulgação e suas palestras estão atualizadas e são o mais inclusivas possível.
– Chama-se as1one a primeira boy band composta de integrantes israelenses e palestinos. Os seis rapazes estão gravando em Los Angeles seu primeiro álbum, apoiados por uma dupla americana de produtores/empresários com currículos bastante respeitáveis: Ken Levitan ajudou a desenvolver o Kings of Leon, empresariou o Bon Jovi e trabalhou com o B-52’s. Quando lançou o selo A&M Octone Recortds, James Diener burilou o Maroon 5. Os dois executivos se inspiraram no sucesso nos Estados Unidos das boy bands coreanas para criar um novo formato – a boy band do Oriente Médio – , mas com um ingrediente adicional importante: em meio ao conflito atual, a as1one quer trazer uma mensagem de harmonia e fraternidade.
– A música pop brasileira está nas mãos de uma nova geração de compositoras: mulheres com idades entre 24 e 30 anos que criam as músicas que serão popularizadas por artistas como Anitta, Luiza Sonza e Iza. Elas se chamam Lari, Day Limns, Carolzinha, Jenni Mosello, Clau, e são elas que predominam nas plataformas de streaming, conforme apurou Silvio Essinger para O Globo.
– Nos anos 1960, a revista Rolling Stone tentava conquistar leitores cativos oferecendo a cada novo assinante uma “marica" – instrumento utilizado para fumar baseados até o fim, sem queimar a ponta dos dedos. Agora, Neil Young incorporou o mesmo espírito ao oferecer sua própria marca de papéis para enrolar cigarros – de tabaco ou do que for desejado – a quem gastar pelo menos 100 dólares em sua loja online. Um bom pretexto para começar a gastar é o LP Before + After, onde Neil regravou sozinho algumas das canções que lançou originalmente entre 1966 e 2022, e criou uma única montagem sonora com elas – com direito a uma inédita na mistura, "If You Got Love”. Aviso aos navegantes: a oferta vale apenas para residentes nos Estados Unidos. No entanto, quem se interessar pode adquirir os papéis de enrolar – da marca Coastal Tour – por 10 dólares.
– A série de TV Stranger Things virou peça de teatro e estreia quinta-feira, 14/12, no Phoenix Theatre, em Londres. A montagem visita alguns dos personagens que habitam a cidade de Hawkins, Indiana, bem antes dos eventos mostrados no seriado. Mais de 20 anos antes. É a primeira empreitada teatral da Netflix e é dirigida por Stephen Daldry, com efeitos de palco criados pela mesma equipe responsável pela produção da peça Harry Potter e A Criança Amaldiçoada, premiada com um Tony.
PLAYLIST FAROL 64
Hurray For The Riff Raff contra a morte. Lana Del Rey regrava John Denver. Inédita de Beyoncé. O mambo de aniversário de Rodrigo Amarante. O folk quase prog do Stornoway. A marra de English Teacher. O punk neo-goth de Heartworms. meija + Eels. O adeus a Denny Laine. E a transcendência de Madhuvanti Pal.
Hurray For The Riff Raff – “Alibi”– Life On Earth, o oitavo álbum da cantora-compositora Alynda Segarra – com raízes porto-riquenhas e uma carreira construída no Bronx, sua terra natal, e em Nova Orleans, onde formou sua banda –, foi um dos nossos destaques de 2022. Agora, Segarra chega ao final de 2023 com uma amostra de seu novo álbum, The Past Is Still Alive, gravado não muito depois da morte do pai da artista. Aqui ela desafia a finitude com um misto de fortitude e fragilidade, já declarando que “você não precisa morrer, se não quiser morrer”.
Lana Del Rey – “Take Me Home, Country Road”– Uma versão melancólica e sombria de um dos clássicos do cantor-compositor John Denver, morto em 1997, ao sofrer um acidente com o avião que ele mesmo pilotava.
Beyoncé – “MY HOUSE”– A Rainha Bey tirou da cartola uma nova música, apresentada pela primeira vez como trilha dos créditos de seu recém-lançado filme-show da turnê Renaissance.
Rodrigo Amarante – “Birthday Mambo”– Em clima sonoro decididamente Narcos, Rodrigo dá sua contribuição a Moping in Style, o álbum em homenagem ao repertório solo de Adam Green, metade da dupla Moldy Peaches, conhecida da cena anti-folk nova-iorquina no começo dos anos 2000.
Stornoway – “Excelsior“ – O quarteto de Oxford se apoia num órgão dramático, quase prog, e em harmonias angelicais para criar uma canção que se situa entre o folk vintage e a preocupação ambiental do grupo na faixa que encerra seu novo álbum, Dig The Mountain.
English Teacher – "Nearly Dafodils" – O segundo single desse quarteto indie de Leeds, na Inglaterra, chega com marra, impulsionado pelos vocais provocadores de Lily Fontaine, também guitarrista.
Heartworms – “May I Comply” – Jojo Orme, a vocalista e compositora à frente desse projeto londrino, é destaque de uma das promessas do rock britânico para 2024, com seu punk neo-goth.
meija, Eels – “POSSUM”– meija é o codinome usado pelo angeleno Jamie Sierota para fazer indie pop. Eels é o veterano projeto indie rock do conterrâneo Mark Oliver Everett. Juntos, gravaram uma nova música, sobre ocultar emoções, inspirada num fato verídico: um gambá caçado por um cachorro.
The Moody Blues – “Go Now”– O rock britânico perdeu esta semana o cantor, compositor e multi-instrumentista Denny Laine, morto aos 79 anos, em decorrência de uma longa doença pulmonar. Ex-frontman do seminal Moody Blues – com quem gravou um dos maiores sucessos do grupo e da história das paradas inglesas, “Go Now”– , em 1971 Denny entrou para o Wings – a banda pós-Beatles de Paul McCartney – e lá ficou por uma década. Laine é co-autor de um dos grandes hits do grupo, “Mull of Kintyre”, e canta em “No Words”, faixa do álbum Band On The Run, que está sendo relançado em versão espartana, sem overdubs.
Madhuvanti Pal -– “Bhinna Shaddaj (Alaap, Jod, Jhala)”– Para limpar o palato e fechar de forma transcendental a última playlist de 2023 direcionamos nossos ouvidos à Índia. O rudra veena é um instrumento de cordas usado na música clássica hindustani e se destaca por sua ressonância. Pal é a primeira mulher a gravar um disco inteiro tocando o instrumento, The Holy Mother. Desligue a luz, acione a mente, e viaje nessa durante quase 40 minutos.